CARTA-LOUVAÇÃO A NOTURNO DE OEIRAS E OUTRAS EVOCAÇÕES (*)
Por Elmar Carvalho Em: 01/01/2015, às 07H05
Prezado poeta ELMAR CARVALHO,
Acabei de ler o seu livro, “Noturno de Oeiras e outras evocações”, que você, a pedido de minha querida irmã Anatália, gentilmente me enviou.
Li-o de uma tacada, como se diz, pois não faz mais de uma semana que o recebi.
Li mais rápido que de costume, não para me desincumbir do compromisso de dar alguma satisfação ao autor, mas o li assim, vorazmente, porque o livro, por seus vários méritos, me aguçou o interesse.
Logo no início da leitura, lembrei-me do ensinamento da escritora americana, Susan Sontag, em seu Questão de Ênfase. Ensaios: não há livro digno de ser lido se não for digno de ser lido várias vezes. Não tive nenhuma dúvida de que ”Noturno...” devia ser lido, merecia ser lido, não uma, mas várias vezes. E é o que está sendo feito, poeta.
Além das virtudes próprias do livro, que são tantas, ele me dá, de lambujem, mais uma satisfação e um encantamento: rememorar Oeiras, retornar a Oeiras, reviver Oeiras.
O livro é Oeiras encadernada, viva, palpitante. Ele me levou a Oeiras, de onde saí ainda bem jovem em busca do conhecimento que ela não poderia mais me dar. Mas não sei, não sei...
Fico pensando, poeta, se Oeiras, hoje uma insofrida saudade, não teria me ensinado o pouco que hoje sei (ou penso saber) da vida e do mundo. Oeiras teria sido a minha universidade não oficial, pois ela, abrigando tantos professores titulares de vida, de experiência e plenos de generosidade, poderia, sem dúvida, ter ensinado muito e muito mais ao menino que fui e ao homem que seria.
Se, como dizem, o menino é o pai do homem, este menino de Oeiras, se por lá tivesse ficado, hoje teria muito mais para dar e transmitir a este adulto que agora lhe escreve. Mas, infelizmente, vi-me obrigado a cabular as aulas oficiadas pela mestra Oeiras, mas a ela sempre volto, pouco fisicamente, mas a todo tempo em que o tempo da memória e do afeto me permite.
Seu livro trouxe Oeiras a Belo Horizonte, trouxe-a a mim, com sua rotina modorrenta, suas tradições, seus odores, os meus amigos de infância, a escola e seus Mestres, suas lendas e ajudou-me a me recompor, a fazer uma remontagem emocional da nossa Oeiras. E logo me vejo em Oeiras, menino, quem sabe de calças curtas, na Vila do Mocha, assustado com os fantasmas que perambulavam ( e ainda perambulam) pelo Sobrado Velho (sobrado dos Ferraz?), pelos becos e pelos Cemitérios, velhos os dois.
Você, poeta, com sua arte e inteligência, recriou-me Oeiras, inteirinha. Tão animado fiquei que, por conta própria, tomei a liberdade de inserir, na sua moldura oeirense, os doidos de minha infância, os doidos de Oeiras: Antônio Bocão (seu Tonho), Ana Ruça, Dorête, Zé Doidim, Claro, e Sabino. Os alfenins de que você fala, levou-me a Sancha, vizinha nossa, que sabia fazê-los como ninguém, brancos, gostosos, macios, exatamente como você aponta no Noturno de Oeiras.
“Noturno de Oeiras”... Como comentá-lo? Tudo já foi dito sobre o poema e eu estaria tão só chovendo no molhado. Mas não resisto em comentar o verso “onde músicos falecidos acordam sons delicados”. Acordar (tecer acordes) e acordar (sair do sono). Magistral essa ambigüidade poética. Porque os músicos de Oeiras eram famosos por sua sensibilidade e destreza em compor e tecer pautas de rara beleza.
Mas esses músicos também, com o pretexto de seus versos, acordaram em minha memória e lá estou eu assistindo-os, embevecido, no coreto da antiga Praça da Bandeira, a praça mais bonita de quantas pude ver. Lá estão eles: Osíris (no trombone de vara), Levi (no pistom), seu Lico (no tambor), Tabaqueiro (nos pratos), Doca (na tuba). Esses e tantos outros, afora a atividade individual, reuniam-se na noite de toda quinta-feira para um espetáculo de musicalidade e talento com uma das bandas (eram duas) de que Oeiras dispunha.
Possidônio Queiroz é um capítulo à parte. Dono de raro talento para a música (tocava flauta) e as letras, possuía um conhecimento enciclopédico e uma capacidade invulgar de ser gentil e obsequioso. De todos os oeirenses, do mais letrado ao mais simples, exalava admiração e respeito pelo homem e pelo artista Possidônio.
Pois bem, o seu “Noturno...” é arte de fina e rebuscada engenharia literária e poética, é um régio presente às letras piauienses e à história e à memória de Oeiras. O progresso, poeta, tem o defeito de compartimentar a história, confinando-a nos limites de uma nesga de tempo vivida por determinada geração. Digo de outra forma: em termos de memória, as gerações só têm compromissos com o seu tempo. É necessário, de uma forma ou de outra, resgatar o tempo passado, tecer um liame vivo entre o ontem e o hoje, ensinar aos homens de agora a importância do exemplo e dos valores das gerações passadas.
Seu livro, poeta, é essa linha luminosa trafegando entre Oeiras atual, moderna (ou modernizada) e Oeiras dos sobradões, dos seixos nas ruas, dos Passos, da Casa da Pólvora, da Cadeia Velha, da Casa do Visconde, do Pé de Deus e do Diabo, das Igrejas, do relógio da Matriz (“com o mostrador roído pela pátina”), do Grupo Escolar Costa Alvarenga e do Ginásio Municipal Oeirense (nos quais estudei), das quintas (ainda se dizia “quintas”!) do Cel. Orlando (meu avô), de “seu” Tibério Siqueira e Morena (grandes amigos), do meu tio João Ribeiro (Santa Rita), dos umbus do Condado e de dona Clarice, do Poço dos Cavalos (onde quase me afoguei), do Morro do Leme, dos Urubus, da Sociedade...
Tempo em que os comerciantes fechavam suas lojas às 11h e só retornavam ao trabalho às 14, depois de uma tranqüila e reconfortante sesta. Naquele tempo todos sesteavam, só o velho relógio da Matriz insistia em manter-se acordado, repetindo suas “badaladas punhaladas” de susto e compromisso.
Tempo de homens e mulheres imperecíveis, cartilhas vivas nas quais, menino, aprendi um pouco (ou muito) do bê-a-bá da vida. É preciso, poeta, que as gerações atuais não se esqueçam das que se foram e o seu livro é um chamado a esse não-esquecimento, a essa reverência ao passado tão rico de homens e mulheres e das lições escritas e repetidas por eles.
É preciso que não nos esqueçamos de Joel Campos, Bembém, Xé, Edul, João Burane, Zé Sá, Raimundinho Sá, Pedro Ferrer, Pedro Sá, Luiz Rego e Odete, Gerson Campos e sua saudável irreverência, Orlando Carvalho e Anatália (meus avós maternos), Yaiá (minha avó paterna), Paulo de Tarso e Iolanda (meus pais), Mário Freitas e dona Conceição, Mãe Tonha, dona Sinhá e Iara (dos queimados), Antônio Gentil (da “casa das doze janelas doze donzelas”), de Galeno e Julieta, dos Tabaqueiros, de “seu” Natu e dona Darinha, de Zé Lopes, do Cônego Cardoso, do Mons. Leopoldo, de Tiborão e dona Cocota, minha mestra, vivíssima, graças a Deus.
Pedro Ferrer Mendes de Freitas, Pedro Ferrer do seu livro, jornalista e escritor dos bons, Ferrezinho para a família, Farroz para a molecada da nossa infância e meninice. Neto de um outro Pedro Ferrer, um dos homens mais elegantes, finos e gentis de minha época, um dos grandes amigos de minha família e, em especial, do meu pai.
Mas já escrevi muito, poeta, muito além do que devia. É que seu livro e seu acendrado amor por Oeiras transformaram você num amigo de longa data, aquele que nos dá total liberdade pra conversar, sem limites de tempo.
Muito obrigado pelo livro, vou relê-lo várias vezes, sempre em busca do prazer, do enriquecimento e conforto que sua leitura me dá.
Abraços afetuosos do amigo e admirador,
Elisabeto Ribeiro Gonçalves
(*) Tomei a liberdade de acrescentar esse título ao texto da magnífica carta que o Dr. Elisabeto Ribeiro Gonçalves me enviou, através de e-mail, que muito me desvaneceu e honrou.