As confusões sobre a liberdade americana
Por Paulo Ghiraldelli Jr Em: 01/11/2014, às 21H54
[Paulo Ghiraldelli Jr.]
O antiamericanismo da esquerda brasileira tem as mesmas raízes do antiamericanismo da direita mundial. A questão central é a noção de liberdade. Esquerda e direita não suportam a base do gosto americano pela liberdade individual, que inspirou a vocação menos conservadora do país, e que tangencia a liberdade do liberalismo de Locke, sem nunca ter se fundido neste. Afinal, há de se lembrar, Locke ajudou na Constituição de estados americanos, e jamais tocou na questão da escravidão nesses estados.
A liberdade americana que sempre seduziu boa parte da esquerda interna aos Estados Unidos (menos a maior parte da Nova Esquerda) tem inspiração filosófica em Ralph Waldo Emerson, um pensador de meados do século XIX. Sua contrapartida europeia é um leitor deste, Nietzsche. Ambos falaram na noção de eu não substancial, do eu que busca se edificar a partir do experiencialismo, ou seja, da prática da memória das experiências corajosas que cada um de nós pode perpetrar se não é um fujão da vida. Para Emerson ou Nietzsche nunca a questão da liberdade esteve restrita ao pensamento político. Eles foram filósofos, não politicólogos. Eles sabiam que a questão do poder, quando restrita ao âmbito político, nunca fornece nenhuma dimensão da vida efetivamente importante para a descrição dos humanos.
Esse apego à liberdade nunca fez de Emerson um pensador não generoso. Ao contrário! Não raro, o encontramos na base sutil de todo o pensamento mais generoso da América, inclusive de correntes filosóficas distintas à sua, o seu transcendentalismo. Podemos ver traços dele nos pragmatistas velhos e novos (a noção de “edificação” de Rorty não nos lembra de Emerson?)
Ora, mas se é assim, por que conservadores atuais no Brasil e, enfim, na Europa (Roger Scruton à frente), que se dizem liberais, parecem se apoiar em certos pontos do pensamento americano (resvalando em Nietzsche) para dar combate a todos os que querem justiça social?
Há aí um tortuoso caminho, típico do raciocínio de que nem sempre raciocina.
Os Estados Unidos de Emerson possuíam uma característica, até hoje vigente na América, de criação de clubes, associações e grupos de filantropia de um lado e de lobbies de outro. Emerson tinha pavor disso. Eram grupelhos de hipócritas que cortavam a liberdade individual pela raiz. Essa era sua observação: filantropos americanos que o fossem individualmente, mas, uma vez em clubes, tornavam-se uma praga. Emerson sempre esteve na base do movimento contrário à catástrofe americana, o espraiamento da hipocrisia, ou seja, o Lions e o Rotary, modelos de uma série de milhares organizações que iriam salvar o mundo. Todas essas associações sempre fizeram jantares onde se gastou mais ali, na comida, do que se conseguia arrecadar para o benefício pretendido. Ora, os conservadores roubaram de Emerson essa ideia, e por uma operação mental típica do pensamento discriminatório (e que, mais tarde, operou com ideias de Nietzsche também entortadas), se voltaram contra todo clube não-filantrópico, mas de reivindicação efetiva de construção de um mundo melhor.
Foi assim que grupos de defesa dos animais, grupos de desarmamento, grupos de feministas, grupos de direitos dos negros, grupos de luta por uma vida melhor para imigrantes pobres etc. foram trazidos todos para o campo dos que queriam somente cortar a liberdade individual, arrancar dinheiro em benefício próprio, não deixar viver os que haviam tido sucesso individual. Erradamente os conservadores viram em movimentos sociais e sindicatos alguma coisa que poderia receber a crítica de Emerson aos grupos religiosos e de filantropia. Acharam que frases de Cioran contra o salvacionismo de um São Paulo (ou de um Lênin) poderiam ser a melhor tradução de frases contra o salvacionismo proposto por clubes de hipócritas americanos.
O generoso pensamento de Emerson, que jamais teve qualquer censura aos que buscaram um mundo progressista, passou a ser visto, para olhos pouco analíticos de todos os lados, como sendo um pensamento capaz de justificar todo ataque ao pensamento social como sendo um desdém para com a hipocrisia. A direita atual brasileira ataca grupos mudancistas por essa via. Às vezes o faz por desconhecimento, má formação e balbúrdia mental. Outras vezes faz por isso tudo e associa a isso má intenção e uma pitada de derrotismo pessoal. Não à toa a direita adorou ver na revista Veja a entrevista de Roger Scruton, vociferando contra gruemerson_classic_thongpos de jovens revoltosos na Europa, aqueles que podem promover queimas de carros e que podem a qualquer momento se reunir em movimentos anticapitalistas de grande porte (Os occupies) .
Mas a nossa própria direita tem lá seus intelectuais para cometer os erros que são necessários ser cometidos para que um povo não anule de todo seu direito à permanência no Terceiro Mundo da cultura.
Professores de filosofia que se põe no serviço do jornalismo podem agir assim. Dennis Rosenfield e Luís Felipe Pondé defendem um pensamento aparentemente libertário, que poderia parecer a eles mesmos como “americano”, e assim atacam todo tipo de clube que não queira que indústrias maltratem animais ou todo grupo que acredite que uma boa reforma agrária no Brasil ajudaria a todos. São subversivos contrários ao americanismo de Emerson. Mas idolatram a América porque acham que a América é só a deles, só o que eles e o Tea Party imaginaram como a América vale como a América. Não raro isso vira pastiche. O quanto fazem isso para vingarem como populares aos jovens da onda conservadora atual ninguém sabe. Nunca saberemos o que um homem e uma mulher têm na alma se o desejo é ser popular para uma claque.
A esquerda brasileira pensa o individualismo americano como base, e não o distinguem em suas fontes filosóficas e o modo que tal pensamento se espraia na vida do escolarizado americano. Ficam confusas e caem no colo de um Rosenfield ou de um Pondé e, todos juntos, criticam Obama, que é quem busca sempre manter a liberdade vinda das raízes do pensamento americano com os impulsos da social-democracia e do solidarismo, firmados pelo novo liberalismo americano, o que nasceu com o New Deal e que teve na base filosófica nada mais nada menos que um John Dewey, o “filósofo da democracia”.
Quando fundamos o GT-Pragmatismo e Filosofia Americana na ANPOF, antes ainda do século atual, queríamos trabalhar com essa visão analítica. Também ela inspirou o nascimento do CEFA (http://cefa.pro.br), centro de Estudos em Filosofia Americana, já há mais de vinte anos. Por isso mesmo, não raro, essas entidades às vezes extrapolam o próprio estudo de autores americanos. Por exemplo, recentemente estivemos trabalhando no CEFA O quinto evangelho de Nietzsche, um belo livro em que Peter Sloterdijk aglutina sua esferologia às ligações entre Emerson e Nietzsche nos esforços de um pensamento edificante.
A vida inteligente precisa da investigação filosófica de fundo. Nem tudo que sai nos jornais, dizia Nietzsche, pode ser verdadeiro, pois o jornal tem sempre o mesmo número de fatos e sabemos que não ocorrem na realidade o mesmo número de coisas (para os analfabetos: isso foi uma piada de Nietzsche tá?).
Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo.