Chernobyl: a tragédia que não pode ser esquecida
Por Miguel Carqueija Em: 09/08/2017, às 17H41
CHERNOBYL: A TRAGÉDIA QUE NÃO PODE SER ESQUECIDA
Miguel Carqueija
Resenha do livro “Bonecos de neve e Chernobyl” editado no Brasil pela Academia de Ciências do Estado de São Paulo e Associação dos Amigos de Chernobyl no Brasil, São Paulo-SP, 1996. Coordenação da tradução: Keizo Tokuriki. Título original (traduzido): “Rastro do vento negro”, editado por Chernobyl – União Social Ecológica da Bielorússia (1995).
Impressionante este livro de depoimentos que parece ter sido pouco divulgado no Brasil. Na madrugada de 26 de abril de 1986 ocorreu o terrível escapamento radioativo em Chernobyl, usina nuclear situada na Ucrânia, e pelos fatores locais, de geográfia e ventos, atingoi principalmente a vizinha Bielorússia — países que, na época, faziam parte do império comunista conhecido como União Soviética, dominado pela Rússia. Apresenta o livro pungentes depoimentos em forma de redações, de adolescentes com 13 a 17 anos, 25 ao todo, sobreviventes da tragédia, que vivenciaram quando ainda crianças. Os escritos são de 1994. Por aí se vê que adolescentes podem sim, saber se expressar e escrever coisas bonitas e profundas, apesar da ideia geralmente aceita no Brasil de que adolescente só fala gíria. Mais importante ainda, porém, é chamar a atenção para a tragédia cujos efeitos continuam a se fazer sentir; constatar a má fé com que o regime agiu, abafando a verdade dos próprios moradores das regiões circunvizinhas à explosão; concluir enfim que o que aconteceu naquele sombrio dia equivaleu a um ataque atômico, como se estivesse ocorrendo uma guerra nuclear. Daqui para a frente, quando se mencionar Hiroshima e Nagasáki será preciso acrescentar Chernobyl.
Vamos agora pinçar fragmentos desses depoimentos:
NATÁLLIA IARMOLENKA (16 anos, 11ª série, Bráguinsk))
“Logo após o acidente as pessoas ficaram caladas e evitavam fazer comentários sobre o assunto. A população não teve acesso às informações sobre o que realmente ocorreu. A verdade foi escondida e as pessoas não se deram conta da gravidade da situação. Sem orientação sobre os perigos da contaminação radioativa, foram abandonadas à própria sorte. Tempo precioso foi perdido sem que se tomassem as precauções que hoje sabemos serem necessárias.”
MIHAS VINNIK (aluno da nona série, Bábruisk)
“Na “zona de Chernobyl” não se pode cultivar cereais, não se pode beber água, há perigo no ar que se respira e a casa do vovô tornou-se imprópria para se viver. Para a terra contaminada de Chernobyl, nem nossos filhos nem nossos netos poderão retornar.”
LIUDMILA LÁPTSEVITCH (aluna da décima série, Minsk)
“As pessoas que moravam no raio de 30 km, ao serem evacuadas levaram alguns animais domésticos mas tiveram que abandonar os gatos e cachorros. Em pouco tempo, esses animais se tornaram selvagens e perigosos, obrigando a realização de operações de extermínio.”
GALINA POTEENKO (aluna da décima-primeira série, Rétchits)
Galina transcreveu o relato que ouviu de um motorista convocado para operações de emergência... de extermínio de gado:
“Já viram alguma vez cavalos chorar derramando lágrimas? É um acontecimento muito raro. Pois eles choravam. Choravam alto. Como se fossem crianças pequenas. Ao serem colocados na carroceria, eles deitavam suas cabeças sobre a cabine do motorista. Era como se estivessem querendo firmar seus corpos. O choro miserável dos cavalos machucou meu coração. Eles seriam atirados no precipício ficando com os ossos estraçalhados. Fiquei imóvel, cobri o rosto com as duas mãos e chorei em voz alta.”
E Galina escreveu este poema:
“Chernobyl!
Quanta tristeza e choro
Você trouxe aos lares
Alguém disse: — Foi uma falha.
O coração de alguém se machuca, de alguém...
Uma coisa dessas não pode se repetir jamais.”
VIKTOR TORÓPOV (30ª Escola Técnica Naval, Gómel)
“Antes do acidente de Chernobyl, o egoísmo, o desinteresse e a irresponsabilidade eram intensos. Ao Governo faltava liderança; havia até pensamentos imorais como: “Os líderes sabem tudo. Nós precisamos apenas alcançar nossa meta dentro de um determinado prazo.” Chernobyl é o resultado final.”
VICTOR BISOV (15 anos, oitava série, Kritchiova)
“Ninguém nos avisou que havia perigo em comer os morangos e cogumelos no bosque...”
GALINA RÓDITCH (décima série, Tchetchersk)
“Na ocasião, ninguém sabia o que havia acontecido em Chernobyl. As asas negras de Chernobyl cobriram totalmente a Bielorússia. Ignorávamos que o pó da radioatividade caía no bosque, nos campos de trevos, nos pastos, nos rios Soj e Dniepr, nos parques coloridos de flores, nos telhados das casas. Como um furacão negro invaida nossas vidas. A radioatividade invisível se espalhava e as tireóides eram atingidas pelo iodo radioativo. Mas ninguém dera alerta.”
KIRA KÚTSOVA (15 anos, décima série, Pinsk)
“Aquele horrível acidente de 1986 mudou o destino de muita gente.Mais doloroso ainda foi observar que muitos adultos, por demais egoístas, conseguiram enriquecer se aproveitando da infelicidade alheia.”
TATIANA AKUTSIONOK (nona série, Radáchko)
“Chernobyl, banquete nuclear
Um presente mortal para a minha terra natal
O mapa de contaminação revela os vestígios de sua garra
No mapa desenhado no caderno escolar
Há inúmeras manchas nas páginas brancas
Em qualquer páginas apenas rios extintos
Em qualquer página só bosques destruídos
Além da aldeia sem uma viva alma
O triste lamento das velhinhas solitárias
Isto pode continuar eternamente?
Não há salvação para esta desventura?”
LIUDMILA TCHÚBTCHIK (14 anos, sétima série, Leltchits)
“Oh! Deus misericordioso! Qual o sentido deste sofrimento? A minha terra natal, a minha Poléssie é uma terra farta de morangos e cogumelos. As uvas-do-bosque vermelhas também são famosas. E tudo isso foi totalmente envenenado num piscar de olhos.”
ÍGOR MAROZ (11ª série, cidade de Chklova)
“Já estou sem vontade de lutar contra esta doença. As convulsões não param. O remédio não faz mais efeito. Tenho muito medo.”
EVGUÉNI PETRACHÉVITCH (décima série, município de Kolinkovitch)
“Dizem que a vida humana é preciosa e nobre e, no entanto, as crianças na zona rural estão morrendo sufocadas pelo próprio sangue. Os meninos de Narovlia desmaiam durante a aula. Em Bráguinski, uma professora não consegue estancar a hemorragia das meninas. Por que desviarmos a vista destes fatos? O que será que podemos fazer para salvar estas crianças infelizes? (...) Na Bielorússia existem cinco milhões de alunos nesta condição. Nós comemos as maçãs envenenadas por estrôncio, tomamos o leite que contém césio, andamos e brincamos sobre a terra poluída por radioatividade com quantidade suficiente para matar. Chernobyl está continuamente corroendo a nossa saúde, a nossa alma e o nosso destino.”
OLGA DETINK (19 anos, 11ª série, Minsk)
“Naquele momento não sabia o que estava acontecendo dentro do meu corpo. O césio se acumulava em meus músculos, irradiando-os. Só depois de alguns anos soube, através de mamãe que tinha ido ao médico, que eu estava na fase terminal de um câncer.”
ALIAKSEI KHILKO (aldeia Gýlitch, município de Kirausk)
“Orientaram-me para consumir alimentos como noz, laranja, banana, abacaxi, a fim de diminuir o nível de radioatividade em meu corpo. Mas onde arranjar tais alimentos?”
OLGA ANTÓNOVITCH (oitava série, Gómel)
“Mamãe! Eu não posso vê-la feliz de verdade. Tudo aconteceu a partir daquele dia, no Centro de Medicina da Radiatividade de Minsk, quando ela ficou sabendo que meu irmãozinho estava doente da tireóide. Mamãe desmoronou em prantos. Desde então uma terrível insegurança instalou-se no coração de meus pais. Daí em diante, para combater a doença de meu irmãozinho, experimentamos momentos de angústias infernais. Foi operado duas vezes. O tratamento foi horroroso e demorado, além de todos aqueles exames...
Apesar de todo sacrifício, meu irmãozinho foi uma das primeiras vítimas de Chernobyl. Quantos serão em toda a Bielorússia?”
VOLGA GANTCHAROVA (16 anos, nona série, Barisava)
“Os líderes do acidente de Chernobyl se esconderam na sombra. Ainda hoje não querem lembrar que impuseram enorme sofrimento a tantas pessoas, nem assumir essa responsabilidade.”
VOLGA SEMIANTCHUK (11ª série, Gómel)
“Chernobyl é terror, é terror para todas as coisas do futuro.Nos faz desconfiar do bosque, da água límpida e até do céu. Agora tenho medo de ir ao médico. Não sei o que dirá após o exame.”
SVIATLANA SKAMARIKHAVA (DÉCIMA SÉRIE, Gómel)
“Na escola, a quantidade de alunos não parava de diminuir. A professora responsável pela classe também acabou nos deixando e, assim, foi substituída.(...) Comprovou-se que eu estava doente e que elementos estruturais do meu sangue haviam mudado. O médico aconselhou-me a ficar pelo menos um ano fora do local onde morava, comer bastante caviar e beber suco de romã fresca. Conselhos impossíveis de serem cumpridos por minha família.”
NATÁLLIA IASKÉVITCH (10ª série, Lúlinets)
“A minha terra foi conhecida como a aldeia dos cogumelos. Não me esqueci do sabor e do aroma de vários tipos de cogumelos. Agora tudo isso passou a ser uma simples lembrança.”
NATÁLIA NEVÍNNAIA (16 anos, décima série, Lulinets)
“Em meio à tragédia não estamos sós, recebemos ajuda humanitária de todo o mundo. É muito valiosa tal ajuda, que nos aproxima de pessoas que compreendem a infelicidade alheia. Elas nos trazem não apenas palavras reconfortantes, mas buscam compartilhar a dor através de ações, enviando-nos remédios, alimentos e equipamentos.”
TATIANA AKÚLEVITCH (16 anos, décima série, Kalinkovitsk)
“Ao invés de somar mais vítimas de Chernobyl entre meus amigos e conhecidos... gostaria que os pássaros voltassem a cantar como antes, que uma chuva sem radioatividade pudesse umedecer generosamente o solo, e que os nossos vizinhos aposentados cantassem novamente nas reuniões noturnas, ao redor daquele banco perto da casa de vovó.”
“Senhor, eu prometo rezar todos os dias por todas as pessoas que admiro e amo. Por favor, ajudai minha alma que está suplicando e libertai a minha terra e a minha pátria.”
ELÉNA MÉLNITCHENKO (17 anos, Escola Técnica de Dzerjinski)
“Alguns dias depois, tivemos que abandonar Pogónnoe. Meu coração dói quando me lembro das crianças que gritavam e choravam e dos idosos que não aceitavam a ideia de deixar sua vila para ir a um lugar desconhecido. Podíamos levar apenas o mínimo necessário. Só havia o desespero. Quantas lágrimas foram derramadas...”
MARIA GALÚBOVITCH (13 anos, 7ª série, Saligórsk)
“Antigamente as pessoas, ao falarem de um acontecimento ou outro, tinham como referência a guerra: “antes da Segunda Guerra”, “depois da Segunda Guerra”. Hoje em dia a referência é: “antes de Chernobyl”, “depois de Chernobyl”.Isso se tornou um capítulo muito triste da História.”
ELENA JIGUNOVA (16 anos, Escola Técnica profissionalizante de Gómel)
“Nós somos as vítimas de um aciedente ocorrido pela negligência de algumas pessoas. Atualmente estamos chocados e amargurados, sentindo a frieza dos que nos rodeiam.”
GALINA IÚRKINA (15 anos, vila Korótkovitch, município de Jlobin)
“Era de manhã, estava com sede e saí de casa. Casas, árvores, terra, tudo fôra coberto por uma fina camada de poeira cor de cinza. Pensei que uma guerra havia começado. Eu, como as outras crianças do planeta, tinha medo da guerra (...)
Pela primeira vez soube que meu fígado estava inchado. Após dois meses de internação, fui ao Casaquistão, por recomendação médica.
Nem lá pude ser salva. Quando percebiam que eu era vítima da radiação e por isso meu cabelo começava a cair, ninguém se aproximava de mim num gesto de amizade. Inúmeras vezes chorei por ter sido chamada de “a estranha”.”
Leitoras e leitores destes depoimentos. Primeiramente observo a profundidade, a sapiência muitas vezes, dos textos (redações mais ou menos compridas, aqui só pincei fragmentos significativos) de adolescentes, ou seja, daquelas pessoas que, conforme o preconceito muito em voga no Brasil, só sabem falar besteiras, obscenidades, gírias e palavrões. Precisamos pensar nos adolescentes como seres humanos sensíveis, dotados de raciocínio e por vezes de aguda inteligência, além de estudos razoáveis, e não como idiotas meio crescidos.
Muitas lições se podem lucrar na leitura deste livro impressionante. Antes porém fixemos o seguinte: a tragédia não acabou. As vítimas de Chernobyl ainda existem. A radiação é uma coisa insidiosa e que demora muito a diminuir. Sabemos, embora pouco se fale nisso, das pessoas que ficaram deformadas pelo resto de suas vidas por causa das explosões atômicas de Hiroshima e Nagasáki., Agora, quando pensarem nesses dois locais, pensem também em Chernobyl, um trágico retrato da estupidez dos homens.
Rio de Janeiro, 26 de julho a 9 de agosto de 2017.