0

 

Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?
Fernando Pessoa
Há mais de três horas ele permanecia com a arma apontada para a cabeça da mulher. Mais de três horas. Dentro da casa o silêncio era completo, mas ruídos vindos da rua deixavam claro que algo fora do normal estava acontecendo. Sirenes. O som de pneus freando. E, principalmente, o burburinho constante das pessoas que, do lado de fora, aguardavam ansiosas o desfecho do que parecia ser o capítulo final da sua novela favorita.
O homem se mexeu acomodando melhor o corpo na cadeira. Assustada, ela instintivamente se retraiu. Ele a olhou com um misto de raiva e tristeza.
- Já falei que não precisa ter medo. Não vou te machucar. – E numa voz mais baixa disse - Eu te amo.
A mulher não respondeu. Quando ele chegou, derrubando a porta e gritando feito louco, ela pediu calma e até misericórdia. Sem dar ouvidos as suas súplicas, ele a esmurrou, jogando-a com força contra a parede da sala. Enquanto tentava se proteger, colocando os braços na frente do rosto, ele repetia o tempo todo que a culpa daquela situação era toda dela. Naquele momento só conseguia sentir dor e medo e seu único consolo era saber que as crianças não estavam em casa.
- Eu te amo – ele voltou a dizer.
Muda, ela apenas moveu a cabeça concordando. Não adiantava explicar que o amor tinha acabado há muito tempo. Não adiantava falar, o máximo que ia conseguir eram mais chutes no seu corpo já machucado. “Graças a Deus os meninos estão longe deste inferno!”, repetia silenciosamente.
- Antônio! Antônio! – gritaram lá de fora. – Vamos tentar resolver tudo com calma. Deixa a Lúcia sair.
Antônio não se mexeu. Continuou sentado, de arma em punho, apontando diretamente para a cabeça de Lúcia.
- Antônio? Responde? – insistiu o homem na rua.
- Antônio, quem sabe... – disse Lúcia
- CALA A BOCA! – E virando-se para a porta – CALA BOCA VOCÊS TAMBÉM! SE FICAREM AÍ ENCHENDO O MEU SACO, MATO ELA E DEPOIS ME MATO!
Engolindo o soluço, Lúcia percebeu que não tinha escapatória. Aliás, nunca teve. Antônio era a sua sina. Desde aquela primeira vez, há oito anos.
Foi na festa de aniversário de um amigo. Antônio, sem esperar as apresentações, a segurou pelo braço exigindo que a primeira dança fosse com ele. Lúcia nunca tinha despertado o interesse de um homem tão bonito e forte. Assim, sem pensar duas vezes, saiu abraçada com ele, achando-se a mulher mais sortuda do baile. A partir desse instante, Antônio não permitiu que ninguém mais se aproximasse, até as amigas ele afugentou. Na época, moça ingênua e inexperiente, convenceu-se que essa demonstração de posse era sinal de amor.
Depois, durante o namoro, ele até se controlava, disfarçando os ciúmes e fazendo, após as brigas, juras de amor. Antônio lhe prometia o mundo e ela acreditava. Em poucos meses, os dois estavam casados e foi a partir daí que as coisas começaram a mudar. Lentamente, no início.
Na verdade, ela só percebeu que havia algo de muito errado com o marido depois do nascimento do primeiro filho. Com ciúmes, ele não queria que ela amamentasse. Toda a vez que Lúcia levava o bebê ao seio era um escândalo, gritos e ameaças, substituídos em seguida por gestos de carinho exagerados. No entanto, foi só quando o segundo filho nasceu que as dúvidas viraram certezas e todas as esperanças de uma vida feliz desapareceram.
De repente, as luzes da casa se apagaram. Assustada, Lúcia olhou Antônio, temendo uma reação violenta. Ele, no entanto, não se moveu. Ficou parado, olhando fixo para ela, sempre com a arma apontada para a sua cabeça.
- Eu sempre te amei – disse Antônio, rompendo o silêncio. – Sempre. Tu entendes?
- Antônio! Antônio! – gritaram novamente da rua. – Cortamos a luz e o próximo passo é a água. Deixa a Lúcia sair, vamos conversar!
Dessa vez, Antônio não berrou uma resposta. Seus olhos não deixavam o rosto de Lúcia. Sua alienação era completa, nem mesmo os gritos dos policiais pareciam alcançá-lo.
- Era para ser só nós dois. A gente não precisava de mais ninguém. E agora? O que eu faço? – perguntou enquanto se levantava.
Lúcia sentiu uma escuridão estranha fechando-se sobre ela. “Deus! Meus meninos!”
- Olha para mim! – exigiu Antônio.
Ela olhou.