Capoeira de Espinhos: oração de lançamento

[Dílson Lages Monteiro]

Senhoras e senhoras,

Era uma vez...

Era  uma vez uma sombra. Ela se estendia por um gigantesco círculo de acolhimento e estórias. Em seu abrigo de afeto, acolheu mais que as estações da natureza, mais que o sol e a chuva; mais que o vento e o calor; mais que as fisionomias e as cores de todas as sensações. Em seu abrigo de afeto,  mais  do que tudo, acolheu  a passagem do tempo.

Houve um tempo em que serviu para meninos peraltas vencerem as horas nas disputas e brigas dos jogos de peteca e triângulo. Houve um tempo em que era a guia dos jogos de bola, em duelos de palavrões e traquinagens.

Houve um tempo em que era a proteção para os namorados esquecerem o mundo. Houve um tempo em que se confundia com o sabor do álcool, destilado no movimento da praça insone. Houve um tempo em que o tempo fez-se multiplicar em suas asas ligeiras que ninguém para.

Houve o seu tempo, e ela findou. A velha figueira tombou e, dela, restam a lembrança de muitas memórias e o vazio que se abre para quem a conheceu. Mas ela obedeceu ao ciclo  de todo "ser" vivo e cumpriu a missão que a natureza lhe deu: dar sombra. O que faria a mais que se constituir como elemento da paisagem e encantar-nos com o que de melhor poderia oferecer?

Natural que secasse. Atingida por uma suposta praga, depois de muitas eras? Não se sabe de que padeceu. Não se sabe por  que moléstia, ou se por sede ou indiferença, ela morreu. Provavelmente, oca como estava, já não resistisse mais ao fluxo do ar e tombou. Dizem alguns, que foi tristeza. Dizem outros que medo. Dizem outros que, testemunha ocular de um tempo tenebroso, sacrificou-se para nascer  na esperança de um novo tempo sonhado. E se diz tanta coisa...

Quero crer que o tempo a tombou, depois de ela, com sua sombra, beleza e cheiros, acompanhar-nos na visão distante do rio para o qual sempre olhou, fincada no mesmo lugar, do alto de sua inclinação, no balanço de seus galhos rijos, olhando para o rio cristalino, parada, parada, sustentando o tempo, na força das suas antigas raízes. Elas estão lá: derreter-se-ão no fundo da terra – ou ali permanecerão cristalizadas, dividindo a matéria da química que desconheço, em meio ao concreto da calçada e da pequena praça.

Ela ficará para sempre num lugar que é o da linguagem, sem nome definido, mas que tem a forma chamada de  lembrança, a forma de muitos detalhes que se pluralizam na epiderme olfativa de quem a conheceu acolhendo, com seus braços longos e inclinados, a luz do sol e o horizonte das nuvens.

A velha figueira de nossa infância tombou. Natural, como já disse, que um dia tombasse e isso pudéssemos admitir. Diferentemente disso, não seria aceitável que, inertes, presenciássemos as cirandas da ilusão girarem continuamente na contramão das conquistas de mentalidade das últimas décadas, principalmente da ampliação do conceito de classe e dos mecanismos de controle social, e não transformássemos a palavra em uma forma de resistência. A palavra em documento de uma cultura a ser superada. Não transformássemos em questionamentos, que são os de qualquer aldeia, de qualquer cidade e, portanto, universais. O que é uma cidade?  O que é poder? Dito com maior clareza: para que serve, de fato, a cidade? Para que serve, de fato, o poder?

Inconcebível, principalmente, porque a palavra, mais do que resistência, materializada sob a forma de humor, é uma valiosa ferramenta para desconstruir ou interrogar os mecanismos de controle nocivos às relações humanas e sociais. Como lembra o linguista Sírio Possenti, ao fazer análise linguística de piadas, o humor, “além de se constituir em material muito interessante, porque  compreende temas socialmente controversos, opera com estereótipos e veicula quase sempre um discurso proibido”.

Não tecerei, aqui, quaisquer palavras a mais sobre a obra em si. Convido o leitor para, além do entretenimento que o texto literário habitualmente gera, questione de que modo se relaciona com a cidade, os seus semelhantes e as instâncias de poder. Acredito que o poder, independente de como se materializa e em que instância se situe,  seja o maior instrumento que, de melhor dispomos, para que as relações tenham um sentido menos individual e competitivo, e mais humano e afetivo.

Para isso, constituímo-nos como pessoas, ainda que a sociedade do espetáculo e do gramoor, potencializada pelas imagens sedutoras das tecnologias digitais, com suas tentações imediatas, opere sua roleta do lucro e a falácia da felicidade fácil. Como escreveu Frederico II, em O Anti-Maquiavel, “de todos os sentimentos que tiranizam a nossa alma, nenhuma há mais funesto para quem lhe sente a impulsão, mais contrário à humanidade, e mais fatal ao repouso do mundo, do que uma ambição desregrada, um excessivo desejo de falsa glória”.

Ainda que a influência da leitura da filosofia moral esteja nas entrelinhas deste projeto literário, leiam esta modesta obra, afastando quaisquer intenções moralistas; leiam com graça e ternura, porque com graça e ternura é que foi escrita. Afinal, “quem de nós, como perguntaria o personagem Constantino, não tem defeitos?”

Muito obrigado.

Breve oração proferida pelo escritor Dílson Lages Monteiro, por ocasião do lançamento do romance Capoeira de Espinhos, na Livraria Entrelivros, em Teresina, em 18.03.2017.