Sérgio Rodrigues

De prata as delgadas facas, os finos garfos; de prata os pratos onde uma árvore de prata lavrada na concavidade de suas pratas juntava o suco dos assados; de prata as fruteiras, com três bandejas redondas, coroadas por uma romã de prata; de prata as jarras de vinho marteladas pelos artesãos da prata; de prata as travessas de peixe com seu pargo de prata inflado sobre um entrelaçamento de algas; de prata os saleiros, de prata os quebra-nozes, de prata os covilhetes, de prata as colherinhas com iniciais lavradas… E tudo isso ia sendo levado pausadamente, cadenciadamente, cuidando para que prata não esbarrasse em prata, rumo às surdas penumbras de caixas de madeira, de engradados ao aguardo, de arcas com fortes ferrolhos, sob o olhar vigilante do Amo que, de roupão, só fazia a prata ressoar, vez por outra, ao urinar magistralmente, com jorro certeiro, copioso e percuciente, num penico de prata, cujo fundo era adornado por um malicioso olho de prata, logo ofuscado por uma espuma que, de tanto refletir a prata, acabava por parecer prateada…

Eis os primeiros acordes de “Concerto barroco” (Companhia das Letras, 2008, tradução de Josely Vianna Baptista), novela lançada em 1974 pelo cubano Alejo Carpentier (1904-1980). O homem que, sendo da geração pré-boom, foi uma de suas maiores influências – basta dizer que cunhou a expressão “real maravilhoso” para definir o absurdo da realidade latino-americana – era um estudioso sério de música que tinha a ambição de fundir notas e letras tanto nos temas quanto em andamento e textura da linguagem. Nesta narrativa sobre um magnata mexicano da prata que, no século 18, viaja a Veneza e se envolve com grandes compositores do período barroco, a ambição se realiza plenamente desde uma abertura que, com suas pratas infinitas, é ouro puro.