"Gerânios vermelhos na janela
nº 25 dezembro 2001
Literatura: Georges Simenon
Gerânios vermelhos na janela
Escritor, mestre em romances policiais, testemunha
ocular, “máquina de escrever” com mais de quatrocentas
obras. A realidade é complexa, às vezes se abrem brechas
que jamais imaginaríamos, mas a verdade por trás delas
é simples. Basta maravilhar-se, como o comissário Maigret,
sem se fechar no pessimismo
POR STEFANO ZURLO
O apito no porto, o barulho da água que flui impetuosa, o rosto pálido de um homem consumido pela vida. Entra-se no mundo de Georges Simenon com poucas pinceladas. É suficiente um cálice de Calvados nas mãos de Maigret, ou uma manhã de neblina daquelas em que a umidade penetra até a medula dos ossos. “Bastam-me duas mil palavras para narrar a realidade”, repetia a seus admiradores. Bastavam-lhe duas mil palavras para compor um cenário completo, no qual alinhava homens e mulheres da burguesia, com seus vícios e manias, paixões, esperanças, e os crimes de que se manchavam. Grandes telas, como as dos pintores flamengos de cujo humus, de certa forma, nutrira; retratos nos quais o detalhe, minuciosamente descrito, mas com economia de adjetivos e advérbios, é essencial. Como para cada um de nós.
Georges Simenon atravessou quase todo o século XX e o interpretou da única maneira que sabia: narrando-o. Como uma testemunha ocular: “Se escrevo ‘mesa’, todos sabem o que quero dizer. Se escrevo ‘sublime’, cada um interpreta a seu modo”. Fidelidade absoluta ao perseguir velhos lobos do mar entre as ondas, ao gastar tempo, em quartos sufocantes, com empregadinhos inexpressivos – examinados à luz de circunstâncias excepcionais –, ao entrar na mente labiríntica de indivíduos sórdidos, ao percorrer os becos de Paris e as ruas de uma infinidade de vilarejos das Flandres, ao narrar tramas intrincadas como a vida e premiar o leitor com atmosferas que, sozinhas, já valem o prazer da leitura. Difícil resistir à sedução das tramas, infalíveis por definição, construídas com mais precisão do que um relógio suíço. Memorável, igualmente, a sua capacidade de captar um clima, uma época, tomando como pretexto um episódio qualquer, um flash. Por exemplo, no extraordinário Os vizinhos da frente, o primeiro e devastador impacto com o Comunismo se dá por intermédio de um funeral. Estamos nos primeiros anos de Stálin, e Adil Bey, novo cônsul turco, acaba de chegar a Batum, no mar Negro. O som das cornetas o atrai à janela. Olha para a rua, embaixo, e vê os “homens da banda militar, com seu uniforme branco, sapatos de tecido e um grande distintivo vermelho no peito. O caixão era mal aplainado e mal pintado, mas de um vermelho ofuscante. Quanto às pessoas do cortejo, seguiam como se segue uma banda de música”.
Romance profético
O autor não julga – Simenon não julga nunca –, mas os dados fundamentais da realidade soviética, a terrível mistura de desleixo e abstração impessoal, já entraram no protagonista, acompanhados de uma sensação de angústia. Mais tarde, Adil Bey encosta o rosto no vidro, procura a janela da frente, “identifica primeiro um ponto de luz, a de um cigarro, depois uma manga de camisa, um braço com o cotovelo dobrado, a cabeça de um homem e, bem pertinho, a mulher que soltara os cabelos sobre os ombros”. Algumas frases e o diplomata turco já é prisioneiro de uma rede de chantagens, mentiras, desolação. O romance descreve o fechamento implacável dessas malhas, espessas e impalpáveis, oferecendo uma nítida fotografia desse universo feito de angústia, miséria e ideologia. Um texto no qual domina a obsessão da investigação policial, cartão-postal obscuro, pintado apenas com as cores necessárias, que nunca descamba em moralismo, pregação.
Bastaria esse profético romance de 1933 para perceber a densidade de um escritor modesto e visionário. Mas Simenon não é um autor artesanal; ao contrário, é uma estrepitosa máquina de escrever, que produziu, com técnicas de cadeia de montagem, mais de quatrocentas obras. E entre elas há espaço para todos os registros – como em Balzac, como em Maupassant, como em Stendhal. Difícil atribuir-lhe uma etiqueta que não seja a do gênio: um extraordinário realismo. Seus retratos – uma galeria infinita e inesquecível – são mais verídicos que uma foto: “E Mme. Loiseau, que não abrira a boca desde que o marido chegara, sorria sempre, com o sorriso de uma cabeça de cera na vitrina de um cabeleireiro” (Maigret e seu morto). Ou ainda, no mesmo livro: “Ele cheirava a covardia e a doença. Todo o seu ser lembrava um tumor...”. Seria possível pensar num estilo desencantado, o que não deixa de ser verdade. Mas nada de pensar no estereótipo do romancista fechado em seu pessimismo! A realidade é muito mais complexa, mas dentro da rotina que esmaga a existência podem-se abrir brechas que jamais imaginaríamos. O comissário Maigret, mais célebre dos personagens que nasceram da fantasia do grande belga, é alguém que passou a vida inteira em contato com delinqüentes. Mas nunca se habituou ao crime. Sobretudo nunca perdeu a capacidade de maravilhar-se, virtude essencial a um grande investigador e a qualquer homem que se respeite. No mesmo conto, belíssimo, eis como Simenon nos introduz na casa do comissário, no boulevard Richard-Lenoir, em Paris: “O apartamento era pequeno e quente. Os móveis da sala de jantar, de carvalho escuro, datavam do casamento de Maigret. Em frente, através do filó das cortinas, via-se, em grandes letras pretas num muro branco: ‘Lhoste e Pépin – Instrumentos de Precisão’”. Um microcosmo que deveria já ter entediado o olhar de Maigret. “Fazia trinta anos que Maigret via aquelas palavras, todos os dias, de manhã e de tarde, tendo por baixo o imenso portão do depósito, sempre ladeado por dois ou três caminhões, nos quais se liam as mesmas palavras”. Mas, diferentemente do que se poderia supor, “isso não o aborrecia”. E mais: “Pelo contrário! Causava-lhe prazer. Ele as acariciava, se assim podemos dizer, com o olhar. Depois, invariavelmente olhava, mais para cima, os fundos de uma casa longínqua, com roupa que secava nas janelas e, numa destas, assim que o tempo se tornava mais ameno, um gerânio vermelho”.
Ponto de partida
O que significará um gerânio vermelho? Para muitos nada, mas para Maigret pode ser um indício que conduz muito longe, um ponto de partida para começar novas explorações, até mesmo um ponto de questionamento, irônico, sobre a vida: “Não era provavelmente o mesmo gerânio. Em todo caso, era capaz de jurar que o vaso ali estava, como ele mesmo, fazia trinta anos. E durante todo esse tempo, nem uma vez Maigret vira alguém curvar-se sobre o parapeito da janela nem regar a planta. Alguém habitava aquele quarto, era certo, mas seu horário não devia coincidir com o do comissário”.
Seria possível continuar longamente com estas descrições, das quais o autor nunca desiste, mesmo quando lida com personalidades diabólicas e lugares tenebrosos. O cordão umbilical com o homem e a realidade não se rompe nunca, e o próprio Maigret nos explica por que, no momento em que joga no lixo uma hipótese extravagante que antes formulara: “Por um momento admiti essa eventualidade, depois afastei-a por me parecer muito complicada e porque professo a opinião de que a verdade é sempre simples”.
Duas mil palavras podem ser suficientes: a realidade é complexa, a verdade é simples. E, no fim, sempre se encontra uma fresta para passar. Não se sabe o momento em que a fenda se abrirá, mas cedo ou tarde aparecerá um filete de luz por entre as rochas, como esclarece ainda Maigret neste fragmento de diálogo com um juiz que é uma metáfora, surreal, da condição moderna: “‘Em que sentido vai dirigir agora o inquérito?’ ‘Em nenhum sentido. Estou esperando. É só isso que nos resta fazer, não acha?. Estamos em ponto morto. Fizemos, ou melhor, nossos homens fizeram tudo o que podiam. Só resta esperar.’ ‘Esperar o quê?’ ‘Qualquer coisa. O que se apresentar. Talvez uma testemunha. Talvez um fato novo. ’Acredita que isso acontecerá?’ ‘É preciso esperar.’”.
Centelha inesperada
Mais de uma vez a centelha aparece onde não esperaríamos: dentro da alma de homens exaustos, provados, arrastados pela corrente da vida. Hector Loursat – Estranhos em casa – é um exemplar dessa humanidade aviltada, mal temperada pelo decoro burguês com que disfarça e modera sua solidão e seu infortúnio. Todas as noites janta em companhia da filha, naturalmente sem nunca dirigir-lhe a palavra, depois se abriga em seu escritório recheado de livros, abre uma garrafa de vinho e sufoca, assim, a fragilidade que o corrói. Sufoca a lembrança dolorosa da esposa, Geneviève, que, dezoito anos antes, o abandonara na véspera de Natal, deixando-o sozinho, com uma menina de colo. Todas as noites o mesmo ritual. Mas um dia, como acontece em todos os dramas de Simenon, um crime manda às favas essa tranqüila precariedade. Deveria ser o fim, no entanto, embora Hector Loursat seja como um fruto envelhecido, precocemente murcho aos quarenta e oito anos, não está podre. Simenon rompe sua casca e revela uma polpa suculenta, vital, cheia de recursos. O advogado, que fora brilhante, mas agora era mais anti-sociável que um urso, recobra energias antigas e sensações esquecidas. “Acontecera-lhe algo enorme, imprevisto, perturbador! Saíra da toca! Descera à rua, passeara pela cidade! Mais tarde, no jantar, olhara no rosto de Nicole, sua filha Nicole, que, na falta da doméstica, tinha de se levantar de vez em quando para buscar os pratos do elevador da cozinha, e em silêncio os punha na mesa... Tinha vontade de... Era um conceito muito difícil de exprimir, até mesmo de pensar, sobretudo porque não estava acostumado com aquilo e temia cair no ridículo. Vontade de viver? Não tinha coragem de dizê-lo. Vontade de lutar, então? Sim, algo do gênero. Vontade de sacudir-se, de mandar pelos ares toda a sua sujeira, de livrar-se desses cheiros estranhos de que sua pele ainda estava impregnada, desse seu eu azedo que escondera por tempo demais entre paredes repletas de livros. E vontade de lançar-se na multidão...”. Loursat não se redimirá, verbo que o leigo Simenon desconhece, mas se resgatará da melhor forma.
Simenon teve uma vida longa, repleta de homenagens e reconhecimentos, e até luxuriante – não saberia que outro adjetivo usar – em suas ostensivas manifestações de afirmação do próprio eu. Mas sobretudo nos ensinou a amar a vida, mesmo entre tormentos e horrores, como poucos outros mestres souberam testemunhar no século que há pouco terminou.
Vida
Nasceu em Liège, Bélgica, em 13 de fevereiro de 1903. Em 1922, depois da morte do pai, mudou-se para Paris. Na metrópole francesa, Simenon obteve sucesso primeiramente como cronista e, em 1924, com seu primeiro romance: O romance de uma datilógrafa. Esse livro faz parte de uma série de contos e novelas que marcaram o primeiro período de sua carreira literária, obras escritas para jornais populares sob o pseudônimo Georges Sim. O comissário Maigret apareceu pela primeira vez no romance Pietr, o Letão: o autor conta que em setembro de 1929 encontrava-se no pequeno porto holandês de Delfzijl para acompanhar o conserto de seu barco, o Ostrogoth. O barulho excessivo impedia-o de trabalhar; pegou então sua máquina de escrever e refugiou-se dentro de um outro barco ancorado. Ali e num café próximo, Le Pavillon, nasceria o primeiro romance realmente protagonizado por Maigret, publicado em 1931. Seguiram-se muitos outros, que fizeram de Simenon um escritor de fama mundial, traduzido em mais de cinqüenta línguas. Contudo, depois de Maigret (1934), Simenon pareceu decidido a aposentar seu célebre comissário, a fim de poder dedicar-se a obras de maior envergadura. Depois de alguns anos, porém, cedendo aos pedidos dos editores, decidiu retomar as narrativas das investigações de Maigret. E confessou: "Tenho grande remorso por ter negligenciado completamente Maigret depois do último romance. É quase como ter deixado um amigo sem dar-lhe um aperto de mão. Criam-se laços afetivos entre um autor e seus personagens". Na França, Simenon não tinha residência fixa: mudava-se constantemente, algumas vezes transportando-se em seu barco, hospedando-se com freqüência em casa de amigos. Em 1945, emigrou para os Estados Unidos. Depois de dez anos, foi morar na Suíça, em Lausanne.
O próprio Simenon admitia ter amado muitas mulheres na vida. Mas fora atingido também por uma grande dor: o suicídio da filha. "Amava muito minha filha", disse numa entrevista em abril de 1979, "era muito jovem ainda. [...] O sofrimento faz parte da vida, como a alegria". Georges Simenon morreu em Lausanne, em 1989.
...e obras
Simenon escreveu mais de quatrocentas obras. As aventuras do comissário Maigret são contadas em romances policiais como Pietr, o Letão (1931), O cão amarelo (1931), O caso Saint-Fiacre (1932), Entre os flamengos (1932), A comporta n° 1 (1933), A volta de Maigret (1942), Meu amigo Maigret (1949), Maigret e os gangsters (1952), Maigret tem medo (1953), Maigret diverte-se (1957), Uma confidência de Maigret (1959), Morte na alta sociedade (1960), A paciência de Maigret (1965), Maigret hesita (1968), Maigret e o taberneiro (1970). Entre os romances que o autor definia como "sérios", estão Os vizinhos da frente (1933), Os Pitard (1935), O testamento maldito (1937), O homem que via o trem passar (1938), O viajante do Dia de Todos os Santos (1941), A viúva Courdec (1942). De seus escritos autobiográficos, destacamos Carta a minha mãe (1974) e Memórias íntimas (1981).
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