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Alceu

ROGEL SAMUEL

Alceu Amoroso Lima tinha 68 anos quando o conheci. Ainda era um homem forte. Foi meu professor de "Cultura Brasileira", na FNFi, ou Faculdade Nacional de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil. Era 1961. Nasceu no Rio, dia 11 de dezembro de 1893; e faleceu em Petrópolis, em 14 de agosto de 1983. Quando jovem, nadava do Flamengo à Urca. Forte, alto, sólido. Como sua cultura. Na audiência, onde ele proferia a aula, que sempre parecia "magna", se reuniam alunos, professores, intelectuais. Lembro-me de Clementino Fraga e Walmir Ayala, assistindo. A esquerda, não. Na época desprezava Alceu. Classificava-o de "pensador católico". Ayala vinha sempre, creio que fez o curso todo, tomava notas, gordinho.

Alceu falava andando, de um lado para outro, no tablado. Ameaçava cair, porque ia de cabeça erguida até o limite. Sempre foi. Certa vez tropeçou em sua própria pasta, que deixava no chão, de couro marron, grande e pesada. "Desculpe", pediu. Trazia muitos livros, para citação e leitura. Eu conhecia aquela pasta porque depois da aula (a que eu assistia na primeira fila) eu colava no Mestre, e oferecia-me para carregar aquela pasta, o que ele gostava muito, e ia com ele para a administração da Faculdade, que ficava na Rua 1o de Março, onde ele tinha de assinar o ponto, entregar a lista de chamada (que nunca fez). Ele odiava aquilo, fazia-o perder tempo, e era até mesmo perigoso, pois tinha de atravessar pistas de alta velocidade. Outras vezes, eu o acompanhava até a porta do edifício onde funcionava o "Centro Dom Vital", de que era presidente. Foi seu fundador, e do "Instituto Católico de Estudos Superiores", em 1932, que foi o germe de fundação da Pontifícia Universidade Católica.

Ele gostava muito de mim, digo isso com orgulho, conversávamos bastante durante o trajeto.

Depois que foi meu professor, só o vi uma vez. Arrependo-me de não o ter procurado, por timidez manter-me afastado.

A última vez que o vi foi em 1982 ou 83, na porta da Academia. Ele ia saindo do carro. Estava pesado, velho. Eu parei para vê-lo, ele me cumprimentou com a cabeça. Não sei se me reconheceu.

A importância de Alceu na cultura brasileira é muito grande.

Naquela época, nós tínhamos uma colega de Faculdade, negra, que, para ingressar em Universidade Soviética, precisava de carta de apresentação. Aquela Universidade, em pleno regime comunista soviético, indicou um de três nomes considerados mais respeitáveis para assinar a apresentação: Caio Prado Jr., Celso Furtado e Alceu. Nossa amiga era aluna dele. Foi. Nunca mais voltou. Mas Alceu, no Brasil, era "apenas" católico.

Dizem que ele assistia às missas todos os dias. Que fez voto de castidade. Dizem que acordava muito cedo para ler Croce, depois ia tomar café nas ruas, nas padarias. Era o de que ele gostava: Em Petrópolis todos os dias almoçava fora, e dirigia seu próprio automóvel, até o acidente que provocou.

Eu estive em seu apartamento, no Flamengo, muito rapidamente.

Alceu escrevia artigos a mão. Letra quase ilegível. Ortografia ainda antiga. Sem muita preocupação com a gramática. Os manuscritos eram mandados para São Paulo, onde sua filha, freira, "traduzia", corrigia, datilografava, devolvendo-os a ele. Ele então fazia modificações, e o funcionário do JB vinha buscá-lo em sua casa. Por isso, quando publicado, o assunto já era velho. E ele sempre escrevia sobre os acontecimentos.

Parece que só escreveu um livro ("Afonso Arinos, 1922). Os demais foram constituídos de artigos de jornais, reunidos por temas: "Estudos", "O espírito e o mundo", "Meditações sobre o mundo interior", "Política", "Revolução, reação ou reforma" etc.

Quando publiquei "Crítica da escrita", ele me mandou a seguinte carta:


"Petrópolis, 1-4-81
Meu caro colega Rogel
Muito obrigado pelo livro em caminho. Já o folheei. Comecei pelo fim como recomendou. Como você começou na nossa velha Faculdade, hoje é o velho professor que está no fim orgulhoso do antigo aluno e não arrependido do que lhe tenha dado. Hoje trocamos de lugar, você na cátedra, eu na assistência.
Do velho
Alceu"


A "tradução" da letra foi feita por Antonio Carlos Villaça.

Na época da ditadura militar Alceu foi o implacável, crítico, única voz da oposição (talvez porque as outras estavam mortas, ou presas). Ele enfrentou os militares e, muito antes da teologia da libertação, foi o primeiro a despertar a idéia de que o cristianismo é a religião dos excluídos, dos mendigos, dos banidos, dos pobres, dos marginalizados pelas engrenagens de poder do capitalismo. Seu pensamento estava além de seu tempo.