Rogel Samuel

Hoje é aniversário da cidade. Certa vez, no Centro Georges Pompidou li que: "Com os quartetos, Beethoven alcançou um nível nunca antes conseguido na história da música, e nunca depois superado". No 
programa, o Quarteto 1, Opus 18, que ouço, enquanto escrevo. Havia a sala, poltronas conectadas com headphones. Nos últimos quartetos 
Beethoven faz música de "avant-garde". É colocar no ouvido, fechar olhos, voar. Não há viagem mais fantástica que os quartetos de 
Beethoven. Na sala vasta da imaginação. Acredito que suas capacidades 
mergulham num abismo sem volta. Alucinógenas. Quem o ouvir 
experimenta grau de felicidade suprema. Dizem que Beethoven 
descreveu cena de "Romeu e Julieta", com o quarteto número 
1. "Trágicos gestos", emoções. Falta de ar, suspense. Lembro-me de Bilac, em 

"BEETHOVEN SURDO": 

Surdo, na universal indiferença um dia, 
Beethoven, levantando um desvairado apelo, 
Sentiu a terra e o mar num mudo pesadelo... 
E o seu mundo interior cantava e restrugia. 
Torvo o gesto, perdido o olhar, hirto o cabelo, 
Viu, sobre a orquestração que no seu crânio havia, 
Os astros em torpor na imensidade fria, 
O ar e os ventos sem voz, a natureza em gelo. 
Era o nada, a eversão do caos no cataclismo, 
A síncope do som no páramo profundo, 
O silêncio, a algidez, o vácuo, o horror no abismo... 
E Beethoven, no seu supremo desconforto, 
Velho e pobre, caiu, como um deus moribundo, 
Lançando a maldição sobre o universo morto! 


Bilac tinha dessas coisas. As genialidades. Para mim, ainda Príncipe. 
Bilac, execrado por modernistas fascistas, não se recuperou na 
opinião do público. Lembro-me de Coelho Neto, que muito pouco li. 
Coelho Neto morreu de desgosto. Vítima do modernismo. Nos seus 
últimos dias de vida, em carta ao escritor amazonense Péricles 
Moraes, dizia:

« Fala-me do seu exilio á margem do Solimões, no villarejo agreste de 
Coary. Como o invejo, meu amigo! Disso eu ando tão precisado que 
chego a acreditar que remoçaria de corpo e d’alma se, como Timon, 
deixasse este Coliseu, no qual as feras são... os homens, e me 
recolhesse a um dos circulos desse Inferno verde. Emfim, já agora, 
com 63 annos de idade e enfermo, o melhor é deixar-me ficar por aqui, 
à beira da terra que me espera. Vou escrever ao velho Lello para que 
active a propaganda do seu bello livro. Fale de mim a todos esses 
artistas, que tanto bem me fizeram ao coração.

Depois, em 25 de março de 1928: 

«A minha vida vae de mal a peior: durante
o dia, trabalho insano; á noite, vigilia á cabeceira de minha pobre 
mulher a quem Deus vae, aos poucos, tirando o alento. Eis o final de 
uma vida laboriosa. E, ainda assim, invejam-me, invectivam-me, 
enlameam-me. Decididamente, se os Padres de Roma não me canonizarem, 
inscrevendo-me entre os martires, commetterão a maior de todas as 
injustiças ».

Diz Péricles de Moraes:


"A morte de dona Gaby, pouco tempo depois, foi-lhe o ultimo 
desalento. Os seus dias estavam contados...
Nos annaes de nossa historia literaria não ha noticia do nome de 
outro escriptor mais combatido e negado do que o de Coelho Netto. Era 
um habito corriqueiro, que se transformara em vesania, cobrir-lhe de 
baldas a mirifica, a deslumbradora intelligencia. Zoilos desabridos, 
tanto mais irreverentes quanto mais irresponsaveis, improperavam-lhe 
as rajadas imaginativas, sem comprehender-lhe a culminancia do 
espirito oracular, que transluzia nos momentos estheticos de sua arte 
e nos aspectos dominantes do seu instincto creador. A furia 
modernista, em arrancadas demolidoras, atirava-se contra a grandeza 
do titan, procurando em vão diminuir-lhe a gloria."

O último concerto de Mravrinsky, Yevgeni Aleksandrovich Mravrinsky, 
teve a Sinfonia No. 4 de Brahms, em 1987. A morte deve ser 
isto: " O silêncio, a algidez, o vácuo, o horror no abismo..." Deve 
ser o último concerto.