Alphonsus e Mário: os cem anos de um encontro

[Ângelo Oswaldo de Araújo Santos]

Há cem anos, em 10 de julho de 1919, o poeta Mário de Andrade, então com 25 anos, desembarcou em Mariana para conhecer o poeta Alphonsus de Guimaraens, que o recebeu em sua casa da Rua Direita, hoje transformada em museu. Foi o encontro de dois simbolistas, no momento de grandes transformações na forma e no conteúdo da poesia, da literatura, da música e das artes no Brasil. Mário de Andrade, que três anos depois participaria da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, tornou-se a grande baliza dos caminhos da cultura brasileira. João Alphonsus, filho do simbolista de Mariana, atuando em Belo Horizonte, teve protagonismo fundamental na vertente mineira do movimento modernista. Alphonsus de Guimaraens morreu dois anos depois do encontro, em 15 de julho de 1921, aos 51 anos, vindo a ser consagrado entre os nomes referenciais da poesia de língua portuguesa.

A estreia de Mário de Andrade aconteceu em 1917, com o livro “Há uma gota de sangue em cada poema”. Aos 24 anos, sob o pseudônimo de Mário Sobral, ele construiu seus versos dentro do clima simbolista que então se fazia sentir no Brasil, especialmente cultivado pelos mineiros Alphonsus de Guimaraens e José Severiano de Rezende. O epicentro do simbolismo era a Villa Kyrial, uma mansão nas proximidades da avenida Paulista, na qual o gaúcho Freitas Valle reinava na belle-époque paulistana, praticando um sofisticado e extravagante mecenato burguês.
 
Partiu do “pobre Alphonsus” a sugestão do nome de Villa Kyrial para a chácara adquirida por Freitas Valle em 1904. O poeta mineiro publicou o livro “Kyriale”, em 1902, reunindo a obra escrita entre 1891 e 95. Aluno da Faculdade de Direito dos Arcos de São Francisco, ele tinha convivido com Freitas Valle e tornaram-se amigos. Até à morte, em 1958, o mecenas se lembraria de Alphonsus, sobre quem realizou várias palestras, no auge dos saraus na Villa Kyrial. No quinto ciclo dessas conferências, em 1924, época em que visitaram as cidades históricas de Minas, Mário de Andrade falou sobre “Cubismo”, enquanto Oswald de Andrade focalizou “Os ambientes intelectuais de Paris” e o poeta suíço-francês Blaise Cendrars, “A literatura negra”. O programa foi encerrado, em junho, com a palavra de Freitas Valle sobre a poesia de Alphonsus de Guimaraens.
 
“Kyrios” significa Senhor, em grego, no sentido da divindade, de onde veio a invocação inserida no ritual da missa católica “Kyrie eleison”, ou seja, “Senhor, tende piedade”. A epígrafe Kyrial, segundo Márcia Camargos, que escreveu a história desse baluarte da belle-époque, “se ajustaria com perfeição ao espírito de Freitas Valle e do salão por ele animado, espécie de templo dos eleitos, uma vila senhorial”. Freitas Valle escrevia poemas somente em francês e assinava Jacques d’Avray, incluindo-se entre os cultores do simbolismo, como Alphonsus, Severiano de Rezende e Álvaro Viana. Parece não ter havido maior referência ao notável Cruz e Sousa (1861-1898), o simbolista negro nascido em Santa Catarina e falecido em Minas Gerais, vítima da tuberculose. Alphonsus era admirador do poeta catarinense. Viajou ao Rio de Janeiro, em 1895, a fim de conhecer o “Cisne Negro”. Lembra em poema Alphonsus Filho que seu pai escreveu, no jornal “Conceição do Serro”, ter tido “ocasião de passar horas magníficas com este maravilhoso artista”.
 
Em 1921, Mário de Andrade fez conferência na Villa Kyrial sobre “Debussy e o impressionismo”. Em 1922, tratou da poesia modernista, em plena evidência após os acontecimentos da Semana. Já em 1923, traçou um paralelo entre Dante e Beethoven. O contato com Freitas Valle deve ter proporcionado a Mário de Andrade, poeta estreante de 24 anos, a descoberta do verso alphonsiano. Daí terá surgido o desejo de conhecer, pessoalmente, o solitário de Mariana.  “Ide a Minas/ de trem/ como os paulistas/ foram/ a pé de ferro”, escreveria Oswald de Andrade, na célebre viagem de 1924. Cinco anos antes do périplo modernista, Mário embarcou na longa aventura, com várias baldeações, até que pudesse alcançar a casa em que Alphonsus, juiz municipal, vivia com a mulher, Zenaide, e os filhos. Sede do primeiro bispado de Minas Gerais, criado em 1745, Mariana era ainda uma cidade inteiramente dominada pelas funções eclesiásticas, a “Roma mineira”, assim chamada por Pedro Nava em suas memórias.
 
Mário de Andrade registrou o momento: “Em Mariana, a Católica, fui encontrá-lo na escuridade de sua casa de trabalho, sozinho e grande. E foi uma hora de inesquecível sensação a que vivi com ele. Na tristura cinza do aposento, pude dizer-lhe pausadamente, em calma, as lindas coisas que eu sentia sobre a sua arte desacompanhada e incompreendida. Falei-lhe depois do descaso em que deixavam os nossos. Sorriu, num meigo perdão; e recompensou-me o afeto, dando-me versos”.
 
Em carta a João Alphonsus, datada de 15 de julho de 1919, escreveu o poeta: “Vamos indo regularmente de saúde, – eu, Zenaide e a prole. Há cinco dias esteve aqui o Sr. Mário de Morais Andrade, de S. Paulo, que veio apenas para conhecer-me, conforme disse. É doutor em ciências filosóficas. Leu e copiou várias poesias minhas (principalmente as francesas), e admirou o teu soneto oferecido ao Belmiro Braga. É um rapaz de alta cultura, sabendo de cor, em inglês, todo o “Corvo” de Poe. Viaja para fazer futuras conferências, e visitou todos os velhos templos desta cidade. A verdade é que para quem vive, como eu, isolado, – uma visita dessas deixa profunda impressão. A bênção de teus pais. Afonso”.
 
Carlos Drummond de Andrade, no poema “A visita”, recria o diálogo entre Mário e Alphonsus, no sobrado marianense: “Entre dois homens, objetos, cor/ da hora filtrada no recinto/em partículas de ouro e torvelinho,/ o verso”. Quando Alphonsus morreu, em 1921, Oswald de Andrade traduziu o sentimento dos modernistas, tanto para enaltecer o poeta mineiro quanto para esculhambar os sonetistas e a Academia Brasileira de Letras, que nunca se lembrara do simbolista no seu exílio. Escreveu o autor do Manifesto Antropofágico: “Alphonsus de Guimaraens valia sem dúvida todos os poetas juntos da Academia Brasileira. Faleceu em Mariana, pobremente, onde vivia fazendo há vinte anos os melhores versos do seu país. Hoje que uma estuante geração paulista quebra nas mãos a urupuca de taquara dos versos medidos, a figura de Alphonsus de Guimaraens assume a sua inteira grandeza no movimento da boa arte nacional”.
 
Estudiosos de Alphonsus, como Francine Fernandes Weiss Ricieri e Eduardo Horta Nassif Veras, iluminam novos caminhos de leitura de sua obra, sendo um dos pontos de interesse a revisão da presença do catolicismo na poesia alphonsiana, até agora julgada determinante. A religião não se apresenta “em termos confessionais, mas em termos de representação estética”, observam os ensaístas. Essa espiritualidade não dogmática era vivida por Mário, que, acreditando em Deus, não aceitava as sanções próprias de qualquer sistema religioso, como sublinha Leandro Garcia Rodrigues, ao analisar a correspondência entre o autor de “Macunaíma” e o católico Alceu Amoroso Lima. Alphonsus e Mário foram crentes da poesia.
 
Para Mário de Andrade, além do instante de ternura na Rua Direita de Mariana, a viagem de 1919 representou a descoberta do Aleijadinho e da arte colonial de Minas Gerais. Do contato direto com as obras do mestre Antônio Francisco Lisboa, em Mariana e Ouro Preto, ele levou para o eixo central do modernismo a imperiosa necessidade de repensar o Brasil, buscar suas raízes e fontes genuínas e criar uma arte não mais importada e com caráter próprio. Daí a caravana modernista que empreendeu a viagem de abril de 1924 às cidades históricas mineiras, levando Mário, Oswald, Tarsila, Blaise Cendrars, Olívia Guedes Penteado, René Thiollier e Gofredo Silva Telles ao que chamaram de “redescoberta do Brasil”.
 
De tudo isso resultou o empenho de Mário no sentido da proteção efetiva do patrimônio material e imaterial da cultura brasileira. Ele esteve na linha de frente da criação do IPHAN, entre 1935 e 37, no qual foi em seguida atuar, ao lado de Rodrigo Melo Franco de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Lúcio Costa. Ícone do modernismo, o jovem simbolista de São Paulo acabou por virar símbolo da cultura brasileira. Para Alceu Amoroso Lima, “durante os 25 anos de sua atividade intelectual, (Mário) encarnou realmente o novo espírito das letras brasileiras. Viveu o modernismo com todas as fibras do seu ser. Encarnou o modernismo, como um José de Alencar encarnou o romantismo, como um Aluísio Azevedo encarnou a naturalismo, como um Alphonsus de Guimaraens encarnou o simbolismo. Foi uma era viva. Foi a expressão viva de um momento capital de nossas letras, o da revolução estética modernista. E o foi porque o viveu totalmente”.
 
 
Na foto, o poeta Alphonsus e sua companheira.