As sete idades do homem


                    O objetivo deste artigo é publicar mais uma tradução minha na forma bilíngue, como venho, de vez em quando, fazendo nesta Coluna. Desta vez trago ao leitor uma passagem da comédia shakespeariana As you like it 1 Não analisarei aqui a comédia como um todo, mas apenas farei mais adiantei alguns comentários gerais sobre a obra de Shakespeare a fim de melhor contextualizar a minha tradução.
                  A passagem traduzida é considerada como a mais famosa da comédia em questão e diz respeito à fala de Jaques, um dos senhores a serviço de um honesto Duque da França, que foi banido dos seus domínios por Roderick, seu irmão mais jovem e usurpador.

            (...)
All the world’s a stage,
And all men the men and women meerely players:
They have their exists and their entrances;
And one man in his time plays many parts,
He acts being seven ages. At first the infant,
Mewling and puking in the nurse’s arms.
Then the whining school-boy, with his satchel
And shining morning face, creeping like snail
Unwillingly to school. And then the lover,
Sighing like furnace, with a woeful ballad
Made to his mistress’ s eyebrow. Then a soldier,
Full of strange oaths, and bearded like the pard,
Jealous in honour, sudden and quick in quarrel,
Seeking the bubble reputation
Even in the cannon’s mouth. And then the justice,
In fair round belly with good capon lined,
With eyes severe and beard of formal cut,
Full of wise saws, and modern instances;
So he plays his part. The sixth age shifts
Into the lean and slipper’d pantaloon,
With spectacles on nose and pouch on side,
His youthful hose, well saved, a world too wide
For his shrunk shank; and his big manly voice,
Turning again toward childish treble, pipes
And whistles in his sound. Last scene of all,
That ends this strange eventuful history,
Is second childishness and mere oblivion,
Sans teeth, sans eyes, sans taste, sans every thing2

                           (...)
 

O mundo é um palco,
E todos os homens e mulheres são meros atores:
Têm suas saídas e suas entradas;
No princípio, apenas uma criança
Miando, vomitando nos braços de uma babá.
Depois, vem o escolar, com a sua pasta, reclamando aos gritos,
Com o rosto fresco da manhã, se arrastando qual lesma,
Desgostoso de ir para a escola.
Mais tarde, surge o amante,
Suspirando que nem uma fornalha, compondo tristes baladas
Às sobrancelhas de sua amada.
Tempos depois, vem um soldado
Cheio de estranhos juramentos, peludo como um leopardo
Zeloso de sua honra, pronto e rápido para uma briga,
Na procura de vã notoriedade
Mesmo diante da boca de um canhão.
Passa o tempo. Agora, é a vez dos sentimentos de justiça
Mas de barriga cheia de suculento capão forrada
Com olhar sisudo, barba de corte conservador,
Dono de sábios conselhos e de exemplos atuais:
Dessa forma, cumpre seu papel.
Na sexta idade, se enfia em calças e em chinelas simples
Agora, usa óculos, bolsa de lado;
Num mundo muito vasto, as meias juvenis, bem conservadas,
Não são de mais valia paras para suas pernas agora finas.
Sua voz viril e portentosa
Volta aos sons agudos de criança, agora pia, vira assobio.
Última cena de um desfecho de uma estranha e episódica história:
Volta a ser criança. Vai-se a antiga memória saudável:
Sem dentes, sem visão, sem paladar, sem nada.


                      A passagem, que o leitor acaba de ler, se insere na vertente cômico-irônico desta peça shakespeariana, valendo-se de uma reflexão sobre as fases de vida de cada um de nós mortais. A retomada do tema, em clave filosófica, soaria como aparente tautologia, não fosse a reflexão contida na fala do personagem que, ao invés de considerar as três fase conhecidas de nossa existência – infância, juventude e velhice, jocosamente as desdobra, sem nomeá-las mas conceituando-as, em imagens, em sete, a saber, pré-infância, infância, juventude, mocidade, maturidade, velhice e senilidade. Embora o tema seja de alcance universal, sua apreensão se torna fácil na consciência comum dos indivíduos. 
                    No entanto, o lado jocoso que, a princípio, lhe dá a forma do gênero comédia, ao mesmo tempo sofre uma ruptura dessa dimensão cômica para uma dimensão séria, tremendamente realista ao deslocar a atenção do leitor para as implicações filosóficas daí decorrentes. O poeta, ao reforçar a tautologia daquelas três principais fases da existência humana, nos obriga a repensar nossa frágil condição de finitude, de temporalidade limitada.

                  O que o bardo inglês nos deixa perceber, através das considerações do monólogo de Jaques, ao satirizar todas as fases de idade do homem, é a regra (universal) a que todos estamos submetidos, sem exceção. Ninguém escapa, a menos que morramos cedo, a essas fases de mudanças, pois a nossa condição de viventes segue uma lei implacável, a lei natural, biológica. As sete idades do homem, sendo um retrato, segundo frisei, em parte cômico e em parte irônico, da vida, ao brincar assim com a humanidade, desnuda ao mesmo tempo a trágica dimensão universal do ser associado à decrepitude devastada pelo tempo inexorável como a afirmar com lucidez cristalina e niilismo macbethiano: - Todos passaremos por isso irremediavelmente.
                 Na passagem em análise, reafirma-se a universalidade da visão global do pensamento de William Shakespeare, conforme tem sido tantas vezes evidenciada por estudiosos de sua obra. Shakespeare, poeta trágico por excelência, na comédia não perde sua qualidade de notável poeta de todos os tempos, simplesmente porque, como sabem todos os estudiosos e conhecedores de sua obra, trouxe para o bojo de suas produção literária uma gama de sentimentos humanos que atravessam o tempo e não envelhecem, porquanto fazem parte da própria situação do homem na Terra: o amor, o ódio, a bravura, a inveja, o poder, a amizade, a covardia, a falsidade, a usura, a traição, os quiproquós, as situações confusas, os desencontros, que sempre estarão presentes no complicado jogo das relações entre as pessoas. Quer dizer, seus temas são parte indissociável dos sentimentos eternos.
                 Shakespeare, como outros geniais escritores, consoante assinalam seus exegetas, não se notabilizou pelo traço da originalidade da imaginação de temas. Antes de tudo, o que ele fez magistralmente foi pesquisar fontes históricas, literárias, populares já existentes. Dessa matéria se serviu para compor suas obras, suas tragédias, suas comédias, seus sonetos, sua lírica, e, a partir desse meticuloso trabalho de adaptação daquelas fontes disponíveis, retrabalhou temas e situações da vida humana. Nesse reaproveitamento reside sua capacidade de superar o material pesquisado, de dar-lhe mais riqueza e vigor no aprofundamento dos temas e na diversidade de formas de linguagem.    

              Nisso, vejo sua originalidade e sua contribuição como dramaturgo clássico e grande psicólogo da alma humana,, insuperável enquanto existir vida no planeta.
             A originalidade em Shakespeare provém dominantemente de seus recursos técnicos no uso da linguagem poeticamente trabalhada, sem nenhum preconceito no emprego dos diversos registros da língua inglesa. Sua dicção poética revigorou a língua inglesa, modernizou-a para a época.

             Penetrar na leitura do teatro shakesperiano, nas suas peças trágicas, nas suas comédias hilariantes, na variabilidade de seus personagens, na sua poesia lírica, é uma oportunidade ímpar para compreender o quanto a criação literária se torna um poderoso instrumento de entender a vida nos seus mais diferentes e complexos aspectos independentemente dos séculos.
John Burguess Wilson3 alude a uma afirmação de um escritor francês que, aliás, não cita, sobre o valor da obra de Shakespeare: ‘Depois de Deus, foi quem mais criou..’ O próprio Burguess Wilson chega a esse juízo consagrador: “Ele [Shakespeare] vale por dez homens.” Para finalizar, eu acrescentaria: vale por dez homens de máximo valor na história da literatura mundial.

Notas:
 1 SHAKESPEARE, William. The complete works of William Shakespeare. The Cambridge Edition Text, as edited by William Aldis Wright, including the Temple Notes. Illustrated by Rockwell Kent, with a Preface by Christopher Morley. Philadelphia: The Blakiston Company, USA, 1936, p. 677.
2 Quanto ao sentido de base niilista, corrosiva, sobre o destino dos homens não há como não associar esse monólogo de Jaques ao famoso trecho de Macbeth:, Act 5, Scene 5, op. cit., p.1053.
(... )
Life’s but a walking shadow, a poor player
That struts and frets his hour upon the stage
And then is heard no more: it is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifiying nothing.

3BURGUESS WILSON, John. English literature – a survey for students. London:
Longmans, 9 th impression, 1970,p.103.