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As mais longínquas identificações

 

NEUZA MACHADO

 

O segundo narrador, ao contato com a “endosmose do devaneio e das lembranças” (como se “a endosmose do devaneio e das lembranças” fosse “um sangue nas veias” e a película que recobre o sangue das veias simbolicamente e dinamicamente separasse o interior do exterior), buscou, em princípio, as descidas de sua antiga morada. Em um primeiro momento interativo, o personagem Ribamar foi ao encontro de antigas impressões sobre a Cidade. A Casa/Manaus impunha ser revisitada, e exigia uma descida às profundezas das lembranças (memória) e das recordações (lirismo). Durante a renovada visita, o personagem subiu e desceu, para, posteriormente, subir como um vitorioso, as poucas ruas íngremes. (Não há morros em Manaus. Os limites do olhar dependem da Floresta).

 

 

O segundo narrador ultrapassou a história de sua anterior realidade sócio-mítico-substancial (“a história sempre demasiado contingente dos seres que a sobrecarregaram”) e encaminhou o personagem Ribamar de Sousa até ao profundo espaço de solidão do plenipotenciário do ato de narrar. O Ribamar, por sua vez, levou o segundo narrador ao porão da casa de Juca das Neves. O porão não era grande, “era um cômodo sem janela, debaixo da escada, e ali dentro sentia-se muito calor, umidade e mofo”, mas, para Ribamar, “era um luxo”. Era “um luxo” porque se substancializou como o lugar preferido d’O Amante das Amazonas, depósito “atravancado de coisas” - saberes recebidos e saberes adquiridos - indispensáveis àquele que soube tão bem saborear “os silêncios tão especiais dos diversos abrigos do devaneio solitário”, ao decorrer de sua própria existência. Ao longo da descida (ao porão dos “belos fósseis de duração concretizados por longas permanências” reflexivas, lembrou-se das palavras de Maria Caxinauá: “- Agora você vai para Manaus...” Agora sim, o Ribamar teria de dessocializar-se das históricas grandes lembranças e atingir o espaço da solidão do segundo narrador. O personagem Ribamar aceitou a intimação, no lugar do outro, aquele que realmente o conduzia, pois sabia que em Manaus iria vencer (o seu guia ficcional, o “outro eu”, o narrador principal, qualquer que seja a nomenclatura para revelá-lo, já era um vencedor). Mas, antes do triunfo, seu guia ficcional o obrigou a visitar o porão de sua “casa onírica”. O porão também estava indelevelmente conservado no segundo narrador, “como um fragmento” de antiga construção a ser desvendada. A casa de Juca das Neves se mostrou/se mostra também como uma extensão da “casa onírica” algures assinalada. Algum poderoso Ribamar do passado histórico certamente a habitou. Na terceira fase do romance todas as casas compõem apenas uma casa, Manaus, com seus corredores (ruas), suas escadas (as imponentes e artísticas escadarias dos Palácios e as poucas ruas de ladeiras) e seus diversos cômodos (as casas). Cada cantinho da cidade formaliza a “casa onírica” do principal narrador. Tudo está disperso e, paradoxalmente, ligado. “Parece que o sonhador está pronto para as mais longínquas identificações”. Fechado nele mesmo, graças àquele movimento ficcional “para dentro”, por enquanto, o personagem Ribamar terá de conhecer o porão, o “canto escuro” e sagrado de quem realmente narra. O segundo narrador encaminhou os passos de Ribamar até à sua própria gruta de solidão (à gruta de iniciação religiosa, à gruta dos mistérios insondáveis). Bachelard explica tal procedimento: “Há uma raiz onírica única na origem de todas essas imagens”[lvii].

O fogo da labareda da serpente

Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel