Barras do Marataoã pulsando forte em nossos corações e em nossas mentes.
Em: 17/11/2025, às 00H41
[Dílson Lages Monteiro – da Academia Piauiense de Letras]
Bom dia, gente querida de Barras. Mais querida porque é uma gente só: independentemente do nome que carregue, é raro encontrar alguém, entre as antigas famílias, que não tenha algum grau de parentesco. Esta saudação é duplamente feliz: antes de começarmos, quero olhar para cada um de vocês e dizer: este momento é histórico. É memória compartilhada. Estamos todos aqui para exaltar o trabalho de nosso principal memorialista e historiador, entre nós, Antenor Rêgo Filho.
Senhores e senhoras,
Estamos diante de três obras que dispensam, pela sua importância sociocultural, apresentação formal. Nascidas do pensamento iluminado e da pesquisa de Antenor Rêgo Filho, a marca de autoria, por si, já é suficiente para que saibamos tratar-se de livros que carregam um pedaço do coração desta cidade pulsando forte. Pulsando forte. Repito: pulsando forte. Ao longo de mais de 70 anos de ânimo continuado por tudo que diz respeito a Barras do Marataoã (ele começou a viver a matéria de seu livros rapazote), foi o literato-historiador acumulando vasto repertório de memórias, documentos e fontes primárias outras, vitais para se compreender mais e mais a inesgotável história de seu torrão de nascimento.
Barras do Marataoã louva as obras de Tena, como carinhosamente é por todos conhecido: quem entre nós, aqui, não se emocionou com descobertas não sabidas, reunidas nas páginas de Barras, história e saudade? Quem entre nós, aqui, não se viu como parte de História da Padroeira de Nossa Senhora da Conceição, seus livros mais festejados em sua terra natal?
Poderíamos dispensar esta apresentação. A presença, entre nós, do autor e de suas novas criações, já nos enche de orgulho; esse orgulho feito de ternura e do bem-querer que é sentir-se parte de um tempo e de um lugar. Tempo e parte da Barras do Marataoã de todos os tempos. Apresentações, porém, são chaves de leitura: oxigenam as ideias, despertando hipóteses, encaminhando relações com outras narrativas, motivando novas pesquisas e, às vezes, até o controverso. Apresentações têm em sua essência uma natureza pedagógica indispensável.
Apresentação de um livro é oportunidade única para que a informação seja lida como conhecimento, seja lida academicamente: pelo uso de elementos de algum – ou vários campos do saber - chega-se a interpretações que estabelecem associações com o cotidiano do leitor. Mais ainda, apresentando uma obra se formula conceitos que evidenciam como o livro pode servir do ponto de vista existencial. Livros são mais que letras em papel, livros são a estrutura mental corporificada para permanecer por todo o sempre.
Pois bem, senhores e senhoras.
Hoje nascem publicamente, aqui e agora, não apenas três livros, mas três portas de entrada para mais claramente compreendermos quem somos como comunidade. Cada obra ilumina um aspecto diferente da identidade da nossa cidade: a imprensa, a música e o imaginário popular. Marataoã: A história contada por jornais e jornalistas (1871 a 2021), Ilha dos Amores – história da música e poesia e Fabute, respectivamente, reafirmam o empenho e o talento de Antenor Rêgo Filho, em seu sentimento telúrico peculiar, em transformar em palavra escrita as tradições e a memória de sua gente. Em sua trajetória de dedicação às letras, de maneira invulgar, soube canalizar sua energia em favor de fortalecer nosso sentimento de pertencer a Barras do Marataoã e em resgatar narrativas fundamentais da memória coletiva.
Diz José D’assumpção Barros que “para um historiador, um jornal é um caminho para compreender pontos de vista, interesses, visões de mundo, pressões e contrapressões que se escondem por traz de um texto jornalístico”. Daí afirmamos: a imprensa, sabemos, tem papel determinante como memória documental. Embora “não seja espelho ou expressão única da realidade passada ou presente, “, consiste em “prática social que molda formas de pensar, de agir, define lugares sociais e interpretações”.
Ao nos transportamos para Marataoã: A história contada por jornais e jornalistas, de Antenor Rêgo Filho, presentificamos a memória de acontecimentos que não se encerraram na sua ocorrência em si nem no registro em jornal. Antes disso, traduzem o que foi Barras e sua gente de épocas passadas. Compreendemos as estruturas de poder e seus embates político-partidários, a presença da cidade na cena da cultura regional, as conquistas, os eventos festivos e mesmo o obituário. Tudo isso agrupado para ser lido sem esforço, ao modo da escritura dos antologistas, que primam pela exatidão dos registros de fatos em linha cronológica, cabendo ao leitor gerar os vínculos de causa e consequência daí oriundos.
Em busca de construir o lugar de Barras e dos barrenses no jornalismo, Antenor Rêgo Filho situa o espaço ocupado com destaque no jornalismo por barrenses expressivos na história da Impressa Piauiense. Era barrense a grande voz do jornalismo no século XIX, David Moreira Caldas, fundador e redator de vários veículos de impressa nos idos de 1800. Mais do que um professor vocacionado, um político de compromisso com os excluídos, um poeta e historiador, foi a maior voz do jornalismo piauiense de seu tempo, por meio do qual preconizou a República, em um período em que os jornais, além de noticiosos, eram também veiculadores explícitos de ideologias políticas.
Além de David Moreira Caldas, registra o autor o destaque alcançado na impressa Carioca, quando o rio era ainda Capital da República, pelo seu irmão José Fernandes do Rêgo, falecido na década de 1980. Barras precisa conhecer o que ele escreveu fora do Piauí e no Piauí. Sem dúvidas, ao lado de Breno Pinheiro, que exerceu o jornalismo em grandes veículos de São Paulo e Rio de Janeiro, e A. Tito Filho, o notável cronista da impressa piauiense da segunda metade do século 19, além de Dondom Castello Branco, que fizeram história no Piauí. Todos devidamente referidos, não somente no talento que o celebrizaram, mas também naquilo que foi para elas a essência do sucesso: senso de humanidade, obstinação em servir.
Afora o próprio autor e um rol de nomes talentosos, entre os quais, a primeira barrense formada em Jornalismo Maria do Socorro Pires de Carvalho, que radicada em Pernambuco, graduou-se naquele estado exercendo a comunicação social ali em 1970. Atuando posteriormente no Rio de Janeiro em grandes veículos como Última Hora, O Globo e Jornal do Brasil e, por fim, como produtora do famoso programa de tv Sem Censura, apresentado pela célebre jornalista Leda Nagle.
Os fatos enumerados, lidos com curiosidade, o leitor os viverá como se lesse almanaque ou o lead de uma notícia. Deixo para o leitor a satisfação de o fazê-lo. Mas não poderia deixar de destacar que ao final da obra, há uma extensa lista de barrenses que fundaram ou escreveram em jornais e revistas. Uma motivação para as gerações de hoje, que enxergam no jornalismo instrumento para a construção de uma sociedade participativa, justa e plural.
É impossível não se orgulhar.
Pois bem, senhores e senhoras,
Quem aqui não lembra dos movimentos circulares em torno da praça Senador Joaquim Pires ao som da banda municipal na retreta?
Neste dia simbólico para Barras do Marataoã, Antenor de Castro Rego Filho nos lembra que Barras canta desde sempre. Ilha dos Amores: História da Música e da Poesia é a música viva. Aqui podemos compreender a vocação de uma cidade para a sensibilidade do som musical. Por meio do significado que foi em 1884, no adro do paço municipal, o entoar do hino da Liga Libertadora Barrense, quando Barras deu exemplo para o Brasil libertando dezenas de afrodescendentes cativos:
Eia as armas soldados dos livres
Na vanguarda já soa o tambor
Eis o mote do nosso estandarte
Liberdade aos cativos e amor
Para sempre se apague da face
Da formosa auriverde bandeira
Esse negro borrão que nos mancha
E que avilta a nação brasileira
Esse negro borrão que nos mancha
A sensibilidade musical de uma cidade está de Canção de Ninar de 1851, escrita por Manuel Tomaz Ferreira, em sua fazenda Boa Vista, para ninar suas crianças. Manuel é um dos troncos da família Rego Castello Branco/Barboza Ferreira nestas pragas, a mesma de Antenor Rêgo Filho. Tão sensibilidade está na formação da orquestra de pau e corda, com onze figurantes, ao comando do maestro Luís Fernandes Pereira, em fins de 1800 e início dos anos 1900. Essa vocação para a música está na formação da famosa banda Lira Brasileira, criada por Luiz Fernandes Pereira Filho, a 1ª. Orquesta de Barras, que por longos anos encantou o Piauí, de cuja influência resultaria, até a história recente, a formação de uma extensa legião de músicos, todos listada nestas páginas.
Essa sensibilidade está na formação, em 1926, por iniciativa do prefeito da época Gervásio Costa, de uma banda de música sinfônica de Barras, com o nome de Banda Municipal, a partir de convite a Dosa Fernandes que a formasse e a dirigisse. Escreve Antenor Rêgo Filho:
“Juntamente com a Banda, funcionava um curso de música com aulas ministradas pelo maestro Dosa Fernandes. Por essa razão aconteceu a formação de vários jovens na arte milenar e universal da música. Alguns desses alunos formados ali, seguiam para outros estados do Brasil, tornando-se profissionais da música. Tempos depois, o velho mestre recebia correspondência de alguns de seus ex-discípulos, comunicando e agradecendo o professor por ter conseguido êxito na vida profissional”.
Mais poderia dizer sobre a obra, mas deixo a cargo do leitor descobrir. Inclusive a cargo do leitor a leitura da coletânea poética que fecha magistralmente a publicação, agrupando os principais nomes da arte de versejar em Barras do Marataoã.
Barras sempre teve música no sangue. E poesia na respiração.
Pois bem, senhores e senhoras, Chegamos, então, ao livro mais afetuoso desta manhã: Bafute.
Somos seres de linguagem. Significa dizer: somos fabulação. Representamos a vida por meio de narrativas que dão sustentação à nossa identidade e nos integram à convivência humana e à natureza. Com ou sem tecnologia, encontramos meios de materializar pensamentos e emoções em narrativas que, ao ecoarem entre semelhantes, proliferam-se a ponto de projetar-se aos nossos olhos um modo de ver o tempo, os costumes e a nós mesmos.
É na literatura que essas marcas de nossa subjetividade como seres de linguagem refletem-se com mais fidedignidade. Saindo da esfera utilitária para a da plurissignificância imaginativa, a palavra potencializa a capacidade de ativar, também, mundos que não conheceríamos de outra forma que não pela representação da escrita literária, em seu modo único de revelar subjetividades. Assim é que tudo que nos cerca passa a ser humanizado e nos comove profundamente, seja pelo lirismo, seja pela crítica social, seja pelo humor.
Uma das matrizes de tudo isso está no conto e na crônica. As lendas, as crendices, as superstições, os fatos do cotidiano cristalizados de significado coletivo encontraram formas de dizer sobre comunidades e culturas inteiras e foram se modificando a darem forma a gêneros mais complexos dos quais até hoje se alimentam, revigorando a força da tradição.
Antenor Rêgo Filho é autor que, possuidor de projeto literário e memorialístico contínuo e consistente, vem nos presenteando ao longo de sua trajetória com contos e crônicas que servem tanto à literatura quanto à história e à memória. Em sua prosa agradável e rica, em um jeito de corporificar a alma, o léxico e a essência de sua terra natal, reverbera toda a tradição de uma gente alegre, festiva e avessa à indignidade. Nele, espelha-se a histórica Barras do Marataoã, em textos que vão além de sua vocação para o memorialismo, a uma escritura em que o espaço-físico e temporal subvertem-se em nomes e histórias, cheios de humor cativante.
Assim se consagrou entre nós o volume de crônicas e contos Jacurutu, saudado efusivamente por escritores como Herculano Moraes e José Ribamar Garcia. Assim são as novas narrativas que ele dá conhecimento à sua grande legião de leitores-admiradores no volume “Bafute”, que agora publica. Em 29 textos de refinado humor, o leitor encontrará, principalmente, uma gente e uma Barras de antanho, com costumes, hábitos e valores bem diferentes dos que vivem as gerações correntes e, por isso, mais significativo é o sentido social desta obra. O leitor se encantará pelas referências geográficas, ou mesmo por tipos humanos, em que se representa o caráter universal da literatura mesmo de textos que reproduzem a cosmovisão da aldeia.
A oralidade é estilizada pela fusão entre referências temporais e espaciais, que se unem ao retrato social de tipos humanos bem característicos. Além, claro da explicitação da identidade de Barras do Marataoã, por meio do léxico, que empregado com naturalidade, dá graça e leveza às narrativas. Nelas, figuram o município das décadas de 1930 a 1960. Lugares como o Bairro Boa Vista, a ponta da Rua Grande, o perímetro mais central da urbe, em meio à vivacidade do Marataoã, antigas fazendas se somam ao cotidiano em seus acontecimentos triviais personalísticos, a prostíbulo, à sátira ou à crítica bem-humorada ao comportamento das elites políticas e econômicas, a lugares da vida citadina como a quitanda, o bar, a barbearia, às rodas nas calçadas, às contradições do aparelho policial, à influência dos pequenos comércios na vida da cidade, aos hábitos da aristocracia rural em um tempo de predomínio da força do campo sobre a cidade, às crendices e às supertições, às festividades religiosas e costumes a elas relacionadas.
Entre os tipos humanos, encontra-se a humanidade do médico empreendedor sem limites para o altruísmo (em vários textos, há muitas referências a figura ímpar e inesquecível do médico José do Rêgo Lages). Também se lê o lado cômico do exercício desarrazoado do poder político; a contradição humana de valentões e velhacos; a malandragem dos que arranjam um jeitinho de afastar a qualquer custo a adversidade; a graça de lugares que não deixam chances e oportunidades para tempos infelizes nem para o falso moralismo. Nos contos e crônicas de Antenor Rêgo Filho, tudo é leveza, graça e espontaneidade.
Entre os muitos méritos de cada uma dessas narrativas, está o humor que escorre em cada texto e a reinserção no cotidiano da memória, agora em palavra escrita, de dezenas de estimadas figuras da vida social de Barras dos últimos 70 anos, sobretudo. Destacamos, ainda, a naturalidade com que apresenta um leque extenso de palavras bem nossas; ditas de maneira bem nossa. Deixamos para o leitor a tarefa prazerosa de descobrir o que aqui dissemos, porque as narrativas de sucesso deste volume dizem infinitamente mais do que qualquer explicação que venhamos a realizar sobre elas.
O humor é subversivo; disso sabemos. O hábito de recontar (ou recortar) é a força viva da memória; disso também sabemos. Que o humor e os recortes de cada uma dessas histórias ressoem em nosso sentimento como as águas tranquilas e cristalinas do Marataoã e nos contagiem do amor incondicional ao lugar que é nossa origem.
Antenor Rêgo Filho, com este triplo presente, nos devolve a Barras inteira — sua música, sua palavra, sua fabulação. Que cada um destes livros nos toque como o fervor pela santa padroeira: clareando pensamentos, refrescando lembranças, despertando orgulho.
Viva a vocação de Barras para a literatura e para a música e, especial, a vocação de Antenor Rêgo Filho para nos trazer de volta a presença imorredoura da memória! Pulsando forte em cada um de nossos corações e cada uma de nossas mentes!

