Openverse
Openverse

[Carlos Castelo]

Tenho o hábito de anotar num bloquinho, três ou quatro livros para trazer das minhas incursões turísticas. Não mais do que isso para não pesar na bagagem. Numa ida a Portugal, um deles era As Crónicas, de António Lobo Antunes. Para os que não sabem, o escritor foi um prolífico (e excelente) cronista. Mantém em tais registros, inclusive, seu modo muito particular de criar parágrafos, usando minúsculas na abertura, a fim de causar um efeito de estranhamento nos leitores.

Só conhecia o material de Lobo Antunes nesse gênero de ficar bicando, aqui e ali, textos seus soltos pela internet. Queria lê-los na íntegra, a fim de compor um melhor juízo.

Ao chegar em Lisboa fui tomado pelos compromissos de terceiros. Era fundamental ver tal museu, essencial provar as ameijoas de um certo restaurante, ouvir o fado no Beco dos Embuçados.

Fui em todos os apontamentos e não me queixo. A questão é que, como sempre em meus périplos, as empreitadas literárias acabam ficando para os últimos dias. No apagar das luzes, porém, meus acompanhantes também têm suas derradeiras coisinhas a fazer: comprar aquele recuerdo, visitar uma tia, voltar a um local que merece bis. Então, sempre devo entrar numa livraria, ou sebo, procurar a lista e sair fora como um raio.

Ora, não é assim que um cidadão civilizado frequenta uma casa de livros. Como se estivesse praticando um assalto a banco, com um carro lhe esperando, de motor ligado, à porta do estabelecimento.

No entanto, foi desse modo que adentrei na livraria Buchholz: uma lista à mão, um deadline no relógio. Para não perder tempo entreguei logo o papelzinho à atendente. Disse-lhe que tinha muita pressa.

A moça saiu a caçar os títulos pelas prateleiras. Poucos minutos depois, já trazia três dos quatro itens desejados.

– Qual deles não tens? – perguntei na segunda pessoa do lusitano e do maranhense.

Ela sorriu e disse:

– Há apenas três, o quarto é um borrão.

Por sobre as anotações do livro de Lobo Antunes, havia uma mancha do vinho que tomáramos com as ameijoas. No meio da minha surpresa, ainda se agregou a buzina do carro dos “assaltantes” lá fora.

– Recordaste, por acaso, do título? –  a moça falou, solícita.

A mistura de constrangimento, pressão para ser veloz, e raiva, se mesclou formando uma enorme névoa em meus neurônios. Não consegui mais lembrar que livro, nem mesmo que autor, estava por baixo da maldita nódoa. Fiquei como um basbaque mirando a parede, sem reação alguma.

Após alguns instantes de languidez, sai do estado de torpor. Peguei as brochuras da mão da senhorita, fui ao caixa, paguei, e saltei no veículo. Só faltou pedir que ninguém me olhasse ou eu os mataria.

Por sorte, Deus e Santa Luzia protegem os escritores. Chegando a São Paulo descobri a versão digital de As Crónicas, de António Lobo Antunes. Pode não ter o charme de ter sido adquirida numa livraria histórica lisboeta, mas já li mais da metade do material. E a admiração pelo Lobo Antunes cronista só cresceu, ó pá.

(Publicado no Estadão)