As aulas do professor Cortázar
Por Bráulio Tavares Em: 14/04/2018, às 05H52
[Braúlio Tavares]
Em 1980, Julio Cortázar fez na Universidade de Berkeley (Califórnia) uma série de palestras sobre literatura, que foram agora reunidas em livro: Aulas de Literatura – Berkeley, 1980 (Rio: Civilização Brasileira, 2015, trad. Fabiana Camargo).
Com uma platéia que misturava latino-americanos e norte-americanos estudantes de língua e literatura hispânica, e certamente algumas dezenas de cronópios infiltrados, mestre Júlio discorre sobre sua obra, a política latino-americana, os gêneros literários; lê trechos dos livros (ele lê e comenta trechos de “O Perseguidor”, “A Auto-Estrada do Sul”, Histórias de Cronópios e de Famas, etc.), debate, responde perguntas.
Em sala de aula, Cortázar não é um teórico tão fluente quanto escrevendo. Seus artigos críticos sobre literatura são, em geral, brilhantes, mas indicam uma longa elaboração. Falando de improviso, ele meio que glosa os temas que o leitor habitual já conhece. Sempre cortês e respeitoso com os alunos, sempre cerimonioso; quando defende suas posições políticas o faz com a cautela de quem sabe estar pisando território estrangeiro.
Nos capítulos-aulas sobre realismo e o Fantástico, ele reitera posições que sempre defendeu, sempre com comentários oportunos.
A passagem do fantástico ao realismo não é tão fácil quanto parece, já que ninguém sabe exatamente o que é a realidade. (p. 129)
O que lembra a conhecida “boutade” de Jorge Luís Borges: “Ainda não sabemos se o Universo pertence ao gênero realista ou ao gênero fantástico.”
Temos todos uma idéia pragmática da realidade, claro, mas por acaso a filosofia não continua a se questionar sobre o problema da realidade? Neste exato momento, os filósofos continuam propondo a questão por não haver solução ou haver apenas soluções ingênuas. Aceitamos o que os nossos sentidos nos mostram, apesar de qualquer pequeno teste demonstrar que nossos sentidos nos enganam facilmente. (p. 129)
Nem sempre os críticos lembram de Kafka como uma das influências maiores na obra de Cortázar, talvez porque o mundo soturno, preto-e-branco e nublado do escritor tcheco pareça ter uma textura diferente das histórias do argentino, que nos parecem mais cheias de vivacidade, cor, vida cotidiana, mesmo quando seus personagens se envolvem em circunstâncias terríveis.
Cortázar faz o elogio do tcheco e lê para seus estudantes o conto (transcrito na íntegra) “Com legítimo orgulho” (de A Volta ao Dia em 80 Mundos, 1967). O conto transcorre num país imaginário e serve como uma redução-ao-absurdo bem kafkeana, ao descrever um insólito ritual envolvendo folhas secas, mangustos, serpentes venenosas, sepulturas e outros ingredientes.
Um capítulo importante no livro é o da Quinta Aula, que trata de “Musicalidade e humor na literatura”. Cortázar defende esses dois aspectos tão importantes em tudo que escreve.
[A] prosa literária (...) pode se dar como pura comunicação e com um estilo perfeito mas também com certa estrutura, certa arquitetura sintática, certa articulação das palavras, certo ritmo no uso das pontuações ou das separações, certa cadência que infunde algo que o ouvido interno do leitor vai reconhecer de maneira mais ou menos clara como elementos de caráter musical. (p. 159)
Esta talvez tenha sido uma influência que Cortázar exerceu sobre Garcia Márquez, que via no argentino uma espécie de mestre. Já vi Márquez afirmar na TV: em tudo que escrevia devia haver uma espécie de voz encantatória, uma litania de frases obedecendo variados ritmos e variadas entonações, uma espécie de melodia permanente. “Às vezes,” dizia ele, “meu texto tem palavras que nem significam grande coisa, mas estão ali para manter essa cadência encantatória, porque se houver uma única quebra ou desafinação o texto inteiro cai por terra e o leitor acorda.” (Estou citando de memória.)
Isso leva Cortázar a eventuais atritos com as pessoas que manuseiam seus textos, tais como revisores e tradutores:
[H]á sempre na editora esse senhor que se chama “o corretor de estilo” [ou copidesque], e a primeira coisa que faz é pôr-me vírgulas por todos os lados. (...) Me lembro que no último livro de contos (...) em uma das páginas tinham me acrescentado trinta e sete vírgulas, em uma só página! (p. 160)
Meu problema é quando me traduzem: quando se traduzem contos meus a um idioma que conheço, muitas vezes deparo com que a tradução é impecável, tudo está dito e não falta nada, mas não é o conto tal como eu o vivi e o escrevi em espanhol, porque falta essa pulsação, essa palpitação à qual o leitor é sensível(.) (p. 162)
Cortázar e Borges pagaram um preço um tanto alto por suas posições políticas, por ser um de direita e o outro de esquerda. (O “direita” de Borges é meramente aproximativo: Borges vivia num limbo político, elogiava os generais-ditadores por uma agastada concessão à prudência, e em termos partidários era anti-peronista e mais nada.)
Cortázar nunca escondeu suas simpatias por Cuba, pela Nicarágua, etc.; isto lhe valeu tomar paulada da crítica anti-esquerdista, e também tomar paulada dos cubanos e venezuelanos que esperavam dele o tal “apoio irrestrito” que a política espera de quem se aproxima dos seus portões.
Julio Cortázar fazia críticas políticas específicas aos regimes que apoiava, e fazia uma crítica mais ampla, que vale para todo mundo:
[É] um fato evidente que as sociedades atuais, que tentam atitudes revolucionárias e mudanças nas estruturas sociais, muito poucas vezes têm consciência precisa desse nível da linguagem, e então as mensagens e as palavras de ordem revolucionárias são ditas, elaboradas – e infelizmente também pensadas – com uma linguagem que não tem absolutamente nada de revolucionária: é uma linguagem profundamente convencional, a mesma que utilizam os adversários ideológicos. Muitas vezes entre um discurso de um líder da direita e o de um líder da esquerda no plano da linguagem não há qualquer diferença: os mesmos lugares-comuns, as mesmas repetições incansáveis de frases estereotipadas(.) (p. 236-237)
Fã de jazz durante a vida toda (e trumpetista “muito mau”, segundo ele próprio), Cortázar nunca perdeu de vista a música da prosa, nem a importância da música para a intuição literária da realidade.
Quantas vezes, quando me coube enfrentar um personagem provinciano, pensei longamente na música de sua província, nas bagualas, nas chacareras, nas zambas ou nos malambos, porque é através disso que chegam as pulsões profundas da raça: uma espécie de linguagem que tem um valor tão rico como podem ter um poema, um conto ou um romance nesse âmbito. (pag. 281-282)