Quinzenalmente,uma nova crônica de Dílson Lages nesta coluna
Quinzenalmente,uma nova crônica de Dílson Lages nesta coluna

(*) Dílson Lages Monteiro

Acordei com a certeza de que o ano, de fato, iniciava-se. Ainda que começasse com incertezas maiores que as habituais. Quando viria realmente a vacina? O que voltaria a ser como antes? Seria possível largar as máscaras e respirar de verdade sem ameaças em que dia, em que mês, em que hora? Tudo isso ficou do tamanho das pétalas de flores jogadas pelo vento na calçada. Pequeninas pétalas de esperanças. Nos passos para trás, ficavam também, a cada pisada entre a firmeza e a leveza de meu corpo esguio, a solidão de quase dez meses trabalhando do interior do quarto-escritório. Solidão medida, porque encorpada pela exaustão da tela.

Dez é um número de excelência. Em ouvindo-o ou vendo-o, lembramos logo os dribles habilidosos de algum camisa 10. Mas haveria excepcionalidade nos derradeiros 10 meses que o calendário teima em manter vivos? Por alguns minutos, 10 meses ficaram para trás nos excessos da intensidade com quem foram vividos. Agora concretamente seriam pó e lembrança de um tempo indesejado (Seriam? Se pergunto, parece-me que criei condições para subvertê-lo beneficamente).  

Na esquina da empresa, encontro efusivamente a amiga de profissão, companheira também dos tempos de universidade. Nossa palavra foi uníssona: “Chegamos para viver 2021!”. 2020 era um ano que a borracha borrou. Uma mancha de recordações ruins. Alguns amigos e conhecidos de muitas esferas tinham-se transformado em estrelas e saudade. 2020 era, também, um ano de aprendizados únicos: tivemos que encontrar inesperadas soluções para uma vida ativa, a seu modo, sem nos contaminarmos com o vírus da onda.

Medimos nossa temperatura. Higienizamos as mãos. Antes que houvesse tempo para falar do lado bom do “ano virtual”, obrigamo-nos por nos despedir, para atender as demandas do trabalho e do isolamento social. Ainda que, alegres pela respiração contagiante do ofício de quem o vive entusiasmadamente, carregávamos a percepção de que continuaríamos, pelas regras impostas para o tempo imediato, vivendo a sensação de que o virtual estava definitivamente integrado ao nosso fazer e viver. O virtual era mesmo solidão? Passei o resto do dia com a pergunta circulando pelo pensamento na companhia de uma exclamação. Eita, que interrogação com exclamação é dose! Não é?! Os neurônios arrumando uma forma de subverter.

A impressão de que a solidão, já tão comum ao viver dos que têm na reflexão a matéria-prima do labor, ganharia novas formas de expressão: ia tomando jeito! Entre o pátio e os 50 metros da mesa de trabalho, estavam as recordações do dia no campo. Os dez dias do final do semestre. Aqueles dez dias, como os dez meses, na solidão; aquela, voluntária e totalmente benfazeja. Como habitualmente faço todos os anos: entre árvores e bichos. Imerso em percepções absolutamente diferentes. Do topo do casebre no morro, a vista de antigas mangueiras e a infinidade de babaçuais cantando o barulho da música das folhas. Vento, muito vento que fala de seu modo os sinais das estações. Tudo, percepção e solidão.

Saúdo um colega de jornadas. Algumas palavras risonhas e de estímulo animam a tarde. Sento-me à mesa. Organizo as demandas. A sozinhez do trabalho mental vai se acomodando ao espaço de antes. Pela tarde inteira. Ponho-me brevemente a pensar na produtividade das muitas horas de palestras, cursos, livros e, principalmente, nas muitas horas de aula de um novo jeito — à frente de uma tela —  e nas muitas horas de sono a menos. Solidão condicionada. Solidão laboriosa. E agora, cronologicamente falando, a solidão alegre da nova rotina antiga e necessária...

(*) Dílson Lages Monteiro é autor, entre outros, de Capoeira de Espinhos (Nova Aliança).