Afinidade criativa
Por Bráulio Tavares Em: 16/05/2010, às 06H35
Bráulio Tavares
É bem conhecido o reparo feito por Julio Cortázar a uma das mais célebres afirmativas estéticas de Edgar Allan Poe, em sua “Filosofia da Composição”. Ao explicar como concebeu seu poema “O Corvo”, Poe explica a escolha do tema central, a morte de uma bela mulher, por ser este “o mais poético dos temas”. Cortázar observa que “nada de livre há nessa imposição profunda da sua natureza”. O tema é poético para Poe, por corresponder a uma obsessão pessoal sua, mas mil outros poetas se sentirão autorizados a escolher mil outros temas como “o mais poético”, de acordo com suas próprias idiossincrasias.
Grandes artistas são, em geral, grandes intuitivos que se deixam arrebatar por obsessões que compreendem mal-e-mal. Passado esse arrebatamento inicial, eles constroem todo um edifício de estruturas cuidadosamente pensadas em cima desse alicerce de fantasias inconscientes. Tais fantasias, muitas vezes, são uma tubulação inesgotável de combustível que lhes sustenta o trabalho intelectual. Sem essa fixação quase monomaníaca no que lhe parece belo, ou importante, ou profundo, ou inquietante, ou vital, nenhum trabalho intelectual se sustenta, ou produz algo que preste.
Alguns artistas sentem isto com temas, situações humanas. Para outros pode ser uma simples afinidade com certas formas. Em The Creative Process (editado por Brewster Ghiselin), Julian Levi explica: “O artista se relaciona afetivamente com certas formas e desenhos. Acho que as suas escolhas são canalizadas pela compulsão de encontrar um veículo objetivo para imagens plásticas que ele tem no seu interior. Com certeza não sei por que, mas eu sou particularmente atraído por certas relações geométricas, certas formas retangulares e arabescos das quais nascem harmonias e ritmos peculiares. Ao decidir os temas sobre os quais vou pintar, sou irresistivelmente atraído para objetos que contenham o esqueleto desse tipo de estrutura visual.”
Isso tanto se dá com imagens quanto com estruturas narrativas. Por que John Dickson Carr escreveu dezenas de histórias sobre crimes impossíveis em quartos fechados por dentro? Por que Salvador Dali pintou chifres de rinocerontes a vida inteira? Por que Maurice Leblanc escreveu dezenas de histórias sobre crimes insolúveis do passado sendo decifrados no presente? Por que Machado de Assis dedicou-se a explorar a arte combinatória do adultério conjugal? Por que Francis Bacon pintava papas visualmente deformados? Por que Luís Buñuel passou a vida filmando um homem idoso tentando possuir uma mulher loura? Por que Borges escreveu repetidamente sobre labirintos?
Naquele mesmo livro, diz o artista Henry Moore: “Existem formas universais às quais cada indivíduo está condicionado inconscientemente, e às quais ele pode responder, desde que seu controle consciente não o bloqueie”. Quanto mais mergulhamos na obra de um artista mais percebemos as formas e temas que o impulsionam e o obrigam a criar.