ADEUS, CLÓVIS MOURA  (2)  

                                                                     Cunha e Silva Filho

 

              Jamais pensamos  que certas pessoas a quem admiramos, um dia,  nos deixarão. Elas congregam em si tanta soma de qualidades e energia, tanto vigor intelectual que, por vezes, as sentimos eternas. Tal é o caso de Clóvis Moura, esse  filho ilustre da velha Amarante e possivelmente o segundo  maior poeta dessa terra de homens de talento. Quando era adolescente, meu pai sobre  falava com admiração e orgulho.

              Só  o conheci por correspondência ou fotografia. Há dois anos, conversei ligeiramente com ele por telefone. Tinha voz simpática e firme, e, na conversa, aproveitava para criticar os rumos  que a política brasileira. estava  tomando  na administração FHC. A notícia de seu falecimento me chegou através do meu amigo, o escritor M. Paulo Nunes. Vendo na Internet, leio que seu falecimento se deu em 23 de dezembro passado, após uma internação de dez dias no Hospital Albert Einstein, em São Paulo.

             Eu  já havia sido informado de que ele não andava bem  de saúde, mas, mesmo assim, a notícia me deixou desconsolado. O Brasil e o Piauí perdem um grande intelectual, um estudioso e pesquisador corajoso, um escritor orgânico, um marxista militante, um scholar cuja sabedoria, no campo dos estudos sociológicos e históricos, nada tinha a ver com  o cientista social de gabinete, conforme recentemente observou um ex-aluno. O seu desaparecimento deixou-me, pois, acabrunhado e perplexo, imaginando que a nossa passagem pelo planeta Terra sempre deixa aquela  sensação de obra inacabada e de projetos inconclusos.

             Minha aproximação com ele,  como não podia deixar de ser, se deu pelos caminhos da literatura. Lhe tinha mandado por carta um exemplar do meu Da Costa e Silva: uma leitura da saudade. Daí nasceu uma amizade que, pelo visto, foi muito curta e muito tardia, pois meu conhecimento com ele  data apenas de 1996. Dele vieram outras cartas, ao todo, umas  oito, em  que trocamos saudáveis e proveitosas ideais sobre literatura, sobretudo poesia. Ele, por sua vez,  me enviou seu  livro de poesias, Manequins corcundas (1997).

             Me pediu a opinião sobre o livro. Gostei de sua poesia, que me surpreendeu pelo alto nível de elaboração artística. Daí  parti para uma segunda leitura, decidido a escrever um estudo preliminar sobre  aquela  obra a que dei o título  de “Manequins corcundas”: a poesia multiplicada de Clóvis Moura”, publicada, pela primeira vez, na prestigiosa revista Presença (Ano XIII, 25, Teresina, 1997) e, posteriormente,  na apreciada LB – Revista da literatura brasileira, 7, São Paulo, 1997, publicação dirigida pelo escritor, poeta e tradutor Aluysio M. Sampaio. Moura gostara do meu ensaio sobre a sua poesias, mas assinalara que eu o escrevera com  uma certa “paixão.”  

             É bem compreensível esse comentário dele, visto que  partira de uma opinião de  um   sociólogo, uma pessoa afeita a estudos  que exigem  grande dose de racionalidade e objetividade. Clóvis Moura se dividiu em duas atividades intelectuais, a de cientista social, o lado dele conhecido do público, e a de poeta, muito menos conhecida. Não vou me reportar aqui à sua atividade de cientista social, que deixarei para os mais indicados. Fico com a de poeta.

              Pouco gente sabe, mas o amarantino Clóvis Moura se estreou na poesia em 1962, com o livro Espantalho  na feira, obra elogiada por gente que entende  do riscado, como Carlos Drummond de Andrade, Leonardo Arroyo, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Stela Leonardo, entre outros. Outros livros de  poesia saíram de sua lavra, como Argila da memória (1964), Âncora no Planalto (19650, Flauta de argila (1992), este último  prefaciado por M. Paulo Nunes, e ainda Bahia de todos os homens (1997). Em 1983, a revista Presença, Ano IV, nº 7, Teresina,  Março/junho,  publicou- lhe  um importante depoimento, que me foi valioso   na preparação  do meu ensaio sobre Manequins corcundas. Até hoje,  me pergunto  por que  o saudoso  ilustre  crítico e historiador literário Alfredo Bosi não  o considerava   um  grande poeta. A minha resposta poderia  ser: são coisas da vida literária, ou melhor  dizendo,  da crítica   que nem sempre acerta na avaliação de um escritor.

               Além de poeta, Clóvis Mora incursionou também  pela ficção. Fez contos, fez  romances. Não me consta, porém, que tenha publicado pelo menos as obras ficcionais que citou naquele depoimento. Um último trabalho  que dele li foi um conto, um miniconto, “Os ratos”, saído na  mencionada  LB – Revista  da literatura brasileira, nº 20, São Paulo, 2000, p. 9). Clóvis Moura,  em sua última carta para mim, manifestou a intenção de reunir toda a sua obra poética e editá-la, dividindo-a em partes com títulos específicos. Segredou-me que iria incluir meu pequeno ensaio nessa edição, o que muito me honraria.

              Numa carta de 24/07/1999, me convidaria para uma homenagem – justíssima e oportuna -, que a respeitadíssima UNICAMP (Universidade de Campinas) lhe iria prestar, com debates e mesas-redondas, em comemoração aos 40 anos  de publicação de sua mais festejada obra no domínio  da sociologia, Rebeliões da senzala, a qual,   na literatura sociológica, se tornaria um clássico.

              Na capital  paulista -  também me informava ele -, haveria nesse um encontro comemorativo. Estudioso de formação  marxista, segundo afirmamos atrás,  Clóvis Moura  lecionou na Universidade de São Paulo. Fez exaustivas pesquisas sobre o negro brasileiro e sobre a questão  do racismo, e, entre outros trabalhos primorosos  na área da sociologia, se  distinguiu o seu  conhecido  ensaio  sobre Euclides da Cunha,  Introdução  ao pensamento de Euclides da Cunha (19640.

              Escreveu ainda a História do racismo  no Brasil, Visões e impressões, As injustiças  do Clio – o negro na historiografia brasileira etc. Nos meados do ano passado,  pretendia me encontrar com ele a fim de conhecê-lo pessoalmente, aproveitando uma viagem que faria à capital paulista com o propósito  de realizar uma pesquisa de campo para a minha Tese de Doutorado.

              Clóvis Moura me iria ajudar com o conhecimento que, coincidentemente, tinha do autor pesquisado, o contista João Antônio, o qual  havia sido amigo dele. Inclusive, me prometera apresentar-me a intelectuais paulistas que privaram da amizade de João Antônio. Terminei, por motivos alheios à minha vontade, não indo a São Paulo. Numa das cartas para mim declarava que a sociologia era seu “ofício”, a poesia, sua “arte”. Desconfio de que sempre amou mais as musas, as quais tinha em elevada  conta.

              Espírito lúcido, racional e rigoroso no trato das questões sociais, no entanto, fora buscar  na arte poética um refúgio para exercitar sua fina sensibilidade de artista,  uma outra  forma de, filosoficamente, ou melhor,  poeticamente, compreender, de maneira moderna e universalista, a complexidade da vida, da sociedade, dos homens e da Arte