[Paulo Ghiraldelli Jr.]

 Sobre uma pré-história da subjetividade

Quando a noite entrou em sua fase mais negra e silenciosa, naquela hora em que até mesmo os grilos se recolhem e o pio da coruja não se ouve mais, a única vela do quarto tomou conta da folha em branco. Agostinho molhou a pena duas vezes no tinteiro, fazendo o gesto característico de quem não quer o excesso de tinta. Mas sua mão não veio para o papel. Pela primeira vez em várias noites, ele titubeou e o silêncio se fez maior ainda que o de costume. O que seria posto no papel talvez merecesse um naco extra de prudência. Chegara o momento de os rabiscos que iriam se tornar A cidade de Deus ganharem uma parte especial – as considerações sobre os demônios.

A princípio, não deveria haver nenhum drama nisso. Afinal, o bispo filósofo não estaria prestes a fazer algo tão extraordinário. Pois, dar atenção aos demônios nunca foi estranho às atividades de um homem da Igreja. Todavia, para Agostinho a questão não era exclusivamente teológica e filosófica. O trabalho daquela noite implicava mais que isso. Ele sabia que teria de abordar e, mais que isso, enfrentar mesmo, um escritor conterrâneo. Escrever sobre os demônios, morando no Norte da África, tinha lá suas implicações peculiares. Fazia-se necessário dar conta da tradição. Pois o homem que havia deixado na literatura, no meio popular, a concepção de demônio, também era do local. Lúcio Apuleio havia vivido ali dois séculos antes.

Apuleio foi o homem que criou o mito de Eros e Psiquê. Foi o autor do célebre O asno de ouro. Mas, também foi ele o responsável por um incrível ensaio filosófico popular com o título de O deus de Sócrates. Nesse ensaio, já sob mentalidade do helenismo tardio, Apuleio traçou as características do daimonion de Sócrates, que Agostinho tomou, sem qualquer restrição, como da mesma ordem dos demônios da cultura judaico-cristã. Assumidamente como intelectual da Igreja, Agostinho sabia que cabia a ele, naquela hora e local, fazer a crítica ao conterrâneo, expor sob a roupagem da doutrina cristã aquilo que Apuleio desenhou a partir de sua orientação pagã. A tarefa era pesada. A responsabilidade imensa. Além disso, na noite silenciosa, compenetrar-se para dizer a verdade sobre os demônios, não era de todo uma tarefa que não causasse calafrios. Não se lida com o demônio sem algum preço.

Agostinho já não era mais jovem. Suas mãos estavam um pouco trêmulas. Ele molhou a pena na tinta pela segunda vez e, então, foi ao papel. Do primeiro ao último toque no papel, ele não olhou mais para o tinteiro, sua mão ia e vinha do papel ao tinteiro automaticamente, escrevendo de uma só vez as páginas sobre o assunto. Terminou exatamente quando a última gota de tinta grudou na pena.Nada havia mais no tinteiro, mas também nada existia a mais na cabeça de Agostinho que pudesse ser dito. Estava pronto! Nenhum retoque extra ele daria. Havia saído tudo de uma vez só. Não era muito, mas não podia ser mais. Uma palavra a mais e Agostinho poderia – ele sabia bem disso – parar de dizer a sua verdade sobre os demônios e, então, ficar tentado a ceder à verdade de Apuleio. Pois o que Agostinho escreveu era fiel à doutrina cristã, mas nem um pouco honesto diante do que Apuleio escreveu. O demônio de Agostinho foi moldado ao gosto do demônio da Igreja, de modo que sua crítica a Apuleio não fez justiça ao escritor pagão. Foi como se Agostinho, ele próprio, ao escrever sobre o demônio, tivesse caído em tentação e, então, mentido. Não se lida com o demônio sem algum preço – já se dizia naquela época.

As faltas do texto de Agostinho em relação ao escrito de Apuleio se dão exatamente no que é o cume e, enfim, o melhor do ensaio do pagão. Aliás, talvez não fosse o caso de dizer “faltas” e, sim, inversão mesmo. Pois o daimonion de Sócrates, que é o objeto do ensaio de Apuleio, é caracterizado, segundo uma ótica neoplatônica, de um modo muito semelhante ao que, na tradição católica, desde aqueles dias e até hoje, conhecemos como “anjo da guarda”. Agostinho omitiu completamente essa parte. Calou-se diante dela. Retirou toda e qualquer característica de bondade do gênio que Sócrates dizia que lhe falava, e insistiu no caráter maligno de toda e qualquer entidade que viesse a falar no ouvido dos homens. (1) Agostinho não deixou nenhum espaço para que a palavra “daimonion”, do texto em latim de Apuleio, pudesse ter o significado que, hoje, no âmbito dos melhores scholars helenistas, reconhecemos como sendo um gênio  – coisa que Apuleio diz com todas as letras -, uma entidade que não é nem um deus e nem um mortal e que faz o meio de campo entre estes. Para Agostinho seria uma loucura manter entidades de meio de campo com a autonomia de um daimonion. Para se chegar a Deus o caminho tinha de ser Jesus, ninguém mais – nada além!

Livre do cristianismo mas, ao mesmo tempo, enlaçado por certa cultura filosófica não da Grécia clássica e, sim, do helenismo romano, o culto Apuleio – tão culto quanto Agostinho -, que havia sido uma espécie de juiz do Império Romano de seu tempo, assimilou os daimonions não a entidades não físicas, mas exatamente a entidades físicas, porém de caráter do ar, isto é, leves e nem sempre visíveis para quem está desatento. Aceitando os daimonions como que feitos de ar, determinados a partir de extratos do mundo, Apuleio criou antes uma cosmologia que uma metafísica para acolhe-los. Insistiu na idéia – possível de ler nos textos platônicos – que Sócrates não só ouvia o seu daimon ou demônio, mas também, não raro, podia vê-lo. Associado a sua cosmologia, Apuleio mostrou o daimon de Sócrates como algo que estaria alojado na própria consciência do filósofo e, ao mesmo tempo, seria sua vocação. Assim, encontrar-se com o seu daimon não era apenas achar o local de seu guardião, mas também e principalmente tomar o gênio que poderia ser sua consciência quando na hora de decisões, e, ao mesmo tempo, a própria atividade da filosofia – o “conhece-te a ti mesmo”.

Com isso, Apuleio viu a filosofia como o “conhece-te a ti mesmo”, segundo a frase retirada por Sócrates das paredes do Templo de Apolo, de modo que uma tal atividade de busca nada fosse senão a perquirição pelo daimonion, a busca pela vocação – a própria atividade do filosofar. No caso, o filosofar socrático, ou seja, como diríamos hoje, a atividade de Sócrates de auto conhecimento, levada adiante por meio do conhecimento do outro em uma investigação conjunta do filósofo com seu interlocutor, regrada pelo “método da refutação”, o elenkhós. (2)

Para Apuleio, do modo como ele lê o Fedro de Platão, cada homem tem o seu daimonion guardião, que faz o papel de sua consciência e que, após a morte, pode ser seu advogado diante do deuses, no momento de punição ou não pelos erros. No entanto, homens como Sócrates (ou como Pitágoras), dariam pouco trabalho aos seus guardiões, tanto na Terra quanto no Além. Pois eles teriam se dedicado à sabedoria, ao intelecto, e, então, teriam se encontrado com a genialidade do gênio, quase que podendo viver sem muito requisitar de seu daimonion. A prática da filosofia seria como que o descansar do daimonion, quase como quando, hoje em dia, falamos para as crianças sobre seus anjos da guarda. O bom menino, que sabe o que é o verdadeiro e o falso, o certo e o errado, se mete menos em apuros, cria menos confusões e, portanto, aporrinha menos seu anjo da guarda.

Assim, para Apuleio, há claramente daimonions bons, isto é, gênios bons, que são exatamente os que são favoráveis à felicidade, que em grego é a eudaimonia. Apuleio, escrevendo em latim, não se furta de fazer a etimologia do grego funcionar ao seu favor. Eis a passagem:

Agora, de acordo com certa significação, a alma humana, mesmo quando ainda está situada no corpo, é chamade de um demônio. (…) Então se, nesse caso, o desejo da alma que é de boa tendência é o de um bom demônio. Daí que alguns pensam, como já observamos, que os abençoados são chamados de eudaimones, o demônio de quem é bom, isto é, cuja mente é perfeita em virtude. Pode-se chamar esse demônio, em nossa linguagem, de acordo com o meu modo de interpretação, pelo nome de ‘Gênio’ (…) (3)

Apuleio insiste, ainda, que cada gênio desses nasce com o homem, e por isso mesmo, quando caímos e abraçamos os joelhos de alguém, para implorar algum benefício, na verdade estamos é requisitando ao gênio (genua = joelho) dessa pessoa. (O gesto de abraçar os joelhos de alguém que, de certo modo, transformou-se no nosso próprio cair de joelhos diante de deuses ou seres poderosos, o que veio a se chamar, de modo especial, de genuflexão).

Apuleio também fala de daimonions nada bons e de outros, fantásticos, praticamente deuses, que são daimonions sem corpo, como o caso do Amor e do Sono. São tipos que não são alocados nas profundezas da mente humana, e que não são da ordem dos guardiões. Mas, os que são os guardiões, que ficam nos homens, são nossos reguladores, ele diz. Homens como Sócrates, como os filósofos, são tão perfeitos por conta da filosofia, que podem ter daimonions que não precisam incitá-los a fazer as coisas, tendo como serviço apenas avisá-los com negativas, prevenindo-os – e eis que esse era especificamente o caso do daimonion de Sócrates que, como escreveu Platão, só atuava negativamente.

Apuleio não entende por que os homens, sabendo disso, não se dedicam à sabedoria, à filosofia, ao invés de se dedicarem ao acúmulo de riquezas e poder. Os homens não se dedicam o quanto deveriam à filosofia, que é a busca do saber intelectual do gênio, de modo que sua própria vocação brote, sua própria consciência se exercite – é assim que Apuleio termina seu texto, com essa indignação.

Um místico, não um religioso católico como Agostinho, poderia assimilar o texto de seu conterrâneo de modo a aproveitá-lo, talvez, para um tratado cristão de angeologia. No limite, com alguma preparação de modo a piorar as coisas, serviria para alimentar as livrarias onde há o cruzamento de livros de auto-ajuda com os de crendices populares em associação com pseudo-ciência. Mas Agostinho preferiu, obviamente, outro caminho. Qualquer concessão a Apuleio poderia facilmente nublar a “Boa Nova”, ou seja, a idéia de que para obter a contemplação de Deus, a Verdade, o único caminho era o de seguir os passos de Jesus, o exemplo sacrificial de Cristo, nada além disso. Assim, talvez pudéssemos dizer, em favor de Agostinho, que ele não traçou uma mentira propriamente dita, mas apenas fez uma leitura interpretativa interessada, sujeita às correções que o cristianismo lhe impunha.

Poderíamos condenar Agostinho por isso? Teríamos nós, no lugar de Agostinho, naquela noite fatídica, traçado páginas melhores para o livro A cidade de Deus? Ou sucumbiríamos, como ele teve de sucumbir, às doutrinas que lhe eram caras, e das quais ele se tomava como porta voz?

Mais interessante que julgar Agostinho é, no entanto, retomar Apuleio de modo a notar  algo bastante promissor no mundo greco-latino: a proximidade de sua visão do daimonion com a visão moderna, a saber, aquela que viu no gênio de Sócrates uma espécie mesmo de nascimento do “eu” reflexivo, um passo na direção da elaboração de funções que, uma vez mais complexificadas, deram origem ao que os modernos vieram a chamar de subjetividade. Talvez o ensaio de Apuleio, quase que completamente desconsiderado pelos filósofos, seja um dos principais documentos jamais levados em conta para o que seria uma efetiva pré-história da noção de sujeito, pré-história da noção de subjetividade moderna.

2011 Paulo Ghiraldelli Jr. , filósofo, escritor e professor da UFRRJ

Notas:
Agostinho (354 – 430) foi bispo de Hippo, que hoje é a cidade de Annaba, na Algéria.
Lucius Apuleius nasceu em Madaura em 125, na Argélia, e morreu em Cartago, em 180. (Essas datas podem ser contestadas).

Referências:
1. Ghiraldelli Jr., P. A aventura da filosofia. São Paulo/Barueri, 2011. Ver também: A filosofia como medicina da alma. São Paulo/Barueri, 2011.
2. Apuleius, L. The works of Apuleius. Londres: Jorge Bell and Sons, 1878.
3. Augustine. The city of God and Christian doctrine. Nova York: The Christian Literature Publishing, Co, 1890, p. 253 e segs