As flores vestidas de branco
Por Rogel Samuel Em: 08/12/2008, às 23H36
Na rua sou abordado. A mulher que me pede dinheiro. Geralmente nunca
paro, nessas ocasiões.
Eu vinha de um concerto. A Filarmônica do Rio de Janeiro, de Florentino
Dias, que melhorou muito. Concerto pela paz, com distribuição de muitas
flores brancas por moças vestidas de branco, como castas noivas e com a
presença do cônsul americano e de sua família. Encontrei meu amigo C. no
foyer. Conversamos sobre política e música. Falamos sobre Menininha
Lobo, uma grande pianista brasileira. Digo: Cassar sempre me lembra os
anos sessenta. O Congresso é o contrário das ditaduras. Ele não me
compreende e se irrita, acha que defendo Jader. Vejo que nossa conversa
se torna cada vez mais ácida e rapidamente me despeço, pois o concerto
vai começar. O começo foi fraco, a Abertura "Salvador Rosa", de Carlos
Gomes. Depois a orquestra foi ficando maior, foi "esquentando", e no fim
apresentou uma Quinta Sinfonia de Tchaikovsky que emocionou. Conheço a
orquestra desde o tempo do falecido amigo Nathanael Caixeiro. "Nata",
violinista da orquestra, professor de filosofia e história, e tradutor.
Traduzia de várias línguas. Tinha coleção de violinos. Mas era pobre,
morava mal. O apartamento dava para um viaduto horrível, o Paulo de
Frontin. Eu o conheci em Campo Grande, quando professor do Estado. Logo
encontramos um ponto de apoio nas nossas conversas: a música. Nata
também pintava, e muito bem. Assinava ironicamente "Petit-grand", porque
era baixinho. Teve morte antológica. Um domingo cedo foi levar o cão
para passear. Depois, como sempre fazia, ia praticar o violino, sentado
na cama. Sua mulher foi fazer um café. Quando voltou, ele estava morto,
segurava o violino e o arco, braços abertos na cama. Sou abordado na rua
por mulher diferente, não exatamente mendiga, vestida de classe média
baixa, uma viúva, ou abandonada pelo marido. Noto que suas mão tremem,
pálidas. A rua deserta, me pede dinheiro, envergonhada de pedir. "Tenho
de comprar comida pra minha casa", ela diz, e abre dois sacos plásticos
de supermercado, onde posso ver bananas. "Não tenho mais dinheiro", diz
ela, e começa a chorar. Parece doente. Suas lágrimas eram reais. Ela
sofria. Via-se a pedir dinheiro e sofria. Soluçava para dentro, por sua
desgraça. Os sinos, à distância, tocam. A desgraça, a fome. Lembrei-me
de que, na Sala Cecília Meireles, tocou-se a "Valsa das Flores". Das
flores brancas, alvas, puras, castas. Meu pensamento fugia, voava pelo
espaço. Uma menina passou, sorrindo. Era como se estivesse vestida de
branco. Sorriu. Sento-me no bar e me ponho a ler Alfonsina Storni:
Tu me queres alva,
me queres de espuma,
me queres de nácar,
que seja açucena
mais casta que todas.
De perfume suave;
corola fechada.
Nem raio de lua
filtrado me toque.
Nem a margarida
seja minha irmã.
Tu me queres nívea,
Tu me queres branca,
tu me queres casta.
Tu, que as taças todas
já tiveste à mão.
Os lábios corados
de frutos e mel.
Tu, que no banquete
coberto de pâmpanos,
as carnes gastaste
festejando a Baco.
Tu, que nos jardins
escuros do engano,
lascivo e vermelho
correste no abismo.
Ó tu, que o esqueleto,
não sei por que graça
ou por que milagre
conservas intacto,
só me queres branca,
(que Deus te perdoe!)
só me queres casta,
(que Deus te perdoe!)
só me queres alva.
Foge para o bosque,
vai para a montanha,
purifica a boca,
vive na humildade.
Segura com as mãos
a terra orvalhada.
Alimenta o corpo
de raiz amarga.
Bebe a água das rochas,
dorme sobre a geada,
renova os tecidos
com salitre e água.
Conversa com os pássaros,
lava-te na aurora.
E já quando as carnes
ao corpo te voltem,
e quando hajas posto
nas carnes a alma
que, pelas alcovas
ficou enredada.
Então, homem puro,
pretende-me nívea,
pretende-me branca,
pretende-me casta.
(Trad. de Oswaldo Orico)