[Paulo Ghiraldelli Jr.]

Na contabilidade de 2020, o Brasil mostrou uma população detentora de 134 milhões de cartões de crédito. Cerca de quase 30% da população possui de três a quatro cartões de crédito. Como todos os outros povos no Ocidente, os brasileiros seguiram a ideia de que não é o tempo presente que comprometemos para gerar o nosso futuro, mas é a penhora do tempo futuro que deve nos dar alguma sobrevivência no presente.

A penhora do futuro é nosso compromisso de que produziremos algo, para honrar os juros do cartão, inexoravelmente cobrados. Somos então disciplinados, aprendemos algum tipo de autocontrole, por conta da dívida. Não precisamos mais de controle externo. O autocontrole é gerado pela dívida.

A dívida é uma forma de disciplina do trabalhador, sem que este precise de qualquer outro mecanismo de controle. O trabalhador faz o que sobra para ele no mercado de trabalho, e não aquilo que melhor pode realizar as suas potencialidades. O crédito em conta bancária, que força a dívida, tornou-se algo comum de nossas vidas. Somos devedores, e ponto final.

Somos todos bancarizados. Querendo ou não. Sendo assim, pagamos serviços bancários e recebemos crédito para ampliar nosso poder de consumo ou apenas mantê-lo. Pelos serviços pagamos taxas, pelo crédito pagamos juros. A dívida se impõe a cada um. Ela passa a substituir o salário indireto que seria dado por um Estado que viesse a fornecer alimentação barata, transporte público barato, educação pública gratuita e hospitais bons e gratuitos. Aquele estado que um dia projetamos com a Constituição de 1988.

Muitos se acreditam imunes aos mecanismos do capitalismo financeiro. Acreditam que não sendo acionistas de empresas que lidam com papeis da Bolsa e, enfim, não tendo qualquer dinheiro extra para lidar com ganhos por meio de especulação cambial ou derivativos, estão distantes do mundo financeiro. Ora, assim mesmo, mesmo com parcos recursos, só por sermos bancarizados, estamos enredados na complexidade de um capitalismo cuja lógica do mercado das finanças, e não mais a lógica do mercado em função da produção, dominou a sociedade.

Mas não só nós, enquanto indivíduos, estamos nisso. Também participamos de dívidas como cidadãos do estado-nação. Pois o estado cria dívidas!

O Estado faz dívida. Como? Ele entrega títulos de obrigação financeira para quem quiser comprar, e o interesse dos compradores é o de que conseguirem ganhar juros.  Os ricos e a classe média compram títulos, as empresas também. Viram credores do estado. Ganham uma remuneração em juros com essa atividade Ficam assustados quando demandamos serviços públicos, pois o Estado faz a dívida crescer para, ao menos em tese, realizar esses serviços, pois o dinheiro dos impostos não é suficiente. Se a dívida aumenta muito, ficando em um patamar que pode preanunciar um calote, cada título acaba sempre valendo menos. Por isso os ricos vivem dizendo que o estado gastador é ruim – os papéis que eles possuem perdem valor. Todavia, na prática, em especial no Brasil, não é o serviço para com a população que amplia a dívida. É o mecanismo pelo qual os governos combatem a inflação: eles enxugam o caixa dos bancos, quando sobra dinheiro, quando os bancos não emprestam devido aos juros altos, e os governos fazem isso entregando títulos da dívida para os bancos. Os ricos reclamam, mas é parte deles que sempre ganha. Eles geram a dívida e eles reclamam diante do seu aumento.

Essa reclamação faz, não raro, o Estado gastar menos, mas não com a remuneração dos bancos, e sim diminuindo os serviços públicos. Os próprios governantes, mais ou menos adeptos de um liberalismo atávico, dizem que o serviço público não funciona, e então lutam para privatizar tudo. Privatizam para que os próprios ricos abocanhem mais uma parcela do que pode gerar lucros. Desse modo, o que seria o salário indireto diminui, e mais ainda cada família acaba se fiando no cartão de crédito. A roda gira. Mas gira contra nós. Cada pessoa que vive nesse mundo tem a sensação de que as coisas lhe escapam, muito mais do que as que viveram em um mundo em que a lógica do trabalho era dominante, e não a lógica da financeirização.

Essa nossa sociedade é uma sociedade em que os ricos e seus arautos, os economistas liberais e a imprensa, em sua maior parte, dizem que é o mercado, assim mesmo, financeirizado, que deve reger toda a vida. Uma economia que depende do mercado é uma economia sedenta por dados, por probabilidade, pela tentativa louca de dominar o aleatório. Se tudo é regido pelo mercado, a importância dos mecanismos informacionais tende a se desenvolver. Desde que a lógica financeira superou a lógica da produção no capitalismo recente, os computadores passaram a ficar mais rápidos, e a internet, já existente há anos, se desenvolveu assustadoramente. No início, era livre. Depois, foi monopolizada e passou a caminhar junto com o próprio mercado financeiro.

Cada um de nós viu a informação, a comunicação e, enfim, a infosfera, adquirir enorme importância em suas vidas. A Geração Z, que já nasceu sob esse império, parece não fazer ideia de como foi o mundo recentemente, sem que todos nós estivéssemos sem cartão de crédito e sem estarmos todos conectados no capitalismo plataformizado. Google (Youtube), Amazon, Microsoft e Meta (Facebook), e a indústria farmacêutica e bélica, se tornaram as principais empresas de nossa época, em todo o planeta. Suas capilarizações atuam em todo e qualquer lugar. Foram quase naturalizadas, e por isso às vezes nem as sentimos existir.

A máquina funciona azeitada: você consulta o médico pela telemedicina, e a receita já cai na rede da farmácia que entrega o produto em sua casa. Ao mesmo tempo a sua conta paga os juros que já estão contabilizados nesse serviço virtual executado por um banco ou financeira. Você fica agradecido por usar os aplicativos de todo esse pessoal, pois eles dizem que haverá desconto, mas efetivamente não é isso que realizam. Nesse esquema, todo o trabalho executado pelas pessoas já foi modificado. Ninguém mais é empregado da fábrica produtora de mercadorias físicas, a fábrica dominante até os anos setenta, ainda pouco robotizada. Ninguém mais oferece serviços que não estejam plataformizados. Todos vivemos no tecido social de uma grande fábrica social digitalizada, com plataformas que seguem os monopólios acima descritos.

Assim, notando isso, podemos observar que esse mecanismo mostrado na relação telemedicina-banco/financiadora-plataforma virtual, implica um serviço anterior, também ele altamente lucrativo. Cada um que procura um médico pode ser levado, pela plataforma de busca, a um médico da telemedicina. Simples: procurando no mecanismo de busca da empresa Google, chegamos a visualizar o grupo de telemedicina que conseguiu a posição primeira, de destaque, e que aparece no seu computador ou smartphone etc. Isso foi feito a partir de transação comercial entre a empresa Google e a empresa do grupo de telemedicina. A primeira empresa ofereceu audiência cativa e selecionada, a segundo pagou para acessar essa audiência setorizada. A empresa Google, nesse sentido, gerou uma hierarquização e criação de valor nos links, feito pelo algoritmo chamado Page Rank. Serviços, mercadoria e marketing, tudo está no mesmo pacote da empresa Google (que hoje, além de inúmeros sites, é proprietária do Youtube), que se atrela às outras grandes corporações citadas. A empresa Google, ela própria, também é uma empresa que possui ações no mercado financeiro. Ela mesma pode, se quiser, vender ações preferenciais aos seus CEOS, e assim fazendo gera a impressão de estar crescendo, e tem então as ações logo valorizadas. Os CEOS ficam rapidamente mais ricos, e se afastam em termos de ganho dos outros empregados da empresa.

Essa lógica direciona o que deve ser produzido e o que não deve mais de ser produzido, devido aos mecanismos informacionais e dados que alimentam o mercado financeiro. Essa funcionalidade é inteiramente baseada na comunicação, na linguagem, na informação. A infosfera sintetiza tudo isso. Pessoas que vivem nesse sistema, são incentivadas, elas próprias, a serem também elementos desse sistema. Vivem, alimentam esse sistema, dão mais dinheiro aos monopólios (fornecendo esses dados que serão capitalizados) e mesmo assim não ganham nada por isso. É a extorsão máxima de mais-valia que temos hoje. Toda sua vida é capitalizada. Nossa vida é uma engrenagem, mais um conjunto de dados para o capitalismo. Que nos faz pagar para acessar esses meios que nos espoliaram. Pagamos para trabalhar, pagamos para fazer cada atividade. O Estado é privatizado para os bancos. No fim o que sobra é só a dívida da dívida. É como se começássemos a vida com o saldo negativo.

Elas fornecem dados para o sistema, trabalham gratuitamente para as companhias citadas e, enfim, se convencem que todo a infosfera precisa ser utilizada por elas próprias para se projetarem e conseguirem trabalhar. Elas se acham na condição de dados e, mais ou menos conscientemente, se comportam como dados. São dados concorrenciais no mercado de trabalho que, enfim, se transforma em um mercado de dados, ou melhor, em uma nuvem de dados que, por mecanismos que estão muito além de mérito pessoal, as destacam no Youtube ou coisas semelhantes.

O trabalho precarizado, tornado intermitente, gerou uma massa de pessoas que abrem sua intimidade na internet, esperando conseguir uma chance de dinheiro. É certo que somos curiosos pela intimidade do outro, na nossa busca quase que metafísica por saber a verdade que, necessariamente, em nossa época, sempre aparece por detrás de véus, ideologias etc. Mas não é por isso, exclusivamente, que a intimidade se torna um campo de exposição. É que aquilo que é imagético – a intimidade enquanto nu corporal ou coisa semelhante – e que, então, pode ser apresentado sem grandes narrativas, sem histórias complexas, funciona de modo como o que um dado deve funcionar. Dados são apresentados numericamente. São cifras. Ora, quando o homem é cifrado, adquire um número, uma imagem, uma simplificação, ele é um perfeito dado. Está apto a percorrer o fluxo da internet.

Todos precisam estar na internet oferecendo seus serviços, produtos, habilidades e, principalmente, falta de habilidades. Mas tudo na forma de dados. Um restaurante apresenta uma foto, uma frase e logo abaixo dados sobre frequência: número de estrelas, porcentagens de comentários positivos. Estar cifrado, quantificado, é a condição primeira de poder estar no fluxo da internet.

Nessa situação, podemos lembrar do que é citado pelo filósofo Peter Sloterdijk: um entrevistador de talk show, em uma sociedade do espetáculo hiperpotencializada, entrevista a si mesmo sobre o que fez na vida, ou seja, nada, pois apenas chamou pessoas para falarem. Muitas falaram sobre o nada. Dois anos de covid nos entupiu de “lives” estúpidas. Agora, sem covid, continuamos na mesma coisa, ou até pior.

Peter Sloterdijk disse também que o sujeito moderno é aquele que se desinibe. Ou seja, passa da condição de espectador de um mundo que não é dele (que é de Deus ou da Natureza etc.) para um mundo no qual ele interfere. Ele, o elemento que quer ser sujeito, encontra uma narrativa que o faz entrar em ação e se tornar protagonista. As narrativas que fornecemos a nós mesmos para agirmos e nos colocarmos como protagonistas em alguma situação são variadas. Mas, no mundo atual, nossa desinibição é transformada na ideia de concorrência, a ideia de se destacar para pegar o que ainda sobrou em determinada fatia do mercado de trabalho. Assim, posso completar Sloterdijk e pensar a subjetividade contemporânea.

A subjetividade atual é uma instância cuja função é, ainda, como na modernidade, nos impulsionar para a desinibição. Sim, todavia, agora, nos tempos contemporâneos, com um adendo. Nesse nosso mundo a narrativa perde para os dados. É um mundo em que a História perde para o Big Data e a probabilidade cientifica perde para a cartomante virtual. A desinibição deve vir pelo quantitativo, pelo simples, pelo quantitativo-imagético. A proliferação de imagens colocas por cada um na Internet é, então, fantástica! Em 2020, a cada minuto, os usuários subiam mais de quinhentos vídeos no Youtube. A maior parte é de exposição de suas intimidades. Mas ninguém sabe disso, pois o que é íntimo e o que poderia ser público se fundiram. Ninguém mais sabe o que é a privacidade ou intimidade. Todos, até em nome da ética, pedem transparência. Interessante: transparência. Seja um dado, mas seja visto tão rapidamente que vire algo transparente.

Que tipo de subjetividade é esta, então, que desponta em nossa época? Como podemos chamá-la?

Uma parte da literatura sobre a contemporaneidade, com destaque para Byung-Chul Han, tem dito que estamos em uma época narcísica, voltada para nós mesmos, para o culto da mesmidade do eu. Podemos aceitar a diversidade, a presença dos outros, mas o problema é que a positividade dos nossos tempos – somos os empresários de nós mesmos e os únicos responsáveis por tudo se passa conosco – nos põe para fora de antagonismos, nos faz não enfrentar o negativo, o Outro, o que de fato nos nega. Essa hipótese se sustenta?

De certo modo, a Geração Z dá mostras do cultivo de certo olhar para o próprio umbigo. Mas a padronização se acentua na infosfera. Pois ela é um campo de mimetismo, de alta diversidade, porém padronizada. Pois o mundo imagético da tela, do campo virtual, é limitado. A narrativa provoca a imaginação, o mundo imagético veloz corta a imaginação. Uma história faz pensar. Mas um fluxo de imagens não faz pensar, corta a imaginação. A infosfera não é avessa à criação, mas a cada nova criação ela se satura pela repetição, pelo mesmidade, pela velocidade do fluxo do mesmo. Talvez a pornografia seja o exemplo mais típico desse processo. Mas todo e qualquer fluxo pode ser pornográfico, ou seja, explícito em demasia, repetido sem que o espírito possa ser chamado.

Cada um hoje apresenta na Infosfera uma imagem que possa virar meme, ou seja, que possa ser repetida até a extenuação dos sentidos. Aliás, o meme é o elemento mais apropriado ao fluxo solicitado pela infosfera. A imagem tem de entrar no fluxo, e o fluxo tem que ter a rapidez daquilo que é o fluxo principal, cujo conteúdo é de fazer andar três tipos de elementos, todos eles, claro, quantificáveis e quantificados: trabalho, informação e, especial e primordialmente, dinheiro. Todos eles se colocam no fluxo em forma de números. Na velocidade que caminham esses elementos, então todas as imagens caminham. Cada eu que se apresenta na internet obedece, antes tudo, a velocidade de uma capacidade perceptiva que onde impera o fugaz, a insaciabilidade, o que é viciante e sem qualquer reflexão. Quando olhamos o usurário do TikTok, que pode ser qualquer um de nós, sabemos do que se trata esse novo narcisismo. Não um olhar para o umbigo, mas, ainda assim, o olhar para a mesmidade. O fluxo contínuo de imagens, dizem alguns psicólogos, tem função de dopamina.

No campo da política democrática, então, nasce a reclamação pela falta de propostas dos candidatos. Mas se algum candidato não apresentar o comportamento pedido pela velocidade de fluxo e de imagens ridículas do TikTok, e resolver realmente explicar uma proposta, não será ouvido. A política perde seu caráter de evento integrado à sociedade do espetáculo, como pensávamos até pouco tempo, quando a mídia principal era a televisiva. As novas mídias funcionam na velocidade dos altos e baixos dos valores monetários que aparecem nas telas dos investidores. Eles próprios, os que pensam comandar os investimentos e saber deles, os que operam as bolsas de valores, estão ali, feito idiotas, querendo nos convencer que sabem o que está ocorrendo. Acreditam que podem dar lição de economia financeira e investimentos. Não podem. Todos os cálculos e tendências são feitos por máquinas. E os algoritmos criam fluxos que escapam ao modo de entender humano. Esse modo de funcionar da máquina molda todos nós, e também o que esperamos da performance dos políticos. Não raro, os políticos se tornam caricaturas do que a internet fez deles naquilo que ela tornou o fixo, pela repetição. A função dos memes é exatamente essa.