[Maria do Rosário Pedreira]

Um dia destes aconteceu-me uma coisa que mostra bem como a literatura foi dessacralizada. Dantes, quem queria publicar um livro vinha de mansinho com humildade e cheio de dúvidas, querendo saber se o que escrevera tinha qualidade para ser publicado. Agora, recebo mensagens de e-mail anunciando obras-primas de qualquer um, às quais se anexam muitas vezes «romances» de vinte páginas e textos mais longos, mas desconexos, banais e até descuidados. Na semana passada, li, por exemplo, umas trinta páginas de um livro que, embora bem-intencionado, padecia de uma estrutura tão complexa que exigiria do seu autor grande experiência de escrita para lidar com ela e, por se tratar de um principiante, não funcionava. E, além disso, estava o texto pejado de erros de ortografia – coisa que dificilmente se perdoa a quem quer ser considerado escritor. Na minha resposta-comentário, fui (creio) demasiado branda para o que é costume, não deixando, mesmo assim, de referir ao autor de tais páginas a quantidade de erros e a necessidade de ler mais para os corrigir em próximas aventuras literárias. Já estou habituada a reacções secas, indispostas e até visivelmente irritadas – e, ainda que não viva bem com isso, talvez pela quantidade de vezes que acontece construí uma espécie de escudo protector; mas, desta feita, a resposta foi completamente inesperada: o potencial escritor agradecia os comentários críticos, mas explicava que eu estava a ser demasiado exigente, pois não se podia pedir a um autor que estivesse ao mesmo tempo atento ao desenvolvimento da história e a coisas tão comezinhas como a ortografia... E esta, hã?

Maria do Rosário Pedreira é editora e romancista portuguesa.