Cassiano Ricardo - poeta sem parar
Por Gabriel Perissé Em: 30/06/2005, às 21H00
Nessa competição, muitos escritores e poetas que antes, entre nós, ocupavam os primeiros lugares, amargam agora o esquecimento e às vezes desaparecem para sempre no silêncio empoeirado das estantes. Por isso, cabe aos leitores e críticos recordar os títulos de seus preferidos, transcrever os melhores trechos, citar-lhes os nomes em conversas e artigos.
Por exemplo: Cassiano Ricardo (1895-1974). Membro da Academia Brasileira de Letras, com mais de 50 livros publicados (poesia e teoria literária), anda bastante desaparecido no mundo das livrarias e das pesquisas acadêmicas. Sorte sua que a cidade onde nasceu (São José dos Campos) presta-lhe verdadeiro culto. Lá foi criada a Fundação Cultural Cassiano Ricardo (www.fccr.com.br) e não são poucos os parentes e os são-joseenses preocupados em difundir sua obra.
Obra cuja característica principal está no lema que o próprio autor criou na década de 20: "Originalidade ou morte". Dos seus primeiros livros, Dentro da Noite (1915) e A Frauta de Pã (1917), até os últimos, Jeremias Sem-Chorar (1964) e Os Sobreviventes (1971), Cassiano abriu e experimentou diferentes caminhos poéticos, "picado pelo demônio da curiosidade", como lhe dizia Manuel Bandeira.
O parnasianismo, o simbolismo, o modernismo, o neo-romantismo, o concretismo foram, nas mãos do poeta, instrumentos conceituais para a fabricação dos seus poemas. O fato mesmo de ter sido companheiro de idéias estéticas de Menotti Del Picchia, no início do século, e depois de Augusto de Campos e Mário Chamie, na década de 60, demonstra sua permanente flexibilidade, guiada, no entanto, pelo inflexível desejo de morder o coração do leitor.
Martim Cererê (1928) é o mais conhecido dos seus livros. Trata-se de um longo poema indianista e nacionalista, uma cosmogonia brasileira em que o índio, o negro e o branco tomam posse e inventam um novo país. O crítico Wilson Martins chega a afirmar que este poema fora escrito com um século de atraso, um poema que estava no destino dos românticos escrevê-lo, mas que também estava no destino dos modernistas escrevê-lo, e que, afinal, era a versão poética do Macunaíma.
"Mãe-Preta", trecho de Martim Cererê, demonstra bem o tom ao mesmo tempo épico e lírico que predomina na obra:
Quem é que está fazendo este rumor?
As folhas do canavial
cortam como navalhas;
por isso ao passar por elas
o vento grita de dor...
(O céu negro quebrou a lua atrás do morro.)
Druma ioiozinho
que a cuca já i vem;
papai foi na roça
mamãi foi tamém.
Em 1950, lança Poemas murais, que assumem a linguagem típica da época imediatamente posterior à Segunda Guerra - o tom combativo torna-se mais reflexivo, mais introspectivo, como no poema "O tocador de clarineta":
Quando ouvires o pássaro
Cantar em frente do teu quarto,
Naturalmente em vão,
não penses
que sou eu que aí vim tocar,
não.
Quando o vento disser,
ao teu ouvido de mulher
uma palavra
branca e fria como a cerração,
não penses que o vento fui eu,
não.
Quando receberes
uma carta anônima, trazida
por secreta mão
- quem será que assim me acusa? -
eu é que não serei,
não.
Quando ouvires, porém, no escuro,
a goteira caindo
sobre o triste chão, aí, então,
serei eu que estou batendo
na pedra
do teu coração.
Já na casa dos 60 anos, Cassiano ingressou na fase mais ousada de seu trabalho poético, publicando poemas que reúnem preocupações formais e humanísticas. Sua contundente crítica ao croncretismo era a de que os poetas desse movimento corriam o risco de se prenderem ao fascínio dos achados verbais, brilhantes, engenhosos, desconectados, porém, da angústia do homem moderno, sentida e tematizada pelas vozes mais ouvidas nas décadas de 50 e 60: Sartre, João XXIII, Heidegger, Marcuse, Erich Fromm, Hermann Hesse, entre outras.
Assim, ao mesmo tempo que empolgado pelas novas possibilidades da poesia - não só as já conhecidas possibilidades da poesia de verso livre, mas as de uma poesia livre do próprio verso -, Cassiano enfatizou a emoção e o conseqüente envolvimento do poeta com as questões existenciais mais prementes.
Envolvimento filosófico e estético com uma época planetária, em que os meios de comunicação nos fazem dar a volta ao mundo mais rapidamente do que Julio Verne poderia imaginar.
O poema "Rotação", de Jeremias Sem-Chorar, é expressão desse tempo em que o mundo tornou-se uma esfera entre outras num universo que o ser humano deseja explorar. No planeta Terra, antigo "vale de lágrimas", o homem não chora mais, desde que perdeu a visão por causa do coice de um cavalo no comício, e desde que perdeu a noção da gravidade graças às experiências dos primeiros astronautas. Sem lamentações estéreis, é preciso reaprender a esperança:
a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
de novo a esperança
na esfera
a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
na esfera
a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
na esfera
Se a "pedra no meio do caminho" de Drummond encarnava em tom monótono a perplexidade do homem em suas andanças sem rumo, o neo-Jeremias, ciente da monotonia da rotação igual, das demoras, dos males repetitivos da existência humana, contempla essa pedra-planeta que roda sem parar, extraindo da obrigatória espera uma nova esperança.
Nos últimos dez anos de vida, Cassiano desenvolveu e pôs em prática o conceito de linossigno, contribuição original para o pensamento poético pós-concretista. Os Sobreviventes, escrito no fim da década de 60 e no início da de 70, é o livro em que sintetiza consciência humanista e coragem estilística.
Por um lado, a consciência humanista vê a população dos sobreviventes, esse "Grande Ninguém", os deserdados, os subnutridos, os subvivos, todos aqueles que vivem no subsolo e lutam para (viver seria um luxo) sobreviver. É sobrevivente quem se espanta pelo fato de acordar e ainda estar vivo. Na espera ativa de que os sobreviventes sejam viventes de pleno direito, o poeta (e aqui entra a coragem estilística) desversifica a poesia, utilizando essa nova unidade compositiva, o linossigno, linha de palavras que não obedecem mais às regras da versificação. O linossigno é um "desenho" significativo, são as palavras dispostas na página sem o compromisso linear da frase ou do verso. O linossigno estabelece um ritmo gráfico, visual, quase cinematográfico.
O linossigno, explicava Cassiano Ricardo em seus ensaios e palestras, foi o neologismo que precisou criar para que entendêssemos o que ficou no lugar do verso, pelo menos de acordo com uma explícita concepção visual-cinética do poema. O linossigno, dizia ainda Cassiano, era um elemento tão diverso que chegava a ser o reverso do verso, um outro universo, mais condizente com o modo de olhar e ver do homem contemporâneo, ou de um novo homem que nascia. E, acrescentaríamos, com o modo de ler próprio dos internautas, que é mais "scannear", explorar, ver em conjunto, do que escandir, soletrar, linha a linha, verso a verso.
O poema "Fotomontagem" expressa, exemplifica e de algum modo coroa o esforço criativo de um poeta que era poeta sem parar, e cuja obra, verbalmente revolucionária, inspira um remontar as coisas:
I
A foto de um foguete
lunar
no ambiente copiado
a um quadro de
Mondrian.
O homem dividido
de quadrado em qua-
drado
no quadro.
Gabriel Perissé é doutor em Filosofia da Educação pela USP