BALULA, UM MESTRE DA ARTE DE DECLAMAR
Por Elmar Carvalho Em: 29/06/2012, às 10H03
ELMAR CARVALHO
Nos meus anos de juventude parnaibana, em várias infucas etílico-culturais, me encontrei por acaso, se é que o acaso existe, com o Balula. Era ele um tipo de pele clara, alourado, de olhos esverdeados ou azuis, já um tanto encorpado nessa época, mas não gordo. Sua voz era forte, quase estentórea, vibrante, tendente ao grave, mas de timbre levemente metálico, o que parecia emprestar maior clareza às palavras que pronunciava.
Conquanto não fosse considerado um erudito, tinha invejável cultura geral, sobretudo em literatura, e mais especificamente na relativa aos grandes mestres da poesia. Sem dúvida era um causeur. Parecia detentor de eterna alegria, quase como se ainda fosse um entusiasmado adolescente. Possuía o dom de atrair a atenção. Gostava de declamar e falava de forma rítmica, vibrante, quase como se estivesse a discursar.
Pelo modo alegre e entusiasmado como conversava, denotava ter muita energia e vivacidade. Sorvia a cerveja com elegância e sobriedade, e não como um bebedor qualquer. Nunca o vi a choramingar nem a debulhar amargura, rancores ou tristezas. Era um entusiasta da vida e da arte, e portanto propagava alegria e sentimentos positivos.
Na primeira vez em que o encontrei, fez a interpretação de um poema que eu não conhecia, embora fosse eu, já então, um bom conhecedor da poesia brasileira, pois já lera vários poetas e antologias, sabendo de cor vários poemas, que recitava, apesar de não ter a maestria de Balula. Segundo Vicente de Paula Araújo Silva (Potência), esse texto era As mãos de Eurídice, monólogo de Pedro Bloch, um dos mais encenados da literatura brasileira.
Com expressões corporal e facial apropriadas, com sua bonita e límpida voz, Balula não apenas recitava o texto; na verdade, como um lídimo ator, o interpretava com emoção e de forma convincente, como se estivesse vivenciando aquela experiência trágica. Antes do início da declamação, ele discorria brevemente sobre o poeta e fazia uma notável contextualização do poema, provocando uma espécie de suspense, com o que mais ainda nos despertava o interesse. O final da encenação, que consistia no seu ponto mais dramático, era quando ele dizia que iria quebrar a taça da amargura – e literalmente quebrava a mais transparente e bela taça que existisse no recinto. Todos nos emocionávamos, e o aplaudíamos com muito entusiasmo.
Não sei se é verdade ou se é apenas uma “folclorização” de algum espírito jocoso, de forte imaginação anedótica, mas consta que em certa comemoração familiar o marido presenteara a mulher com uma rara coleção de taças de cristal, de alto preço. O Balula, como era de praxe, ao finalizar o monólogo, espatifou dramaticamente uma das taças, tornando incompleta a coleção. O marido, um tanto colérico, quis tomar satisfação com o nosso poeta, mas foi dissuadido de fazê-lo, por um dos filhos do casal, naturalmente por reconhecer a alta qualidade da performance balulística.
Em outra ocasião, uma sábia dona de casa, de forma precavida, já conhecedora da arte interpretativa do mestre, colocou na mesa várias taças, mas de plástico. Foi, talvez, o seu momento de maior frustração quando, nessa ocasião, ao encerrar apoteoticamente a mise en scene, tentou por várias vezes espatifar “a taça da amargura”, sem consegui-lo. O vaso empinava, mas se mantinha teimosamente íntegro.
Foi, igualmente, com frustração e tristeza, que, ao entardecer melancólico do dia 9 deste mês, por telefone, recebi do professor Antônio Gallas Pimentel a notícia de que a taça da vida de Balula fora quebrada. Certamente a essência espiritual de seu conteúdo foi recolhida por Deus. Em algum dos páramos celestiais, Francisco das Chagas Veras, seu nome no registro civil, haverá de erguer a taça da beatitude e da alegria plena, sem jaça.