Miguel Carqueija



     Na verdade, Ricardo Tenerife não esperava visitas naquela noite. Ele se encontrava há bem umas duas horas recostado na espreguiçadeira, praticamente sem se mover, olhando fixamente a dança das chamas na lareira. Custódio, seu gato de antenas, fulvo e esguio, que, sentado, alcançava mais de um metro de altura, no momento se encontrava comodamente deitado num tapetinho perto da lareira, gozando aquele calor, as antenas abaixadas e inertes.
     O toque na aldrava veio quebrar o transe de Ricardo. Quem quer que fosse, subira a colina em plena noite fechada, o que nem todos tinham coragem para fazer. Ricardo levou alguns segundos para se resolver a atender. Quando o toque se repetiu ele levantou, reparando na expressão contrariada do bichano, e se dirigiu à porta. Acionou a transparência da janelinha e observou a figura masculina do outro lado. Reconheceu o homem, a quem conhecia vagamente. Resolveu abrir a porta.
     - Pois não – disse.
     - Você é Ricardo Tenerife, o sábio. Sou Leandro Hipocampo, Capitão da Guarda Real. Precisamos conversar, com a maior urgência.
     - Já nos conhecemos.
     - Sim, embora há muito você não seja visto no Palácio Real.
     - Tenho muito o que fazer em minha própria casa. Mas de fato, o que deseja?
     - Não está a par dos últimos acontecimentos que estão abalando o nosso mundo?
     - Estou em retiro já faz algum tempo, e isolado das notícias exteriores a título de higiene mental. Mas o que aconteceu de tão grave?
     - Acho melhor entrarmos, Mestre. O assunto é longo.
     - Está bem, entre. Creio que posso lhe oferecer um licor de orquídeas.
     Leandro era um homem de rosto hirsuto, de elevada estatura e olhar penetrante e decidido Ricardo, imberbe, magro e discreto, contrastava bastante com ele. Entretanto havia qualquer coisa de febril, de ansiedade, no olhar do capitão; o sábio não pôde deixar de percebê-lo. Leandro adentrou o aposento, olhou de relance para o felino junto à lareira e Custódio devolveu um olhar de curiosidade displicente.
     - Sente-se, por favor – assim dizendo Ricardo dirigiu-se ao bar e pôs-se a preparar o licor.   
     - Espero não estar interrompendo os seus afazeres, Mestre.
     - Você interrompeu, de fato, a minha quietação...
     - Como diz?
     - Eu me encontrava ocupado em contemplar, imóvel durante algumas horas, o bruxulear das chamas da lareira...
     - Interessante. Qual o objetivo de tão longa contemplação imóvel?
     - É uma disciplina, meu caro guarda. É uma forma de atingir o meu Eu Interior, entrosando-o com a Harmonia Cósmica Universal que a tudo penetra através do Éter.
     - Compreendo, compreendo... – respondeu Leandro, que não havia compreendido coisíssima alguma. – Em todo o caso, Mestre, após tão proveitosa contemplação poderá agora dar atenção ao grave problema que lhe trago?
     Ricardo estendeu a tulipa de licor ao seu visitante.
     - Esteja à vontade. Estou curioso em saber o que o traz.
     - Pensei, sinceramente, que já soubesse.
     - Não sei de nada. Imagino que seja um problema do trono... algo que deva ser resolvido discretamente...
     - Ora, o que diz! Não, não se trata das estripulias do Príncipe! Mas deve estar brincando, Ricardo. Eu só posso ter vindo por causa do sumiço do Olho!
     - Hein? – e Ricardo, que também ia se servir do licor, deixou cair a sua tulipa no tapete. Felizmente ela não quebrou.
     - Ué... eu falei o sumiço do Olho, o que mais poderia ser?
      - Mas quem falou que o Olho sumiu? – e assim dizendo Ricardo recolheu a tulipa.
     - Não pode estar tão alienado assim, Mestre... se me perdoa o atrevimento.
     - Estou isolado há semanas, recolhido ao meu Eu Interior. Se o mundo houvesse acabado nesse ínterim, eu nem perceberia.
     - O mundo está acabando. Se não recuperarmos o objeto que nos foi legado pelos Dragões Etéreos... para equilibrar todo o mundo de Delamar...
     O mestre tornou a encher o copo e procurou a poltrona mais próxima.
     - Sempre duvidei da existência real destas criaturas. Temos o Olho há milênios e os dragões podem não ser mais que uma lenda simpática.
     - Ninguém sabe para onde eles foram, Ricardo. Mas não duvido que tenham existido. Eles equilibraram a magia em nosso mundo, deixaram-nos o objeto mágico por excelência, e graças a isso gozamos de harmonia mágica durante milênios. Agora, sem o Olho, tudo de mal está acontecendo. Terremotos, reativação de vulcões extintos, utilização desastrosa de artes mágicas, desarranjo das estações... temo que este nosso belo mundo esteja indo por água abaixo, se o Olho não puder mais ser localizado.
     - Mas como, em que circunstâncias, ele sumiu?  
     - Isso é um grande mistério. O Olho estava em seu local de costume, o templo da Colina Quadrada, e os seus guardiões adormeceram de tal maneira que nada viram, nada ouviram. Eles foram anestesiados magicamente e o ladrão, quem quer que seja, escapuliu sem ser identificado.
     Ricardo dirigiu-se a uma das janelas ovais, e pôs-se a contemplar as constelações distantes e a cidade flutuante de Ismir, visível como uma gigantesca sombra móvel a um quilômetro de altitude. Também eram visíveis, sob a luz do luar, alguns aerobarcos que levitavam lá por cima. Se por outro lado Ricardo dirigisse a sua visagem para baixo, para o grande vale, não deixaria de avistar o combonhocão noturno, que seguia placidamente o seu destino. Dali, nada indicava que o mundo estivesse saindo dos eixos. Ricardo voltou-se para o seu interlocutor:
     - Isto tudo é simples demais, não posso compreender tanta displicência em se tratando de objeto tão valioso. O que de fato você espera de mim?
     - Não creio que tenha havido negligência, Mestre. Mas, como oficial da Guarda Real, sinto que devo fazer alguma coisa. Peço que me ajude a investigar o caso!
     - Por que eu?
     - Porque você é tido na conta de um grande sábio e por isso reúne as qualidades necessárias para agir num caso premente como esse. Alem disso o próprio Rei deposita uma grande confiança em sua pessoa, desde a elaboração do plano educacional, há dez anos atrás...
     - Hum... está bem, afinal todos nós corremos perigo. Que providências exatamente foram tomadas até agora?       
     - As tropas reais e inúmeros voluntários estão esquadrinhando o reino à procura do objeto...
     - E se ele estiver em outro reino? Se houver sido levado...
     - Pedimos ajuda aos reinos vizinhos, inclusive aos Elfos. Mas até agora não obtivemos sucesso.
     - Bem. Me diga, Capitão Leandro: quanto pesa afinal o Olho? E qual o seu tamanho exato? Temos de pensar na dificuldade enfrentada pelo ladrão.
     - Não sei se algum dia pesaram o Olho, Mestre. Mas ele mede mais ou menos um metro de altura e um e vinte de largura, pois tem a forma aproximada de um olho humano, ou seja, é oval. De espessura é bem menor, mas o material de que é feito permanece um mistério. Há quem diga que é feito de lágrimas de dragão cristalizadas...
     - Bem. Vamos ao meu terraço, onde disponho de alguns recursos investigatórios.
     Foram subindo, e a escada se iluminava à medida em que galgavam os velhos degraus de pedra cinzelada.
     - É admirável esta sua magia, Mestre – observou Leandro, amparando-se no corrimão. – No Palácio e por aí afora a magia não está funcionando assim bem...
     - Quem falou em magia? Esta iluminação é elétrica, utiliza as forças da Natureza.
      - Utiliza forças naturais, disse?
     - Através de captadores sem fio eu consigo utilizar a eletricidade flutuante na atmosfera e com isso ativar todos os meus aparelhos domésticos, inclusive as lâmpadas. A magia permanente sobrecarrega os ambientes e em conseqüência também os cérebros, tornando-os anuviados e lerdos.
     - Eu nunca ouvi falar nisso...
     Chegaram ao terraço e Leandro se admirou diante de uma torre metálica com quatro metros de altura.
      - Meu Deus, o que é isso?
       - Simplesmente, uma torre de captação de energia do éter. Tenho algumas lentes de observação que reproduzem imagens e sons distantes em telas de plasma líquido, veja naquela parede:
     O sábio acionou um comutador num painel que emergia do chão e a tela se iluminou, reproduzindo imagens do tráfego na estrada lá embaixo.
     - Como pode ter tanto poder, Mestre? – o capitão estava embasbacado.
     - Eu apenas faço uso dos recursos da ciência. Entende o que digo? Senão gastássemos tanto tempo e esforço aprendendo e desenvolvendo magia, alimentados pelo poder do Olho, disporíamos hoje de recursos técnicos tão grandiosos que já poderíamos navegar entre as estrelas. Em meu reduto eu esquento comida, provoco o crescimento fértil e abundante de plantas comestíveis ou têxteis, esquento a água do banho, ilumino todos os aposentos e capto som e imagem de locais distantes, além de animar aparelhos que varrem, limpam e arejam. Se eu dependesse do Olho seria obrigado a utilizar minha própria energia psíquica para fazer a décima parte do que eu consigo. Está percebendo?
     - Está querendo me dizer que é melhor a gente se virar sem o Olho?
     - É mais ou menos isso. Infelizmente, nosso mundo não está suficientemente maduro para apreender essa idéia. Terá de aprender tudo por força das circunstâncias.
     Leandro fitou-o, muito sério.
     - Foi você, então, quem roubou o Olho.
     - Imaginei que você deduziria isso. Foi uma das raras ocasiões em que utilizei a magia que conheço, pois precisei hipnotizar os guardas.
     Leandro puxou a sua adaga.
     - Eu lamento, Mestre, mas tenho de lhe pedir que me entregue o objeto. Vim aqui cumprir o meu dever, que jurei cumprir.
     - Não percebe, meu caro, que estará servindo melhor o Reino se permitir que o progresso técnico e científico tenha livre trânsito. A magia deveria ser praticada apenas por quem se interessasse, pois atropela as leis naturais e, neste caso, nos deixa a todos dependentes de um objeto inanimado, deixado por uma raça com a qual já não mantemos contato. Além disso, antigos textos afirmam que a intenção dos Dragões não era essa, que vivêssemos sob a total dependência do Olho; ele foi posto aqui como um coadjuvante, que não deveria impedir a humanidade de pensar e de trabalhar, pois, resolvendo tudo por mágica, tornamo-nos uma raça de ociosos.
     - Talvez tenha razão, Rodrigo, mas isto está além da minha alçada. Entregue-me o Olho, antes que eu seja obrigado a tomar uma atitude violenta.
     - Se não sabe do que é capaz um gato de antenas, aconselho-o a não tentar nada. Quanto ao Olho, posso devolvê-lo; mas não será fácil colar os pedaços.
     - Então quer dizer...
     - Sim, meu amigo. Está tudo aqui, nesta caçamba; veja com seus próprios olhos.
     Leandro, que conhecia bem o Olho, foi obrigado a reconhecer:
     - É ele mesmo... não imaginava que podia ser quebrado...
     - Fácil garanto que não foi. Escute, Capitão, por que não deixa as coisas como estão? Que adiantará levar-me à prisão? Ninguém sabe onde estão os Dragões para pedir outro Olho a eles. Sem as forças mágicas do objeto, que funcionava como uma usina, só operará com magia quem dispuser de real aptidão, o que é a situação ideal. Os problemas do dia-a-dia serão resolvidos com o auxílio dos cientistas, esta classe até aqui tão desprezada. Agora é que começaremos a ser realmente civilizados. Qual é o verdadeiro patriotismo? Cumprir à risca regulamentos que não passam de tabus – como essa história de considerar irreversível e intocável nossa relação com o Olho, que nos tira a liberdade – ou tomar atitudes libertadoras e renovadoras, seguir um caminho que beneficiará a todos?
     - Mas... mas... e quanto tempo isto levará?
     - Anos sem dúvida, até tudo entrar nos eixos. É por isso que temos de começar desde já. Há outros sábios empenhados em convencer a aristocracia de que o caminho da Ciência é o melhor. Ajude-me no que realmente interessa e esqueça esse Olho.   
     Ao se retirar, já convencido da revolução tecnológica, Leandro comprometeu-se a não contar nada ao monarca e a aguardar os acontecimentos. O que vira em casa de Ricardo terminara por convencê-lo.
     Desceu lentamente a colina, e suspirou contemplando as distantes estrelas. Dias muito difíceis haviam chegado, mas de algum modo a humanidade iria superar a tudo aquilo. Ricardo estava com a razão. Por que vincular toda a viabilidade de uma civilização a um objeto deixado por outra raça?
     
         
    
     
      Leandro chegou ao local em que passava o comboiocão, que daquele trecho se dirigia às proximidades do Palácio Real. Foi nesse ponto que começou a duvidar dos seus próprios critérios, pois havia pelo menos um dado importante que ele acabara olvidando: as catástrofes que vinham se acumulando nos últimos dias. Furacões, tsunamis, terremotos, aparecimento de monstros, tudo isso vinha ocorrendo. Será que a Ricardo não importava o sacrifício de tantas pessoas? Leandro pensou, pensou, enquanto viajava no minhocão, e chegou à conclusão de que teria de voltar ao refúgio do sábio e confronta-lo com aquele problema. Estimular a tecnologia científica poderia ser uma coisa saudável; mas não se poderia fazer tal coisa à custa do equilíbrio do próprio planeta.
     Por outro lado, com o Olho quebrado o que se poderia realmente fazer? A situação era tão extrema que o oficial não se decidia a denunciar Ricardo ao Rei. Que adiantaria isso? O melhor seria ter outra conversa com o sábio, mais esclarecedora. Que soluções ele teria no caso dos desastres? Ou como seria possível restaurar o Olho? Em último caso Ricardo pretendia resgatar o objeto, mesmo em pedaços, para que fosse examinado pelos magos da Corte, que ultimamente andavam meio desmoralizados.
                                                    


     


      Na noite seguinte, após encerrar o seu expediente, Leandro desdenhou o descanso e dirigiu-se novamente à colina de Ricardo, algumas milhas ao noroeste. Contava que o sábio não esperava o seu regresso. Esperando surpreende-lo, ia palmilhando o caminho tortuoso que levava ao reduto do cientista. O cair da noite tornava amedrontador aquele trecho, onde árvores enfezadas ostentavam aparentes braços com garras ameaçadoras, simples galhos raquíticos que no escuro estimulavam a imaginação de coisas macabras. O vento soprava e uivava, inofensivos quirópteros frugívoros e insetívoros esvoaçavam guinchando em várias direções e a suindara estridulava agourentamente. Leandro não gostava de sentir medo e procurava agir com base nessa postura.
     Aproximava-se a meia-noite quando Leandro, espalhando os cascalhos que pisava pelo caminho, avistou sob a luz da Lua um vulto esguio que se afastava lentamente do edifício, acompanhado por alguma espécie de animal quadrúpede. Seguia em direção oposta, rumo à outra vertente, onde as árvores eram mais copadas e numerosas. Leandro, mãos nas algibeiras, estugou o passo, bafejando naquele ar frio e úmido. Parecia-lhe muito suspeita a escapada noturna daquele homem. Ganhando algum terreno, Leandro percebeu que o sábio carregava algum volume envolto em algum manto ou coisa parecida. Em meio às penhas, recheadas de primitivas litogravuras, às lápides seculares que se espalhavam pelo terreno e que contribuíam para afastar curiosos, e aos megalitos encontradiços pelo talude, de algum modo aquele homem dava a impressão de estar cuidando de algum negócio secreto, misterioso.
     Leandro teve a certeza disso quando a silhueta de Ricardo se desenhou contra um velho baobá e uma coisa inacreditável aconteceu, diante dos olhos do capitão da Guarda Real: uma espécie de painel corrediço se abriu, deixando entrever uma passagem no corpo lenhoso da gigantesca árvore. Ricardo se prontificava a entrar, quando seu braço esquerdo foi vigorosamente seguro:
     - Será muito atrevimento de minha parte, ó Mestre, indagar aonde pretende ir por essa estranha via?
     Ouviu-se um rosnado felino, e Leandro acrescentou:
     - Avise o seu bichano que a minha lâmina é bem afiada, Mestre.
     - Quieto, Custódio!
     Fitou o seu interlocutor com olhar penetrante, e falou:
     - Talvez, Capitão Leandro, possamos chegar a um entendimento.
     - Será muito difícil para mim entender-me com traidores.
     - Não sou um traidor, mas nem tudo pode ser dito a todos. Quer saber o que está havendo, Capitão? Acompanhe-me. Disponho de tochas.
     - Aonde dá este túnel, afinal?
     - No lugar onde se revelam os covardes e os heróis. Veremos quem você é. Acompanhe-me, por favor.
     Ricardo deu as costas a Leandro e entrou, acompanhado pelo gato. Seria fácil ataca-lo. Dando de ombros, Leandro seguiu-os e a estranha porta se fechou por trás deles. Ricardo entregou uma das tochas ao outro e seguiu caminho, silencioso e impassível.
     Logo, logo estavam descendo, num ambiente úmido e limoso. Portavam ambos tochas acesas e os olhos esverdeados do gato de antenas brilhavam estranhamente naquele caminho repleto de fungos variegados. Por fim deram numa estreita saída nas rochas e, passando por ela, viram-se numa espécie de boqueirão, um lugar esquecido e de difícil acesso dentro de um canhão da Serra da Máscara.
     - Como viemos parar tão longe? – indagou Leandro, perplexo.
     - Atravessamos um atalho mágico. Aqui, neste sítio, poderemos descobrir que fim levou o Olho.
     - Mas como? Ele está com você, e você o quebrou...
     - Absolutamente. Eu tentei afastá-lo do caminho porque os riscos são terríveis. Mas como você voltou, terei de aceitar a sua ajuda.
     - Que mistificação é essa? Previno-o de que a minha paciência tem limites.
     - Não tire conclusões apressadas. O que eu lhe mostrei foi uma réplica em módulos do verdadeiro Olho, com o que eu consigo em matéria de magia pude reproduzir um objeto semelhante, mas sem os mesmos poderes. Nós estamos num sítio que possui mágica residual muito forte e por isso, assim que montarmos a réplica, ela nos indicará o paradeiro do original. Assim espero, pelo menos.
     - Tão simples assim?
     - O que quer dizer? Levei semanas trabalhando nesse artesanato.
     - Você então sabia de tudo e mentiu para mim. Como quer que eu confie agora?
     - Você quer salvar nosso mundo, não quer? Então vamos adiante. Não temos tempo a perder.
     - Quer dizer que você não passou essas últimas semanas buscando o nirvana do jeito que eu o encontrei/
     - É claro que não. Isso foi só um pouco de relaxamento. Vamos, me ajude.
     - O que vamos fazer?
     - Primeiramente, estabelecer um apoio para o objeto.
      Ricardo retirou de um alforje que carregava a tiracolo uns tubos que montou anexando-os uns aos outros, formando uma comprida antena; o mais largo possuía um tripé para apoiar no chão. Com a ajuda de Leandro, formaram a base para apoiar o Olho, cujos pedaços foram rapidamente soldados por adesão espontânea. Ricardo então colocou, surpreendentemente, seu gato equilibrado sobre o falso Olho.
     - Para que isso? – indagou Leandro,  muito espantado.
     - Você não sabe que os gatos de antenas possuem muitos poderes mágicos? O Custódio vai nos mostrar o que aconteceu.
     - Espere! Por que você disse que é perigoso?
     - Se forças estranhas ocultaram o Olho, não vão gostar de ser desmascaradas. Fique atento!
     Custódio, esforçando-se para se equilibrar sobre o exíguo objeto, esticou suas antenas para a frente e delas saíram raios luminosos que formaram como que uma tela cinematográfica no ar, e nela se animaram imagens. Os dois homens contemplaram atentamente o inusitado espetáculo.
     Parecia um filme de paleontologia, onde apareciam animais pré-históricos e catástrofes primaciais. Logo foram vistos os dragões extraplanetários e racionais que um dia haviam presenteado a humanidade com diversos dons, especialmente o Olho. E aí surgiu, em pergaminhos cobertos de escritas cuneiformes primitivas, o testamento então outorgado, e cujo paradeiro era ignorado desde as Guerras dos Mutantes, um milênio atrás.
     - Você entende o que diz aí?  - indagou Ricardo, indeciso.
     - Sim, é claro, eu estudei os primitivos idiomas. Isto aí é muito importante, pois esclarece bem a situação.
     - Como assim?
     - Os dragões não deram o Olho para que ele gerisse indefinidamente a vida deste mundo. Havia um prazo para o seu uso, findo o qual a humanidade deveria estar apta a se virar sozinha. Mas isso, que no passado era conhecido, foi-se da nossa lembrança, com as águas do olvido.
     - Mas é o que diz aí?
     - Diz textualmente: “A raça humana poderá utilizar o Olho que aqui deixamos durante três milênios, e durante este tempo ele controlará a Magia, e por esse modo sustentará a civilização. Passado porém este prazo, o Olho retornará ao nosso domínio, pois supomos que a sua missão estará terminada, e a humanidade deste planeta já saberá guiar a si própria.”
     - Hum... – Leandro estava incrédulo.
     - Pode crer que é isso mesmo, Capitão. Os guardiões do Olho, ao longo dos séculos, esqueceram a restrição inicial e todos pensavam que o artefato nos serviria eternamente. Ora, isto não é verdade. E é por isso, eu repito, que se torna tão premente que a nossa raça desenvolva a técnica para substituir a magia.
     - E não teremos mais magia, Ricardo? Poderemos viver sem ela?
     - A magia, que estava espalhada por toda a parte, irá se esgotando e acabará sendo praticada apenas pelos magos autênticos. Os demais serão seres humanos comuns, como é certo afinal de contas. Se eu fosse você não me preocuparia mais com isso.
     - Espere! Como vamos ter certeza de que o artefato deixou realmente este mundo?
     - É só o Custódio nos mostrar o resto.
     As imagens continuaram a desfilar. Por fim apareceu o Olho, majestoso, as eras passaram por ele até que, em meio a imagens contemporâneas de festas no castelo real (como a simbolizar a inconsciência ou alienação das pessoas) o Olho foi visto desprender-se de seu pedestal, enquanto os vigias caíam sob forte torpor. E o olho subiu com a velocidade de um bólido, não sendo mais visto...
     Leandro pôs a mão direita sobre os olhos.
     - Não posso acreditar. O que vou dizer aos soberanos? Ao primeiro-ministro?
     Ricardo deu de ombros, mal escondendo o desprezo em seu tom de voz:
     - Por que não fala simplesmente a verdade? Afinal a culpa não é sua.
     - E se não me acreditarem?
     - Que diferença isso fará, pode me dizer? Acreditando ou não acreditando, a situação não irá mudar.
     - Mas você já sabia disso tudo!
     - Verifiquei a verdade junto com você. O que eu sabia ou suspeitava é fruto de indícios antigos, e de deduções, mas faltava a comprovação final, para o que eu precisava desse simulacro de Olho e do meu mascote.
     - A perda da magia acabará com muitos privilégios e mordomias... estamos às vésperas de grandes catástrofes...
     - Admira-me, Capitão Leandro. Tudo isso é uma bênção. Já pensou em quanto a nossa civilização se estagnou, porque tantos deixaram de trabalhar, de inventar e pesquisar, porque tudo se resolvia com mágica? Não reparou que estávamos há séculos vivendo num mundo de evolução paralisada?
     - Tudo o que você diz pode ser sensato, mas não impedirá arruaças e mortes, sedições e motins. Turbas se revoltarão contra o novo estado de coisas e o sangue será derramado.
     - São os ossos do ofício – e Ricardo tornou a dar de ombros. – bem, vamos embora.
     - Não temos mais nada a fazer aqui?
     - Há perigo de sobrecarga mágica, o que provocará distúrbios metabólicos muito sérios em nós três. Este recanto está singularmente carregado. Vamos recolher o Olho secundário e “azular” daqui. Acho que você já viu o bastante.
     Recolheram tudo mas, ao retornarem caminho, Leandro perguntou:
     - O que você pretende fazer com seu “Olho Secundário”?
     - Desmonta-lo e guardá-lo, ora...
     - Você está sendo pouco sensato, Mestre. Já vimos que um pouco de magia controlável o seu artefato possui. Crê que uma civilização tão acomodada como a nossa passará sem magia de uma hora para outra? Só com a magia dos mestres? Ofereça este objeto aos soberanos, quem sabe poderemos minimizar o problema...
     - Temia que me pedisse justamente isso. Imagino que será inevitável, mas o fato é que a situação anterior jamais se repetirá e a capacidade deste objeto será muito menor, bem como a sua vida útil. Eu não sou um dragão etéreo. Sou apenas um pobre humano mortal.
     - Tudo bem. Afinal, os Homens sempre fazem o que podem.
     Custódio miou... um longo miado de entediamento.
     Atravessaram, de tochas na mão, todo o longo caminho de volta. Fizeram todo o resto do percurso num silêncio mortal. Cada um deles pensava, com seus botões, o que seria o futuro de Delamar diante da nova e irreversível situação.