“Branqueamento” como política de exclusão
Em: 09/12/2014, às 16H28
Gilberto de Abreu Sodré Carvalho - exclusivo para Entretextos
A doutrina do “branqueamento” teve o seu formulador no francês Arthur de Gobineau, que esteve no Brasil em missão oficial da França e foi amigo do Imperador d. Pedro II.
O livro de Gobineau sobre a desigualdade das raças humanas, publicado em 1853, diz ser a raça branca a superior. Não se importa com as condicionantes culturais e de meio ambiente que explicariam as diferenças de desempenho; além de a dominação escravocrata incluir, como preceito, a imposição do analfabetismo aos negros.
Para o francês, o Brasil não teria futuro se não se “branqueasse”, se não se livrasse dos negros. Tais afirmações serviam, maravilhosamente, para justificar a vinda de europeus para o trabalho braçal, normalmente atribuição de escravos. Assim, suas concepções serviram de base “científica” para a política de “branqueamento”. A escravidão estava falida, sendo preciso uma alternativa que se fosse firmando com o tempo. O Brasil estava, a usarmos a linguagem de hoje, “sendo repensado”.
O Brasil precisava parecer com os “povos civilizados”. O operariado era de ser branco, como se via na Europa. Precisávamos nos mostrar um povo possível, sem escravismo, mas também sem lembrança do mesmo escravismo, ou seja: sem os negros e os muito pardos.
O “branqueamento”, junto ao desprezo pelo negro, é a política racista da Coroa imperial e dos governos republicanos, nos séculos 19 e 20, até 1930, ao menos. Em seguida, o processo continua por dinâmica própria; não mais conduzido pelo Governo. É o racismo à brasileira que se combina com a estratégica negação de educação igual e saúde de qualidade ao povo pobre em geral, que sucedeu aos escravos. Pela política, em referência, seria adequado ao Brasil branco, ou àquele que se queria ligado à Europa, “branquear-se” na sua população obreira.
Os negros eram a evidência material da miscigenação havida. Mesmo naqueles tempos, a concepção de “limpeza étnica” explícita não seria bem vista. Era melhor fingir que os milhões de novos imigrantes, vindos organizadamente com suas famílias e parentes, fossem “melhorar” ou contrabalançar a população negra, miserável e analfabeta por imposição de seus senhores.
Seguindo-se às imigrações durante o século 19, a oportunidade histórica para “branquear”, na passagem do século 19 para o 20, era boa para os planejadores ligados às oligarquias. Os negros ex-escravos, seus filhos e netos estavam-se reduzindo em número, formidavelmente. Morriam muito mais que os outros, uma vez que intencionalmente desassistidos. Por efeito da melancolia, procriavam pouco. Tornavam-se bêbados e criminosos; ou seja, desprezíveis. Quem sabe em cinquenta anos, ou mais, se poderia ter uma população trabalhadora majoritariamente branca? As previsões de quando o “branqueamento” iria ser comemorado como um sucesso dependia do otimismo dos políticos e “pensadores” racistas: cinquenta anos, setenta, cem. A expectativa era de que os negros e mulatos escuros iriam desaparecer, por inteiro. A limpeza étnica ia dar certo, como produto do “branqueamento” e das doenças que matavam os miseráveis.
Em 1818, famílias suíças ingressaram no Brasil. Logo em 1824, vieram alemães. Todas foram para a região serrana fluminense. Mas é entre o final do século 19 e o começo do século 20, que a nossa história luso-afro-indígena leva um formidável solavanco estrutural, com a entrada numerosa de novos imigrantes, especialmente, italianos, portugueses (novos ingressos), alemães, espanhóis etc. Esses se contam em cerca de cinco milhões, até os anos 1950.
A presença dos novos imigrantes (os antigos imigrantes são os vindos de Portugal e suas ilhas, a gosto ou por degredo; e os vindos da África, como escravos) vai significar que a produção econômica finalmente se dirige ao capitalismo industrial, já há muito em curso na Europa e nos Estados Unidos.
Em lugar dos novos imigrantes, a solução para a necessidade de braços para a agricultura do café e industrialização poderia ter sido o desenvolvimento social dos negros, mulatos, caboclos e miseráveis. Seria dar-lhes oportunidade para crescerem como segmento social. Dar-lhes treinamento, nutrição, renda, saúde e, em especial, educação. Educação que os levasse e aos seus filhos à cidadania política verdadeira. Seria liquidar o imenso passivo histórico da escravidão. Isto não foi feito. Não era para ser feito. Havia brasileiros menos brasileiros que os outros. Os negros remetiam à escravatura e à não cidadania; eram objeto de propriedade na memória cultural. Eram não brasileiros.
A cultura branca e o sistema político-econômico estavam em perigo. O propósito da elite dirigente era de superar sua dependência mutualista dos escravos africanos. A intenção era de sobreviver mediante a “parceria” com os assalariados vindos do exterior; sendo os escravos e alforriados excluídos dessa aliança, uma vez que, sem qualquer representação política, são desprezíveis e descartáveis. A ideia da Lei de Terras, de 1850, era maliciosamente inteligente: mantinha-se a nova população obreira branca fora do acesso a terras e, assim, ao poder econômico, por um tempo. Enquanto isso, os novos imigrantes se amalgamariam com o estamento dominante. Isso se pode demonstrar mediante o fato da exogamia da antiga elite com os filhos e filhas dos novos imigrantes enricados, em meados do século 20. Assim, a velha organização política seria mantida sobre a massa miserável. O pobre ignorante substitui o negro escravo.
O governo e as elites brancas mestiçadas introjetaram nos negros e mestiços mais escuros a ideia de que eram elementos inferiores. Não fariam parte da brasilidade, filha e sucessora da portugalidade e da missão civilizatória do homem branco. Ou, em linguagem mais concreta: ser branco é ser livre. A cultura europeia era superior a todas, e os brancos, seus agentes, eram intrinsecamente superiores. Não pelas melhores oportunidades que tiveram (negadas absolutamente aos escravos), mas porque eram de raça superior que deveria sujeitar todas as outras.
A rejeição ao negro, até por ele mesmo, a quem se impôs a mais baixa autoestima, fez com que o “branqueamento” fosse em parte efetivo. Hoje, apenas em certas regiões de Minas Gerais, Bahia e Rio de Janeiro se observam grandes populações de negros “retintos”, como se usa dizer. No resto do país, têm-se mestiços mais ou menos escuros, mas mestiços.
No Brasil contemporâneo, existem pessoas com DNAs europeus majoritários que parecem externamente (cor, cabelos e/ou feições) mais negras, ou menos brancas, que outras de percentagem menor de DNA europeu. Isto é simples de entender quando se observa que irmãos de mesmos pais (mesma carga genética) são diferentes em caracteres externos; o que dizer de não irmãos. Tal fato, atestado por inúmeras pesquisas recentes, é decorrente de o processo social de “branqueamento” dar maior amplitude de escolha para as pessoas de maior poder econômico e menor para os pobres. Isto leva a que o “branqueamento” por cor, cabelo e feições seja maior entre os de maior renda e menor entre as pessoas mais pobres, ainda que as doses de ancestralidade europeia, ou de DNA “branco”, tendam a ser aproximar muitíssimo mais do que indicam as aparências.
A entrada dos novos imigrantes fez com que, os brancos, ou os que se achavam brancos, representados pela elite político-econômica, pudessem negar-se ao enorme esforço para sua educação e inserção social dos ex-escravos e descendentes no mundo do capitalismo industrial. Do mesmo modo, por força do processo de industrialização e crescimento de renda, fez com que já filhos dos novos imigrantes, transplantados com seus valores, famílias e expectativas, rapidamente penetrassem as elites.
O passivo histórico, enormemente pesado, com a escravatura não é pago; é deixado de lado, como se não existisse, por não ser juridicamente exigível. A urgência de se remodelar e desenvolver economicamente o Brasil, em favor dos interesses das oligarquias, é mais importante que – ou mesmo exclui, por ser radicalmente irreconciliável - o desenvolvimento social do povo preexistente.
Ao mesmo tempo, a função do “homem branco” passa ao plano abstrato; prescinde do fato de se ser branco: o “branqueado” cultural, por força de sua função social de mando, pode lhe fazer o papel. A causa imediata da desigualdade no Brasil não é propriamente a raça, mas os efeitos da escravatura no presente da história social e sociologia das populações brasileiras. Há racismo camuflado de preconceito social contra o mais pobre e preconceito social que se confunde com racismo por coincidir com a maior negritude da pessoa em restrição ou exclusão.
O negro é excluído porque é pobre. É pobre porque nasceu de pobres impedidos, ou excluídos de qualquer oportunidade, a quem se impôs o analfabetismo. Indo-se fundo na história: nasceu de negros.
A pobreza e indigência educacional e cívica da grande maioria dos brasileiros é resultado de uma causa fundamental. Qual seria essa causa? Não se ter incluído, porque não se precisava, o majoritário contingente de negros e mestiços pobres no pacto social informal que presidiu o ingresso dos cinco milhões de imigrantes estrangeiros entre o século 19 e 20.
É urgente, hoje, um pacto abrangente com os pobres, responsável, profundo e libertador, mesmo que cento e tantos anos depois da Abolição.
Capa do livro 'Thrall' da poetisa Natasha Trethewey. Casal misto nos EUA