Armas e anjos
Em: 15/06/2017, às 20H56
[Wagner Schadeck]
“A cicatriz de Ulisses” é um dos ensaios que mais me espanta. Primeiro capítulo do famoso Mimesis, nesse texto Auerbach investiga a narratividade (“diegesis” platônica). Comparando o relato veterotestamentário do Gênesis 22, que narra a prova de Abraão, com o episódio da cicatriz da Odisseia, a cena em que a serva Euricleia reconhece Ulisses (Odisseu) – famoso tópos homérico do reconhecimento (“anagnórisis” aristotélica).
Nessa análise, o crítico alemão demonstra que a narrativa homérica é “acabada, visível”, daí talvez o recurso de “avançar e retroceder”, de que Goethe e Schiller falavam. Na Odisseia (Canto XIX, versos 346-348), o herói, transformado em mendigo, torna-se hóspede em sua própria casa. A pedido de Penélope, sua esposa, a antiga ama, Euricleia, ao lavar os pés de Odisseu, reconhece o astucioso grego por meio de uma cicatriz de infância. Homero então retrocede à meninice do filho de Laerte, para revelar a origem desse estigma, assegurando, desta forma, a verossimilhança da narrativa. Logo após o deslocamento temporal, por meio de um simples conectivo, a diegesis retorna à cena de reconhecimento. Mas enquanto esse tópos amarra todo o poema, algo que intrigava Ítalo Calvino (Por que ler os clássicos), Auerbach, guiado por Aristóteles (Poética), notava que ele possuía uma enorme diferença em relação ao reconhecimento de Abraão.
Seguindo a narrativa bíblica, Deus prova Abraão por meio do sacrífico de Isaque, seu primogênito. A narrativa é mais lacônica – durante a travessia, não sabemos dos anseios de Abraão –, negando-se a justificar-se à verossimilhança. E o segundo reconhecimento do herói bíblico se dá com o chamado do Anjo do Senhor e com a mesma resposta: “eis-me aqui”. Segundo o crítico alemão, essa divisão por planos – o físico e o metafísico – garante a tensão da narrativa, do onde se infere ser ela uma narratividade familiar e trágica. Mas enquanto Nietzsche chamaria a isto de “criação do mundo interior”, para Auerbach essa narratividade trágica, tendo como ápice a Paixão de Cristo, é a maior de todas as tragédias. Será o fermento para a teoria mimética de René Girard.
Além de nos nutrir abundantemente, o que continua a me espantar nesse ensaio é que ele indica as narrativas que alimentam a nossa cultura. Como Jorge Luis Borges, a ela poderíamos acrescentar ainda As mil e um noites, ou mesmo os romances de cavalaria que tresloucaram D. Alonso Quixano; muitos dos quais, como Parzival de Eschenbach, entretanto, serviriam para o simbolismo de um Wagner!
Em Olhos de carvão, Afonso Borges mostra-se um herdeiro dessas técnicas narrativas. Composto por vinte e seis contos, o livro apresenta como epígrafe o Apocalípse 13:4.… e prostraram-se igualmente diante da fera, dizendo: Quem é semelhante à fera? E quem poderá lutar com ela? Nessa perspectiva apocalíptica, a violência urbana é tema marcante no livro. Ela está presente em contos como: “Assaltos, anjos e oratório” – em que a chave está na justiça angélica –, “Anjos da lei (a Milícia)” e o rilkeano “Anjo Terrível” –, “Natal, dois celulares e o marido”, “O sinal, a respiração presa, o sinal”, “Sem pensar, o féretro, depois de tantos anos” – ambos os contos recordam a tortura durante a Ditadura Militar, pedra da qual ainda se pode fazer jorrar leite e lágrimas –, “A vodca, os olhos azuis e o poema, enlouquecido” – conto de um traço bukowskiano –, “Quarenta e cinco minutos, o segredo e o vulto”, “Roberto, França e o duelo na Savassi” – conto de resgate sui generis de duelos literários, como em Noite na taverna, de Azevedo, ou em A montanha mágica, de Mann –, “Semíramis, Rio 40 graus e o colchão colorido” – conto irônico e amargo.
Com desfechos impactantes, contribuindo o inusitado, mas sem cair no insólito gratuito como sói acontecer em nossos contemporâneos, merecem menção os contos: “O radar, Roselanche e a velocidade”, “O ruído, a camionete e as crianças” e “Duas mortes, um acidente um amor, que tarda”.
Outro mote pós-moderno – as neuroses, manias e perturbações humanas – é ultrapassado com a referência mística, no belo conto “Na divisa, os olhos de carvão, em Celeste”. Este parece um conto importante para o livro por conferi-lhe o título.
Por fim, um texto curioso é o conto distópico “Se fosse antes, a lápide de concreto”; curioso não pela morbidez, mas pelas referências que nos sugerem: de Santo Antão ao homem subterrâneo dostoievskiano. Não sendo irônico como o fantástico “O Abominável Homem do Minhocão”, de Yuri Vieira, como este, no entanto, notamos como esse gênero, flertando com o apocalíptico e o político, pode dar belos frutos em nossa literatura.
Wagner Schadeck
Nasceu em Curitiba, onde vive. É tradutor, ensaísta, editor e poeta. Colabora com a Revista Brasileira (ABL), com a Revista Poesia Sempre (BN) e com os periódicos Cândido e Rascunho. Em 2015, organizou a reedição de A peregrinação de Childe Harold, de Lord Byron, pela Editora Anticítera.