Breve apresentação de Cambacica
Em: 06/11/2011, às 09H32
[Dílson Lages Monteiro]
Senhores e senhoras,
Cambacica é a estreia de um autor por demais conhecido de quem vive ou lê a literatura produzida no Nordeste. A estreia na prosa de ficção de um autor de contribuições já consolidadas no sistema literário. O autor de um dos mais completos estudos sobre a obra de H. Dobal, razão por si só para inseri-lo no rol dos destacados homens de letras de nossa terra. Filósofo, Halan Silva é professor, ensaísta, poeta e agora inicia uma nova fase de sua carreira literária, incursionando por um território cujo desafio maior é o da inventividade, num campo de formas já amplamente gastas, a ficção; razão pela qual os descaminhos, a desconstrução – e todo reinventar é desconstruir – revela-se como uma montanha a ser escalada. Mas Halan o faz com a habilidade e a competência que lhe são peculiares, porque é um obstinado. E em literatura, a qualidade anda lado a lado com a perseverança – a recriação e a revisão; a pesquisa teórica e a reflexão lingüística.
Senhores e senhoras,
Todos estão aqui presentes por uma razão especial. Todos aqui presentes estão porque mantém uma relação especial com o livro, notadamente o de feição literária; seja principalmente porque fazem dele ferramenta de entretenimento, seja porque, elemento de transformação social.
A leitura que realizamos aqui não se pretende constituir peça de crítica literária, uma vez que desprovida de rigor teórico e profundidade que o exercício da crítica genuína, a acadêmica, requer e para o qual preferi não me voltar. A leitura é a do prazer. Digo: é a leitura do entretenimento e do sentido social do texto.
Entendamos leitura de entretenimento a leitura em que a interlocução e a imagem levam ao confronto lúdico de discursos e sensações, evocando, na memória de longo prazo, as vivências arquivadas pelos sentidos e a interposição de vozes vividas e/ou lidas. A leitura que realizamos, neste momento, verbalizada em breves anotações não tem, como compromisso, pois, enquadrar, categorizar, determinar, mas discorrer resumidamente sobre a obra em linhas gerais e sobre os caminhos do prazer em um texto cuja leitura traz ganhos inquestionáveis.
Ensina Baktin que a palavra é de natureza psíquica e ideológica, por excelência, mas também sociológica. Considerando a terceira dimensão da palavra, cabe recuperar, a esse propósito, as explicações do teórico. Para ele, “toda enunciação é determinada, ao mesmo tempo, tanto pelo contexto imediato, quanto pelo contexto social, mais amplo, não havendo, portanto, expressão verbal que não seja socialmente dirigida”. Portanto, a enunciação é o produto da interação verbal entre os indivíduos e realidade fundamental da língua. Cito Baktin para justificar aquilo que é o sentido primeiro nas entrelinhas do texto que ora comento: a crítica social, a literatura-documento.
Apropriando-se de uma trama clássica, o amor que não se consuma, Halan Silva tematiza o conflito de classes e os dramas inerentes a ele, detendo-se em desnudar os preconceitos e fingimentos de estratos sociais favorecidos, ao mesmo tempo em que expõe a angústia de limitações e perspectivas de grupos marginalizados. O personagem Otávio é o rapaz sensível, fascinado por registrar hábitos de pássaros, vivendo à sombra da imobilidade e das angústias do status quo. Firmina, a moça que deve manter os valores da família: a tradição, o patrimônio e a posição social. Dr. Ferraz e Dona Bárbara, expressões do preconceito, da insensibilidade e da arrogância de uma sociedade organizada para manter as desigualdades.
Usando como pano de fundo o amor frustrado de Otávio, o narrador passeia pela Teresina da primeira década do século XXI, desnudando impacientemente uma cidade em transformações:
a perda do sentido das praças como elemento de socialização, o caos do trânsito num espaço de limitadas vias de tráfego, a precariedade de sistema de saúde pública incapaz de atender a demanda de pacientes, o assoreamento e morte gradativa do Parnaíba e do Poty..
Retomando o pensamento de Baktin, enfatizo que, em Cambacica, a enunciação conduz o leitor, particularmente o teresinense, a dialogar com um contexto de costumes e problemas que há muito já deveriam estar superados, numa época em que se apregoam a tolerância, os direitos humanos e o fortalecimento das instituições. .
Além de envolver o leitor pelo retrato social e humano de Teresina da primeira década do século XXI, a novela prende pela sutilidade das ironias, evidentes no perfil de personagens como Dr. Ferraz, evidentes, por exemplo, na referência ao protagonista. Anota o narrador, numa clara alusão ao título, reiteradamente, ao final da obra, que Otávio é um fura-flor, um fura-flor. Cambacica é o pássaro que “perfura” as flores para delas extrair o néctar. Assim é Otávio. Aquele que incomoda as crenças e tradições de um mundo fechado e de aparências.
Em Cambacica, também prendem o leitor várias marcas linguísticas e estratégias, bem próprias da literatura contemporâneas. Prendem os intertextos, criados com obras clássicas de O. G. Rêgo de Carvalho e Assis Brasil. É perceptível, por exemplo, a ambientação de Rio Subterrâneo, obra maior de O. G., resignificar-se no texto de Halan, para criar clima de obscuridade, dúvida e indefinição, que também se mostram no texto ogegueriano. Prendem ainda a linguagem fragmentada, concedendo tom cinematográfico às sequências narrativas e desafiando o leitor a completar o sentido do texto. Destaco ainda que o texto de Halan apresenta gosto de crônica; aliás, há em Cambacica a interposição da novela na crônica, produzindo efeito que agrada.
É assim a novela Cambacica: um texto merecedor de recomendação, porque escrito com a consciência de quem busca novas formas e, sobretudo pelo desvelamento das contradições humanas em uma cidade, apesar da expansão urbana gritante, ainda, antagonicamente, sustentada por valores excludentes e provincianos.
Senhores e senhoras,
Façamos, pois, a leitura desta obra com a certeza de que estaremos aptos a melhor compreender os valores da Teresina de nosso tempo.
Texto lido por ocasião do lançamento de Cambacica (Editora Nova Aliança), de Halan Silva, em Teresina-PI, em 05.11.2011