[Cunha e Silva Filho]

 

 

   Notliada Praxim nascera no  Norte brasileiro no final dos anos  trinta do século   passado. Sua  terra  natal  era no interior do estado do Pará. As memórias  da pequena fazenda em  que moravam os  pais nunca lhe saíram  da cabeça. De uma família  numerosa, crescera entre  os matos  da fazenda e a casa principal. Casa com  varanda  larga, espaçosa,  com soalho de tijolo e teto de telha. Dividida em  quatro cômodos também    grandes,  ainda contava com  uma cozinha comprida e um pouco escura, já que o sol , posto que  forte,  não dava para   penetrar  com  toda a sua força  e brilho  neste espaço. O banheiro  e  a sentina ficavam do lado de fora,numa casinha de dois  quartos dividida   internamente por uma  parede. Depois dessa casinha,  havia um muro  de cerca de um  metro e  setenta, com uma entrada por um  velho portão de madeira sem trinco  nem chave,  que apenas   ficava encostado.

Notliada, menino  franzino,  pele   clara  e fina,  cabelos  muito  lisos, rosto  oval,  de olhar  vivo, penetrante,  era o mais velho. Até então só havia  nascido ele e sua irmã, mais nova  três anos.Com o tempo,   a mãe, a dona  Esmeraldo havia de  ter mais  seis  filhos, duas  mulheres  e quatro  homens.

O menino Notliada já frequentava  a escola  primária e  já dava sinais de que  era dotado de grande inteligência tanto  pra  matemática como  pra  língua  portuguesa. Sua  professora, dona  Eremita,  maravilhava-se com   a facilidade da criança que,  com apenas,  oito anos,  fazia  boas   redações e era forte nos cálculos e na tabuada. Aos doze anos,  já estando no  segundo ano   ginasial,  ganhara, graças ao s eu talento e às notas  altas,  através  de um  convênio entre o seu colégio e o Colégio  Pedro II do Rio de Janeiro, conseguira do  diretor uma  vaga para  estudar  interno neste  famoso  e respeitado  colégio carioca.

Já interno  no Pedro II, no lugar  que funciona  hoje a sua  sede  principal, centro do Rio, Notliada cursou  o terceiro ano ginasial até o início do segundo  semestre, pois tivera que  voltar  pra sua terra  dado que havia  ficado  doente, atacado  de bronquite. O diretor   do Pedro  II achava melhor que a  criança  voltasse  ros  pais. Era uma  pena,  de vez que o menino dera  provas  de ser bom   aluno  e  responsável. No Pedro  II tivera  colegas que, mais tarde,  já adultos, se tornaram  pessoas  influentes no  meio  cultural carioca, sobretudo na  área  dos estudos  literários.

De volta à terra natal,  Notliada retomou, no ano seguinte, a terceira série ginasial, sempre  dando mostras de ser aluo  inteligente e aplicado. Nessa época,  sua irmã  lhe notara  pendores pra  poesia. Uma vez,  examinando uma folha que ele deixava em cima de uma  escrivaninha,  reparou  que havia  um texto escrito com uma  grafia  bela  e  cuidadosa: era um  poema  dedicado a Gonçalves Dias,  poeta que admirava  muito. O poema de título  “Os índios “ tinha  muito  a ver com  a poesia  de Gonçalves Dias no que dizia   respeito  a palavras e tamanho  das estrofes.. “Meu Deus ! Notliada é  poeta e escreve bem! Vou  ficar  calada. Não quero  que  pense que estive  bisbilhotando  o que anda  fazendo.”

Matilde, sua irmã,  era aluna  aplicada  também. Magrinha,  de olhar  sensual, morena,  cabelos   escuros, tudo indicava que iria ficar  baixinha, mas nem tanto.

Dona Esmeraldo tinha  personagem  forte, dominadora,  a ponto de  fazer sombra  ao marido. Mulher  bonita, morena clara,  forte,  de altura mediana, era dona de casa  que se impunha  e  estava  a par de tudo que  acontecia  no lar. O marido,  Seu  Henrique,  homem alto, magro,  pele  clara, de olhos verdes,  era  uma pessoa  pacata,  suave,  muito  apegado aos filhos. Cuidava dos seus negócios  da pequena  fazenda  chamada  Mocho, onde  tinha algumas  cabeças de gado,  porcos,  galinhas, e plantação de frutas variadas.

Seu mundo era a fazenda. Ali se sentia  pleno de vida. Seu Henrique gostava de conversar com  os três empregados  da  fazenda, agregados que lhe eram  muito  amigos , pessoas simples com quem podia contar  nos momentos de maior  adversidade. João,  Enoch e José,  os agregados, moravam na fazenda em cassinhas  simples e asseadas. Casinhas de tijolo, com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, este do lado de fora, assim como a latrina.

Matilde e Notliada, terminado  o ginásio ( pois com  ano perdido no Pedro II havia  ficado na mesma série que a irmã), foram  para o  curso de contabilidade. Na cidade,  não havia  os curso  científico   e clássico.

Notliada   Praxim deu  um virada  na sua vida. Queria  voltar ao Rio de Janeiro, fazer curso superior e trabalhar ao mesmo tempo.  Eram os anos cinquenta. Getúlio já tinha se suicidado. Ao chegar ao Rio não podia nem mesmo  alugar um apartamento, nem uma quarto. Contentou-se com  alugar uma vaga no Flamengo.Viera da sua terra de ônibus, num percurso que durou quatro dias. Longa viagem, cansativa. O que compensava era a juventude que tinha  e disposição de  enfrentar o batente na grande cidade.

Como era  exímio datilógrafo,  bom de cálculos e tinha uma excelente  redação, logo arranjou um trabalho num escritório de produtos  farmacêuticos  na Avenida Beira-Mar. Decidiu-se a tentar  o vestibular na Faculdade Nacional de Filosofia, optando  pelo curso de  filosofia  pura, como se dizia  naquela tempo. O Brasil estava em  plena ditadura, tmepos difíceis. Em quatro anos, terminara o bacharelado. Não quis fazer  licenciatura,  porquanto  não tinha  ideia alguma de dar  aulas. Preferiu  continuar  trabalhando no setor de contabilidade. Tinha  mudado para uma grande  escritório de contabilidade também no centro,  na Av. Rio Branco, à altura da Cinelândia.. Tornara-se chefe de seção. Percebia bom  salário que lhe  permitiu  alugar um kitchenette no Catete.

A antiga  paixão pela literatura, sobretudo da poesia ,se mantinha acesa. Frequentava a Biblioteca Nacional, o Real Gabinete de Leitura e outras  bibliotecas  importantes que havia no centro. Ao mesmo tempo,  acercava-se  de jovens  escritores, fazia co eles amizade, mostrava-lhes  seus  poemas  recentes. No tempo do curso de filosofia,    tinha  conseguido enturmar-se com  os professores,  entre os quais distinguia-se   Carneiro Leão. Notliada conseguia, pois,  conciliar  o trabalho    de contabilidade sem descurar  os estudos  de poesia, as leituras  de ensaios, de história. Era leitor  assíduo do JB, que ficava na Av. Rio Branco.

Com os contatos do  tempo de faculdade,  os amigos  intelectuais que ia  adquirindo, aos poucos   foi  penetrando no mundo  dos círculos  literários carioca. Participava de      encontros com  jovens escritores  da geração do Concretismo. Foi nesse tempo que  conhecera  Ferreira Gullar,  o crítico  Fausto Cunha, o crítico e  ficcionista Assis Brasil, Mário  Faustino, Vamireh Chacon (este de São Paulo). O que lhe interessava mesmo era a possibilidade de fazer-se conhecido e estimado  como  poeta e, nesta condição,  seus  poemas há muito  tinham  deixado  para trás as conquistas do Modernismo e muito menos  dos movimentos anteriores da poesia.

Vivia  o  clima contemporâneo das vanguardas  brasileiras nos anos  cinquenta,  sessenta.  Entretanto,  não deixava de ler muito  Drummond, para ele o grande  poeta brasileiro, como seriam  também  Manuel Bandeira,  João Cabral de Melo Neto, entre outros.

Não se  juntou aos concretistas. Preferiu  o projeto poético  que lançava  a Poesia Práxis .A despeito de  não deixar de sofrer algumas influências  concretistas,  sobretudo em relação  ao espaço gráfico, Notliada começou a  escrever  os seus  poemas  práxis, envolvendo-se de corpo e alma  aos seus  princípios  estéticos e à sua  plataforma  revolucionária.

Sua vida  persistia no ritmo  frenético de  continuar suas pesquisas poéticas e seus contatos  crescentes com  o mundo  literário  carioca. Só uns quinze anos depois,  sai publicado seu  primeiro  livro de  poesia, uma reunião de mais de dez anos de poesia revolucionária: Geografia  poética  paraense (1970). Como o volume  reunia  poemas  desde os anos cinqüenta,  havia variabilidade  de  formas  de poesia,  inclusive  havia sonetos modernos, alguns  repassados de certa nostalgia  da terra, dos seus tempos de infância na fazenda. Não demorou  muito saiu outro  livro de poesia com um  titulo  estranho: Galáxias dantescas (1970).

Os dois livros lhe asseguram  algum renome  no meio da  crítica especializada. Notliada contudo,  era tímido. Não  gostava de pedir  favor a ninguém. Vestia-se sempre  impecável. Frequentava  seminários, congressos, lançamentos de livros  de amigos  escritores, noites de  premiações de  livros na Academia  Brasileira de Letras, no Pen Club e em outros espaços  literários. É bem verdade que petencia a algumas entidades  literárias.

Conhecedor  profundo  do que havia  de informações sobre escritores cariocas ou mesmo  do país  inteiro. Cronista  da vida literária por excelência.

Essa informações sobre  Notliada foram  conseguidas  porque, a partir dos anos setenta,  fiz amizade com ele, a princípio  formalmente,  no tempo em que ele  fazia o Mestrado  em Teoria literária na  Faculdade de Letras da  UFRJ.  Sempre que o via -  eu era estudante da graduação -, estava cercado de  jovens  senhoras (algumas bonitas) que cursavam  o mestrado,  quando a  pós-graduação  fora  implantada  na administração  do diretor Afrânio  Coutinho, primeiro diretor  daquela faculdade cujo  curso de letras fora  desdobrado,  por iniciativa dele e de outros  professores,  da antiga  Faculdade Nacional de Filosofia. Afrânio foi o   crítico  literário  inovador dos estudos  superiores de literatura  no Rio de Janeiro. Foi inclusive o orientador  de Mestrado  de Notliada

Concluído  o mestrado, Notliada teve  oportunidade de lecionar  literatura  na  Faculdade  de Letras mas, por razões ligadas à sua  própria   personalidade  tímida,  ele somente ali  permaneceu durante  um ano e pouco.  Voltou a um  trabalho   vinculado ao antigo emprego: setor de contabilidade de uma grande empresa  internacional,  onde se fez respeitado  e admirado  pelos colegas graças à sua competência e seriedade na  função de diretor  de um  departamento  de  exportação.

Em deixar a  poesia, deu à publicidade um  romance , A revolta  dos agregados (1974). A obra  teve certa  repercussão. Três anos depois,  publica, por conta  própria, outro livro  de poesia:  Ponta de lança (1977). Em 1980, lança outro volume, Retratos  de mulheres. Em 1988 edita  outro livro de poemas: A imagem  e o espelho. Em 1992,  sai a lume Visões do mundo. Em 2002, edita Flâmula azul.

 Notliada seguramente  foi  bem recebido  pela crítica, mas não como o merecia. Apesar de certo  isolamento dos  tempos,  ainda  lia muito, sobretudo  poesia. Não esqueceu Drummond. Admirava Grande Sertão: veredas, desde  o seu lançamento como  obra  inaugurando uma fase  inédita de originalidade  da linguagem  e  de poesia  na ficção,  além da  visão  mítica  do  universo. Me lembro que Notliada   deu uma exemplar a seu pai que,  tendo lido o romance de Rosa,  confessou  simplesmente como  um  homem  do interior: “Mas isso é mesmo  o mundo do sertão,  os personagens, a linguagem,  tudo.”

Respeitado  como  escritor no seu  estado natal, Notliada teve suas obras  citadas em duas histórias da literatura brasileira, uma até estrangeira.

Meu amigo paraense,  entretanto,  se sentia  meio  esquecido. Teve até  vontade de se tornar  padre já maduro. A ideia porém  não vingou.   Logo esqueceu...

Os anos   passam, a vida literária  ainda o fazia  vibrar quando conversávamos,  geralmente ao telefone por longo tempo. Notliada nunca teve  boa saúde. Passou  mal. Foi   hospitalizado mas sua  doença lhe era fatal. Não aguentou. Entregou os pontos pra vida. Na minha memória,  ficará a figura inesquecível daquele  poeta, que me lembrava  Gonçalves Dias, embora este fosse mulato.

Aquele amigo era, na verdade,  um cronista  enciclopédico  em potencial da vida  literária e  cultural de nosso  país. Bateu  palmas pra muita gente. Se cansara,  contudo,  de bater  palmas. Era melhor manter alguns poucos  e fiéis amigos e  esquecer  as injustiças  e  a vaidade  dos homens (e mulheres)...