CLARICE LISPECTOR - A paixão segundo GH
Em: 09/02/2015, às 16H26
estou procurando, estou procurando. Estou tentando
entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas
não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi,
tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me
aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a
saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar
desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque
saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso
prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no
que vivi - na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o
tinha, e sei que não tenho capacidade para outro.
Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei
perdida porque não saberei onde engastar meu novo modo de ser -
se eu for adiante nas minhas visões fragmentárias, o mundo
inteiro terá que se transformar para eu caber nele.
Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é
mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma
terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que
fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E
voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca
tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é
que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta
e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por
mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.
Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta
minha nova covardia - a covardia é o que de mais novo já me
aconteceu, é a minha maior aventura, essa minha covardia é um
campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la -, na
minha nova covardia, que é como acordar de manhã na casa de
um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir. É
difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei
depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de
novo a mentira de que vivo. Até agora achar-me era já ter uma
idéia de pessoa e nela me engastar: nessa pessoa organizada eu
me encarnava, e nem mesmo sentia o grande esforço de
construção que era viver. A idéia que eu fazia de pessoa vinha de
minha terceira perna, daquela que me plantava no chão. Mas e
agora? estarei mais livre?
Não. Sei que ainda não estou sentindo livremente, que de
novo penso porque tenho por objetivo achar - e que por segurança
chamarei de achar o momento em que encontrar um meio de
saída. Por que não tenho coragem de apenas achar um meio de
entrada? Oh, sei que entrei, sim. Mas assustei-me porque não sei
para onde dá essa entrada. E nunca antes eu me havia deixado
levar, a menos que soubesse para o quê.
Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha
montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar
perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o
que não entendo quero sempre ter a garantia de pelo menos estar
pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. Como
é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em
relação: a ser? e no entanto não há outro caminho. Como se
explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o
que for sendo? como é que se explica que eu não tolere ver, só
porque a vida não é o que eu pensava e sim outra como se antes
eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal
desorganização?
E uma desilusão. Mas desilusão de quê? se, sem ao menos
sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas
construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a
um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz
porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes não me era
bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a
esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O
medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas por que
não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o
sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade.
No entanto na infância as descobertas terão sido como num
laboratório onde se acha o que se achar? Foi como adulto então
que eu tive medo e criei a terceira perna? Mas como adulto terei a
coragem infantil de me perder? Perder- se significa ir achando e
nem saber o que fazer do que se for achando. As duas pernas que
andam, sem mais a terceira que prende. E eu quero ser presa. Não
sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Mas
enquanto eu estava presa, estava contente? Ou havia, e havia,
aquela coisa sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira?
Ou havia, e havia, aquela coisa latejando, a que eu estava tão
habituada que pensava que latejar era ser uma pessoa. É?
Também , também.
Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi
minha formação humana. Não sei se terei uma outra para
substituir a perdida. Sei que precisarei tomar cuidado para não
usar superficialmente uma nova terceira perna que em mim
renasce fácil como capim, e a essa perna protetora chamar de uma
verdade Mas é que também não sei que forma dar ao que me
aconteceu. E sem dar uma forma, nada me existe. E - e se a
realidade é mesmo que nada existiu?! Quem sabe nada me
aconteceu? Só posso compreender o que me acontece mas só
acontece o que eu compreendo - que sei do resto? O resto não
existiu. Quem sabe nada existiu! Quem sabe me aconteceu apenas
uma lenta e grande dissolução? E que minha luta contra essa
desintegração está sendo esta: a de tentar agora dar-lhe uma
forma? Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção à
substância amorfa - a visão de uma carne infinita é a visão dos
loucos, mas se eu cortar a carne em pedaços e distribuí-los pelos
dias e pelas fomes - então ela não será mais a perdição e a
loucura: será de novo a vida humanizada.
A vida humanizada. Eu havia humanizado demais a vida.
Mas como faço agora? Devo ficar com a visão toda, mesmo
que isso signifique ter uma verdade incompreensível? ou dou uma
forma ao nada, e este será o meu modo de integrar em mim a
minha própria desintegração? Mas estou tão pouco preparada para
entender. Antes, sempre que eu havia tentado, meus limites me
davam uma sensação física de incômodo, em mim qualquer
começo de pensamento esbarra logo com a testa. Cedo fui obrigada
a reconhecer, sem lamentar, os esbarros de minha pouca
inteligência, e eu desdizia caminho. Sabia que estava fadada a
pensar pouco, raciocinar me restringia dentro de minha pele.
Como, pois, inaugurar agora em mim o pensamento? E talvez só o
pensamento me salvasse, tenho medo da paixão.
Já que tenho de salvar o dia de amanhã, já que tenho que ter
uma forma porque não sinto força de ficar desorganizada, já que
fatalmente precisarei enquadrar a monstruosa carne infinita e
cortá-la em pedaços assimiláveis pelo tamanho de minha boca e
pelo tamanho da visão de meus olhos, já que fatalmente
sucumbirei à necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar
delimitada - então que pelo menos eu tenha a coragem de deixar
que essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si
mesma endurece, a nebulosa de fogo que se esfria em terra. E que
eu tenha a grande coragem de resistir à tentação de inventar uma
forma.
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