Cidade de Oeiras, no Piauí.
Cidade de Oeiras, no Piauí.

                                Reginaldo Miranda*

Desde seus primórdios até a Guerra da Independência, nenhum médico propriamente dito prestou serviços profissionais no Piauí. Isto porque nenhum piauiense logrou a láurea acadêmica nesta área do conhecimento humano. E não veio médico de fora estabelecer-se entre nossos ancestrais. Por isso, os primeiros colonizadores de nosso sertão curavam seus males com mezinhas aprendidas com os indígenas: entre folhas, cascas e raízes colhidas na flora regional. Os casos mais graves levavam a óbitos prematuros, daí a baixa expectativa de vida no período colonial.

Por essa razão, no segundo ano de sua gestão, o governador João Pereira Caldas fundou em Oeiras um hospital, o primeiro da capitania, mas sem profissionais qualificados, sendo administrado por um cabo e tendo por enfermeiro um soldado, ambos da companhia de dragões. Posteriormente, adoecendo esse governador, desabafou em carta datada de 21 de novembro de 1760, ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado:

“Para a brevidade com que faço esta [correspondência] concorre também a gravíssima moléstia com que fico no peito, em que na noute de anteontem padeci um fortíssimo ataque, que me tem obrigado ao uzo de diferentes remédios, e ao depurgar-me amanhã, com o que não sei se me restabelecerei, porque ainda ignoro qual é a cauza da minha queixa, nem será fácil averiguá-la por haver só aqui um mezinheiro com o nome de cirurgião, que em tudo obra à toa; porém não há outro remédio senão hi-lo aturando, até ver se escapando com vida das suas mãos, me chega o tempo de me livrar delas” (AHU. ACL. CU. 016. Cx. 7. D. 436).

Portanto, era essa a triste realidade da época, assim acontecendo com o governador da capitania, em plena capital, imagine com os demais moradores. A questão era estrutural, não havendo profissionais capacitados. Embora nenhum médico se estabelecesse no Piauí de antanho, conforme dissemos, nas décadas seguintes apareceram cirurgiões capacitados e licenciados para exercer a profissão. E aqui não se pode confundir com aquele profissional completamente leigo, o cirurgião-barbeiro. De fato, segundo os dicionários da época a profissão de barbeiro estava repartida em três[1] campos distintos: o fazer as barbas e cortar cabelos; o barbeiro de lanceta ou sangrador; e aquele que consertava e limpava espadas, também chamado alfageme. Esses profissionais não eram valorizados nem tinham status na sociedade, sendo seu trabalho considerado mecânico. São esses polivalentes barbeiros os precursores dos cirurgiões e seu trabalho consistia em intervenções com seus instrumentos em pústulas do corpo ulcerado, além de aplicarem ventosas e deitarem sanguessugas. Certamente, era um desses cirurgiões-barbeiros que tratava da enfermidade do governador João Pereira Caldas, em novembro de 1760.

No entanto, desde 1492, com a edificação do Hospital de Todos-os-Santos, foi iniciada em Portugal a medicina hospitalar. Com a destruição deste no terramoto de 1755, essa tradição do ensino de cirurgia vai ser continuada no Hospital de São José que então se edificou, ambos situados na cidade de Lisboa. Mas esta profissão não pode ser confundida com os médicos diplomados pela Universidade de Coimbra, tratando-se de um curso profissionalizante que habilitava cirurgiões e sangradores. No entanto, ambas as categorias estavam autorizadas a prestar cuidados de saúde, juntamente com outros profissionais igualmente aprovados. É importante ressaltar, que o Hospital de São José, serviu de base para a Real Escola de Cirurgia de Lisboa, fundada em 1825 e que ficou alojada em suas dependências. Em 1836, esta foi convertida na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, pondo fim à distinção[2] entre médicos e cirurgiões.

Felizmente, alguns anos depois, por fruto desses avanços, chegaram ao Piauí em épocas diversas, alguns poucos cirurgiões diplomados pelo Hospital de São José, entre esses: Francisco José da Costa Alvarenga, Francisco José Furtado e José Luís da Silva.

Francisco José da Costa Alvarenga, nasceu em Lisboa, no ano de 1758. Pertencia a uma família abastada e culta daquela cidade, com diversos de seus membros participando ativamente de sua vida cultural e econômica. Era irmão do médico José da Costa Alvarenga, cavaleiro professo nas Ordens de Santiago e de Cristo[3], formado pela Universidade de Coimbra e profissional bem sucedido, sendo médico da Real Câmara. Ao falecer em 1812, deixou um legado para seus sobrinhos, filhos do biografado.

Embora não tenha feito o curso de medicina na Universidade de Coimbra, como fizera o indicado irmão, preferiu estudar e buscar o diploma de cirurgião no Hospital de São José da cidade de Lisboa, onde foi aprovado. Passou a ser qualificado como cirurgião anatômico aprovado e licenciado.

No entanto, em 1779, com 21 anos de idade[4], Francisco José da Costa Alvarenga deixa a corte de Lisboa em busca do sertão do Piauí. Tendo aqui chegado fixa residência no Brejo de Santo Ignácio, onde toma posse do cargo de administrador das fazendas do Real Fisco daquela Inspeção, ali demorando-se por dez[5] anos.

Logo mais exerceu também o cargo de procurador da coroa, em cujo exercício firmou documento em favor do padre Dionísio José de Aguiar. Por essa razão, foi ameaçado publicamente em uma rua de Oeiras, pelo ajudante Antônio do Rego Castelo Branco, de quem se fizera inimigo.

No ano de 1789, ainda respondendo por aquela Inspeção, recebeu ordem do governo e acudiu gratuitamente com seu curativo na grande epidemia de bexigas que grassou na cidade de Oeiras, fornecendo remédios a todos os doentes que o procuravam. Nesse mesmo ano, foi nomeado para a exercer o cargo de cirurgião anatômico incumbido do curativo dos escravos do Real Fisco na cidade de Oeiras, onde fixou residência. Também, durante o mês de setembro foi enviado pelo governo para tratar o governador D. Francisco de Eça e Castro, que vinha assumir o governo do Piauí e adoeceu gravemente de sezão, a caminho, na Passagem de Santo Antônio, onde veio a falecer, antes de receber a cura e tomar posse do cargo.

Por esse tempo, com os lucros auferidos na Inspeção de Santo Ignácio, montou sua própria fazenda. E depois foi expandindo o rebanho em outras por ele multiplicadas. Mas somente regularizou essas terras no governo de D. João de Amorim Pereira, de quem se fez aliado, vez que nunca se integrou à elite rural piauiense. Em 11 de junho de 1798, regularizou sesmaria[6] em seu nome no vale do rio Parnaíba, termo de Campo Maior, logo abaixo da barra do Poti, nas extremas da Data Covas, medindo três léguas de comprido e uma de largura; em 12 de junho do mesmo ano, seu filho Egídio da Costa Alvarenga, recebeu sesmaria no termo de Jerumenha[7]; em 22 de março do mesmo ano, sua filha Rosa da Costa Alvarenga, já havia recebido sesmaria na margem do rio Parnaíba, entre o Riacho dos Negros, São Francisco e Santa Teresa, no atual território de Palmeirais[8].

Depois da chegada à cidade de Oeiras, contraiu matrimônio[9] com D. Matildes Efigênia de Santana, que lhe sobreviveu. Alguns anos depois de viúva passou a morar em fazenda no termo de Pastos Bons, no Maranhão. Foram filhos desse casal, todos naturais de Oeiras: 1. Tenente Egídio da Costa Alvarenga, na Guerra da Independência lutou ao lado de Fidié, depois mudou-se para Lisboa; 2. Catharina da Costa Alvarenga, foi casada com Victor da Costa Veloso; 3. Rosa da Costa Alvarenga, nascida em 14 de março de 1792, batizada na matriz, em 20 de junho de 1792, foi casada com o cirurgião Francisco José Furtado, primeiro do nome, nascido em Portugal e falecido em Oeiras, onde sucedeu ao sogro na profissão de cirurgião; e 4. Porcina da Costa Alvarenga, batizada em 24 de agosto de 1793.

Logo que chegou ao Piauí, Francisco José da Costa Alvarenga assentou praça de alferes da 3ª companhia do terço de cavalaria ordenança do Piauí. E com a reforma de Marcos Francisco de Araújo Costa, foi provido em seu lugar pelo general Fernando Antônio de Noronha, no posto de capitão do dito terço, sendo confirmado[10] em 29 de julho de 1796.

Em princípio do ano de 1793, foi a Lisboa resolver problemas de seu interesse, demorando-se por alguns meses. E retornando a Oeiras, encontrou servindo em seu lugar no curativo dos soldados um charlatão[11], segundo ele, que aparecera naquela cidade. E porque houve resistência para reassumir o cargo, formulou denúncia ao general do Estado, razão pela qual contra ele teceram-se muitas intrigas.

Nessas circunstâncias, depois de reassumir seu cargo contra a vontade de algumas autoridades de Oeiras, enfrentou alguns dissabores. Por exemplo, de 22 de setembro de 1793 até fins de janeiro de 1794, providenciou os curativos nos soldados do destacamento[12] daquela cidade e de um preso do calabouço. Porém, teve dificuldades para ser corretamente reembolsado das visitas e despesas feitas, formulando pleito à corte. Acrescentou que nas faltas do tesoureiro do Real Fisco, também era chamado para assisti aos doentes do Hospital.

Faleceu o capitão Francisco José da Costa Alvarenga, no ano de 1809, deixando larga folha de serviços prestados e ilustrada descendência no Piauí. Possuía apenas 51 anos de idade, fato que não impediu de projetar seu nome no seio da sociedade e da terra que abraçou como sua. Dois de seus netos seriam figuras notáveis ao tempo do império, o médico e cientista Pedro Francisco da Costa Alvarenga, renomado lente da Academia de Ciências de Lisboa; e o magistrado e político Francisco José Furtado, segundo do nome, senador, ministro da justiça e presidente do Conselho.

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* REGINALDO MIRANDA, advogado e escritor, membro da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI.


[1] Moraes Silva, Antonio e Freire, Laudelino 1922 Diccionario de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Litho-Typographia Fluminense. In.: FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. Barbeiros e cirurgiões: atuação dos práticos ao longo do século XIX. ISSN 1678-4758. Hist. Cienc. Saúde-Manguinhos vol.6 no.2 Rio de Janeiro July/Oct. 1999

 

[2] SILVA, J. Martins. Anotações sobre a história do ensino de medicina em Lisboa, desde a criação da universidade portuguesa até 1911 – 1ª Parte. História da Medicina. Lisboa: RFML, 2002. Série III; 7 (5): 237-249.

[3] PT/TT/IFF/009/0454/00010. Feitos Findos, Inventários post mortem, Letra J, mç. 454, n.º 10.
PT/TT/MCO/A-C/002-009/0067/00071. Mesa da Consciência e Ordens, Habilitações para a Ordem de Cristo, Letra I e J, mç. 67, n.º 71.
PT/TT/MCO/A-C/003-009/0006/00126. Mesa da Consciência e Ordens, Habilitações para a Ordem de Santiago, Letra J, mç. 6, n.º 126.

 

[4] AHU.ACL. CU. 016. Cx. 17. D. 872.

 

[5] Em princípio de 1794, ele firma petição que servia a Sua Majestade por 14 anos, sendo sete no cargo de Inspetor e sete no de cirurgião. No entanto, no mesmo documento diz que em 1789 ainda era Inspetor. Em outro documento datado de 1787, aparece residindo na Inspeção do Brejo de Santo Ignácio, ainda solteiro, de onde concluímos que houve equívoco, tendo ele deixado aquela Inspeção de 1789, ano em que também foi mandado em diligência para atender a D. Francisco de Eça e Castro, que faleceu em 15.9.1789.

[6] AHU. ACL. CU. 016. Cx. 22. D. 1128.

[7] AHU. ACL. CU. 016. Cx. 22. D. 1130; Cx. 23. D. 1210.

[8] AHU.ACL. CU. 016. Cx. 22. D. 1134; Cx. 23. D. 1211.

[9] Posterior a 3 de novembro de 1787. Mas anterior a 3 de abril de 1794 (AHU.ACL. CU. 016. Cx. 17. D. 872).

 

[10] PT/TT/RGM/E/001/0028. Registo Geral de Mercês, D. Maria I, liv. 28, fls. 117v-118.

 

[11] Segundo sua denúncia, o charlatão era José Antônio Ribeiro Coimbra.

[12] Informa que o cirurgião seu antecessor passou a fazer o curativo dos soldados em sua casa e esses desonraram suas filhas, o que motivou a sua morte.