Torres Vedras, terra natal do biografado (imagem colhida da Internet).
Torres Vedras, terra natal do biografado (imagem colhida da Internet).

                                                                                                                                                                                                                                   Reginaldo Miranda*

Na segunda geração de grandes sesmeiros do Piauí, figura o capitão Domingos Jorge Afonso, sobrinho e herdeiro testamentário do desbravador Julião Afonso Serra. Era também sobrinho de Domingos Afonso Sertão, mas deste não herdou o rico patrimônio porque foram mais espertos os padres da Companhia de Jesus, que do moribundo defunto conseguiram à cabeceira do leito de morte, as dadivosas disposições testamentárias. É importante ressaltar que os referidos irmãos Afonso, juntamente com Francisco Dias d’Ávila e Bernardo Pereira Gago, estes da Casa da Torre, foram os principais desbravadores do território piauiense. Em decorrência de referida conquista foram aquinhoados com excessivas sesmarias. Então, em 22 de julho de 1696, os irmãos Afonso dividiram meio a meio essas inúmeras sesmarias com os dois referidos irmãos da Casa da Torre, Francisco e Bernardo, através de escritura púbica de composição lavrada no livro de notas do cartório de Valasuela, na cidade da Bahia. Mais tarde, foi pelos sucessores feita a divisão do patrimônio até então indiviso dos irmãos Afonso, tocando a Domingos Jorge Afonso metade, ou seja, um quarto de todas as terras conquistadas no Piauí, por aqueles quatro grandes desbravadores de nosso território. Foi, portanto, esse avantajado latifúndio que recebeu em testamento o capitão Domingos Jorge Afonso.

Mas esse legado não foi gratuito, porque, de fato, ele ajudou os tios a construí-lo. Pouco mais de quinze anos depois das primeiras entradas dos tios pioneiros, vem ele a chamado destes ajudar a implantar as fazendas e guarnecê-las dos ataques de índios, salteadores e posseiros.  Passou a ser os olhos destes na administração do vasto latifúndio, ainda indiviso entre os dois irmãos e mesmo a Casa da Torre. De imediato, fixou residência na fazenda Tranqueira, situada às margens do riacho de mesmo nome, na bacia do rio Canindé. Ali residia em companhia de Antônio Soares Touquia, de uma negra e dois negros escravos. Nesta fazenda receberam o padre Miguel de Carvalho e sua comitiva nas desobrigas realizadas durante os anos de 1694 e 1697. Inclusive, em 11 de fevereiro de 1697, ali fora realizada a reunião que deliberou pela fundação da freguesia de Nossa Senhora da Vitória e eleição do lugar de construção da igreja matriz, recaindo em um tabuleiro situado na fazenda da Passagem, pertencente ao indiviso condomínio de seus tios. No entanto, porque esse assunto lhe desagradou profundamente não se fez presente àquela reunião, achando motivo para se retirar naquela ocasião, talvez para a cidade da Bahia.

De fato, com a construção da igreja matriz, com paredes de barro e cobertura de pindoba, assim iniciando o núcleo urbano e trazendo um raio de progresso, Domingos Jorge não mais consegue esconder o seu incômodo com as ações do padre Tomé de Carvalho e Silva, pioneiro vigário do lugar. O padre não recua diante de suas admoestações. Então, Domingos reúne indígenas e vaqueiros de seu comando e invade a nascente povoação. Marchando ou galopando em seus cavalos, de tocha à mão vão passando fogo na capela e rancharias fazendo arder em chamas a nascente povoação. Só então retornam às suas moradas, na fazenda Tranqueira, ufanos e certos da falta de punição. No entanto, contra esse ato de força reage o padre Tomé, que vai em busca do auxílio de seu primo Miguel de Carvalho, então estacionado como vigário da freguesia do Cabrobó, em Pernambuco, de onde a da Vitória fora desmembrada. Dali ambos comunicam esse atentado ao Bispo de Olinda, D. Francisco de Lima, que imediatamente o denuncia ao rei de Portugal, de cujo governo éramos colônia. Desconhecemos ato de punição aos agressores, mas a igreja é reconstruída com maior grandeza e como consequência, o território é desanexado de Pernambuco, passando ao governo do Maranhão, onde aqueles sesmeiros tinham menor influência.

É importante ressaltar que esses colonizadores seus tios eram conhecidos apenas por Domingos Afonso e Julião Afonso, cuja família era muito conhecida em Portugal, sobretudo na região de Mafra, de onde eram naturais. No entanto, ao chegarem ao sertão da colônia, foram identificados pelo local de origem, conforme aconteceu com muitos outros colonizadores portugueses, daí adotando o sobrenome Mafrense. De Julião nada ouvimos, mas Domingos ainda hoje é por muitos chamado Domingos Afonso Mafrense. Mais tarde, quando atravessaram a cordilheira no local que ficou conhecido por Serra Dois Irmãos e conquistaram o sertão, receberam a alcunha de Sertão e Serra, respectivamente, que logo mais acrescentaram ao nome, ficando conhecidos por Domingos Afonso Sertão e Julião Afonso Serra. E porque o sobrinho Domingos Jorge viera a chamado do tio Julião, por aqueles dias era conhecido por Domingos Afonso Serra. Assim consta no relatório do padre Miguel de Carvalho. Porém, com a morte do tio passa a assinar com o nome de Domingos Jorge Afonso, em homenagem ao pai e aos demais ancestrais.

Domingos Jorge Afonso, nasceu na freguesia de São Domingos da Fanga da Fé, vulgo Encarnação, então pertencente ao Concelho de Mafra, depois passando ao de Torres Vedras, mais tarde retornando ao de Mafra, ambos no arcebispado de Lisboa, por volta do ano de 1670, filho de Domingos Jorge. Era neto de Julião Afonso, o velho, e de sua mulher Jerônima Francisca, ambos falecidos na mesma freguesia. Viveu aí sua infância e adolescência, alfabetizando-se nos padrões da época e ajudando aos pais e avós, no cultivo de uma vinha na ribeira do Barril.

Mais tarde, por volta de 1687, atendendo a chamado dos tios atravessa os mares bravios para fazer a vida na colônia. Aqui chegando fixou residência na fazenda Tranqueira, situada na bacia do rio Canindé, conforme se disse. Desde então ajudou a implantar diversas fazendas, administrando-as em nome de seus tios, de quem se fez procurador. Esse patrimônio representava metade de todas as terras até então conquistadas no território piauiense. Para isto contou com o concurso de muitos auxiliares. Nessa lida em solo piauiense, à testa da administração do extenso latifúndio, viveu quase vinte anos.

No entanto, por volta do ano de 1705, muda seu domicílio para a cidade da Bahia, porém, sem se descuidar da administração das fazendas no Piauí, para onde vinha periodicamente. Neste ano, ou em seu entorno, faleceu o tio Julião Afonso Serra, que o houvera instituído como seu herdeiro universal. Por esta disposição testamentária Domingos Jorge Afonso, tornou-se senhor das inúmeras sesmarias conquistadas pelo tio Julião Afonso, estas representando metade de todas aquelas que ele administrava. Portanto, um quarto das sesmarias concedidas em solo piauiense. Assim, ele que já fizera história como administrador e implantador de fazendas no Piauí, agora passa a ser um de seus grandes sesmeiros. E ainda continuava a administrar conjuntamente com as suas, também as sesmarias do tio Domingos Afonso Sertão, todas elas em condomínio. No entanto, quando falece também esse indicado tio, em 1711, de quem esperava ser herdeiro, suas terras são legadas em testamento aos espertos padres da Companhia de Jesus. Diante dessa disposição testamentária, que lhe pegou de surpresa, em 29 de outubro de 1718, celebra com o padre reitor do colégio da cidade da Bahia, por escritura pública, contrato de transação amigável e composição[1], assim dividindo os bens até então indivisos, a exemplo do que ocorrera antes entre seus tios e a Casa da Torre. Então, passa a administrar exclusivamente seu patrimônio. E por já residir na Bahia, para auxiliá-lo na administração dessas inúmeras fazendas que lhes foram legadas, manda buscar no reino seu irmão mais moço, Ignácio Gomes Afonso, que também fixa residência na bacia do Canindé. E depois de muito auxiliá-lo na administração e defesa desse extenso latifúndio, recebe o irmão em recompensa a fazenda dos Poções, com quatro léguas de comprimento e meia de largura, situada no riacho de mesmo nome, afluente do rio Piauí. Para a efetivação desta doação tiveram de expulsar a Vicente Ferreira Morgado, que a tinha povoado. Este irmão mais moço, fora casado com Domingas Rodrigues Flores[2], que lhe sobreviveu falecendo em avançada idade na dita fazenda. Conforme conseguimos apurar o casal tivera nove filhos, a saber: João Jorge Afonso, fundador da fazenda Brejo, também chamada Brejinho, situada nas cabeceiras do riacho dos Pilões, afluente do rio Canindé medindo uma légua em quadra, onde residia com a esposa Maria da Silva de Jesus; Antônio Jorge Afonso, foi casado com Ana Maria da Silva, provavelmente irmã da antecedente; e mais, Diogo, Miguel, Manoel, Helena, Eugênia, Joana e Victória, os mais novos.

Por esse tempo é bom se esclarecer que ao fixar residência na cidade da Bahia, Domingos Jorge Afonso ingressa na carreira militar, ali prestando alguns serviços. E por nomeação de 20 de julho de 1718, do governador e capitão-general do Brasil, D. Sancho de Faro (conde de Vimieiro), cuja nomeação foi confirmada por el rei na carta patente de 31 de janeiro de 1720, assumiu o posto de capitão da Companhia de Infantaria da Ordenança do Regimento do arrabalde da cidade da Bahia[3].

A essa altura convolou núpcias com dona Antônia Florência de Jesus, que lhe sucedeu na administração desse imenso patrimônio, juntamente com o filho único, João Jorge Afonso[4] (2º do nome).

No entanto, quem se interessar em estudar a luta entre posseiros e sesmeiros no Sertão de Dentro, não pode olvidar o nome do capitão Domingos Jorge Afonso, porque na defesa de seu patrimônio sustentou muitas contendas judiciais com os posseiros que iam se estabelecendo na nova terra. A mais famosa delas foi a que travou com o padre Thomé de Carvalho e Silva, pela fazenda da Passagem, na parte em que se criou a vila da Mocha, hoje cidade de Oeiras. Também sustentou diversas contendas com o capitão-mor do Gurgueia, Gonçalo de Barros Taveira, a saber: em defesa da fazenda Jacaré, na ribeira do Itaueira, de que desejava cobrar renda, sendo vencido por sentença judicial; pela fazenda São Lourenço, entre os rios Gurgueia e Itaueira, também sendo vencido; pelas fazendas da Uhica e São Francisco, no riacho da Uhica, entre as duas citadas ribeiras, de que foi vencedor, porém, faleceu sem requer execução das sentenças; por fim, com dona Thereza da Silva, que lhe foi obrigada a pagar rendas da fazenda Papagaio, todas essas situadas na freguesia do Gurgueia, posteriormente comprando-lhe esta os  direitos para se ver desobrigada.

Na freguesia de Nossa Senhora da Vitória, também sustentou contenda judicial com Miguel de Araújo Reimão, pela cobrança de rendas das fazendas o Frade e Fradinho, da ribeira do Itaim, sendo este desobrigado por sentença; no vale do rio Piauí, com Manoel Antônio Campelo, pela cobrança de rendas da fazenda Curral do Campo, tendo este pago renda até alcançar sentença que o desobrigou.

Muitas outras contendas judiciais se seguiram, tendo o capitão Domingos Jorge Afonso ou sua viúva e herdeiro vendido algumas fazendas aos posseiros, a exemplo das fazendas dos Poções e da Volta, na bacia do rio Canindé, vendidas a Hilário Vieira de Carvalho, o velho; na mesma ribeira, cobrava renda da fazenda o Retiro, possuída por Manoel Fernandes Guimarães, tendo-a vendido posteriormente; também, da fazenda Arraial, hoje cidade de mesmo nome, que a vendeu a Miguel de Araújo Reimão; Aldeia, que vendeu a Mathias de Araújo Veloso; Boa Vista, que depois a vendeu ao possuidor Francisco Cardoso Rosa; fazenda dos Angicos, vendida aos herdeiros de Manoel de Sá de Araújo; fazenda o Saco, desmembrada da fazenda Maravilha, na ribeira do Itaueira, vendida a Antônio Pereira de Sampaio e João Rodrigues Bezerra; fazenda das Salinas, na dita ribeira, vendida aos padres da Companhia denominada de Jesus, depois passando por doação ao capitão Luiz Miguel dos Anjos; fazenda São Romão, situada em um riacho de mesmo nome, que faz barra em outro chamado Jacutiara, a qual passou para o domínio dos ditos Padres, por execução que fizeram à viúva de Domingos Jorge Afonso, depois passando por doação ao tenente-coronel João do Rego Castelo Branco.

Em face da anulação de muitas sesmarias, da venda de algumas outras e de todos esses litígios, em 16 de novembro de 1762, segundo uma relação de todos os possuidores de terras no Piauí, elaborada pelo conselheiro Francisco Marcelino de Gouveia, a mando de Sua Majestade, seus herdeiros somente possuíam no Piauí, duas fazendas, a saber: Maravilha, com duas léguas de comprido e uma de largo, e Piripiri, com três léguas de comprido e duas de largo, ambas situadas na ribeira do Itaueira, freguesia de Santo Antônio do Gurgueia, termo da vila de Jerumenha[5].

Coincidentemente, era o mesmo número de fazendas que possuía a Casa da Torre, sendo elas situadas no termo de Campo Maior. A essa altura, o território piauiense, então erigido em capitania e dividido em sete[6] municipalidades, estava sendo densamente povoado por colonizadores reinóis, assim não permitindo mais a existência desses imensos latifúndios. Até mesmo o patrimônio que ficara para os jesuítas fora confiscado pela Coroa e começava a ser dilapidado em doações para particulares que se destacassem no Real serviço.

Não sabemos precisar a data de falecimento do capitão Domingos Jorge Afonso, no entanto, é de se supor que tenha sido por volta de 1748, pouco antes ou pouco depois, com cerca de 78 anos de idade, em sua residência, na cidade da Bahia. Foi um dos principais sesmeiros do Piauí e, por via de consequência, um dos principais protagonistas, senão o principal, da luta entre posseiros e sesmeiros no Piauí colonial. Com essas notas resgatamos um personagem importante e um período de nossa história que merece ser mais bem estudado.

 


[1] AHU-Bahia, cx. 10, doc. 20 AHU_ACL_CU_005, Cx. 12, D. 992

 

[2] Em 1762, dona Domingas Rodrigues Flores, então no estado de viúva, residia na referida fazenda em companhia dos sete filhos ainda solteiros e da sobrinha Theodózia. A existência desta sobrinha indica que o capitão Domingos Gonçalves Jorge possa ter trazido mais um irmão ou irmã para o Piauí.

[3] PT/TT/RGM/C/0011/30956. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 11, f.228v.

[4] Dois primos com o mesmo nome, indica ser homenagem a um ancestral comum.

[5] AHU. ACL. CU. 018. Cx. 8. D. 513.

[6] Oeiras, a capital e mais seis vilas: Parnaguá, Jerumenha, Valença, Marvão, Campo Maior e Parnaíba.

 

* REGINALDO MIRANDA, membro da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplinada OAB-PI.