Abílio Manuel Guerra Junqueira
Em: 04/08/2009, às 21H10
BIOGRAFIA
Nascido em 1850 em Trás-os-Montes, Abílio Manuel Guerra Junqueiro se fez notável não só pela sua contribuição à literatura portuguesa, mas também pela participação na vida política do país. Esta, assim como outras fases de sua vida pessoal, influenciaram em muito em sua obra.
Formou-se em direito na Faculdade de Coimbra, depois de também ter estudado teologia. Mais tarde, ingressou na vida administrativa e na vida política, como deputado. A partir de 1890, abraça a causa republicana,a o mesmo tempo em que aumenta seu interesse pela vida do campo - já anteriormente se dedicava à lavoura no Alto Douro. Com a República instalada, foi ministro na Suíça até a guerra de 14; depois disso, desapontado com os rumos do país, abandona a carreira política e a literatura, falecendo em 1923.
A influência de suas convicções políticas pode ser percebida em seu primeiro livro, A Morte de D. João, um poema de sátira social, em Finis Patriae, libelo contra o imperialismo, e no nacionalista Pátria. Os anos de estudo de teologia influenciaram muito em A Velhice do Padre Eterno, crítica violenta ao catolicismo. E o amor à vida no campo aparece em Simples, de caráter lírico, que destaca a importância da humildade.
Principais obras:
A Morte de D. João;
A Musa em Férias;
A Velhice do Padre Eterno;
Finis Patriae;
Os Simples;
Pátria;
Oração ao Pão;
Oração à Luz;
Poesias Dispersas.
AMOSTRAGEM
A ÁGUA DE LOURDES
Se ergueis uma capela à água milagrosa,
Esse elixir divino,
Então erguei também um templo à caparrosa
E outro templo ao quinino.
Se a água faz milagres, o que eu vos não discuto,
E por isso a adorais,
Ajoelhemos então em face do bismuto
E doutras drogas mais.
Façamos da magnésia e clorofórmio e arnica
As hóstias do sacrário;
Transformemos o templo enfim numa botica,
E Deus num boticário.
Que a vossa água opere imensas maravilhas
Eu não duvido nada:
E o Espirito Santo engarrafado em bilhas,
E o milagre à canada.
Desde que se espalhou pelo universo o eco
Do milagre feliz,
Tartufo nunca mais encheu o seu caneco
Em outro chafariz!
Na barca de S. Pedro ex-santo, hoje banqueiro,
São tantos os caixões com bulas da cruzada,
E tanto o oiro em barra, as jóias, o dinheiro,
O navio é tão velho e a carga é tão pesada;
Os anéis, os cetins, as púrpuras, as rendas,
As mitras d'oiro fino, os bentos, as imagens,
As pratas, os cristais, os vinhos, as of'rendas,
Os meninos de coro, os fâmulos, os pajens;
O maciço tropel de cónegos vermelhos,
De sacristas, bedéis, archeiros, missionários,
E o damasco, o veludo, os bronzes, os espelhos,
O silabus, a cúria, as forcas, os rosários;
As pipas e os tonéis com águas milagrosas,
Que ainda causam hoje o mais profundo assombro;
Dos velhos cardeais as cortesãs formosas,
E o cura Santa Cruz de bacamarte ao ombro;
Esta orgia pagã, esta riqueza imensa
Atulham de tal forma a barca ultramontana,
É tão desenfreado o vento da descrença,
E o mar é tão revolto, a carga é tão mundana;
Que a barca do Senhor, outrora dirigida
Por doze galileus descalços, quase nus,
Ela que atravessa o grande mar da vida
Tendo só por farol os olhos de Jesus;
A barca que através do horror da tempestade,
Arvorando no mastro o pavilhão da Esp'rança,
Levava os corações de toda a cristandade
Ao grande porto ideal da Bem-aventurança;
Hoje ao peso cruel deste deboche hediondo
Essa barca da Igreja, esse colosso antigo
Soçobrará, ó Deus, com pavoroso estrondo,
Indo dormir ao pé dos galeões de Vigo.
A obra está completa. A máquina flameja,
Desenrolando o fumo em ondas pelo ar.
Mas, antes de partir mandem chamar a Igreja,
Que é preciso que um bispo a venha baptizar.
Como ela é com certeza o fruto de Caim,
A filha da razão, da independência humana,
Botem-lhe na fornalha uns trechos em latim,
E convertam-na à fé Católica Romana.
Devem nela existir diabólicos pecados,
Porque é feita de cobre e ferro; e estes metais
Saem da natureza, ímpios, excomungados,
Como saímos nós dos ventres maternais!
Vamos, esconjurai-lhe o demo que ela encerra,
Extraí a heresia ao aço lampejante!
Ela acaba de vir das forjas d'Inglaterra,
E há-de ser com certeza um pouco protestante.
Para que o monstro corra em férvido galope,
Como um sonho febril, num doido turbilhão,
Além do maquinista é necessário o hissope,
E muita teologia... além dalgum carvão.
Atirem-lhe uma hóstia á boca famulenta,
Preguem-lhe alguns sermões, ensinem-lhe a rezar,
E lancem na caldeira um jorro d'água benta,
Que com água do céu talvez não possa andar.
A Caridade e a Justiça
No topo do calvário erguia-se uma cruz,
E pregado sobre ela o corpo de Jesus.
Noite sinistra e má. Nuvens esverdeadas
Corriam pelo ar como grandes manadas
De búfalos. A Lua, ensanguentada e fria,
Triste como um soluço imenso de Maria,
Lançava sobre a paz das coisas naturais
A merencória luz feita de brancos ais.
As árvores que outrora em dias de calor
Abrigaram Jesus, cheias de mágoa e dor,
Sonhavam, na mudez hercúlea dos heróis.
Deixaram de cantar todos os rouxinóis.
Um silêncio pesado amortalhava o mundo.
Unicamente ao longe o velho mar profundo
Descantava chorando os salmos da agonia.
Jesus, quase a expirar, cheio de dor, sorria.
Os abutres cruéis pairavam lentamente
A farejar-lhe o corpo; às vezes de repente
Uma nuvem toldava a face do luar,
E um clarão de gangrena, estranho, singular,
Lançava sob a cruz uns tons esverdeados.
Crocitavam ao longe os corvos esfaimados.
Mas passado um instante a Lua branca e pura
Irrompia outra vez da grande névoa escura,
E inundavam-se então as chagas de Jesus
Nas pulverizações balsâmicas da luz.
No momento em que havia a grande escuridão,
Cristo sentiu alguém aproximar-se, e então
Olhou e viu surgir, no horror das trevas mudas,
O covarde perfil sacrílego de Judas.
O traidor, contemplando o olhar do Nazareno,
Tão cheio de desdém, tão nobre, tão sereno,
Convulso de terror, fugiu... Mas nesse instante
Surgiu-lhe frente a frente um vulto de gigante,
Que bradou:
– É chegado enfim o teu castigo! –
O traidor teve medo e balbuciou:
– Amigo,
Que pretendes de mim? dize, por quem esperas?
Quem és tu? –
– «O Remorso, um caçador de feras,
Disse o gigante. Eu ando há mais de seis mil anos
A caçar pelo mundo as almas dos tiranos,
Do traidor, do ladrão, do vil, do celerado;
E depois de as prender tenho-as encarcerado
Na enormíssima jaula atroz da expiação.
E quando eu entro ali na imensa confusão
De tigres, de leões, d'abutres, de chacais,
De rugidos febris e de gritos bestiais,
Fica tudo a tremer, quieto de horror e espanto:
Caim baixa a pupila e vai deitar-se a um canto.
E quando em suma algum dos monstros quer lutar
Azorrago-o co'a luz febril do meu olhar,
Dando-lhe um pontapé, como num cão mendigo.
Já sabes quem eu sou, Judas; anda comigo!»
Como um preso que quer comprar um carcereiro,
Judas tirou do manto a bolsa do dinheiro,
Dizendo-lhe:
– Aqui tens, e deixa-me partir... –
O gigante fitou-o e começou a rir.
Houve um grande silêncio. O infame Iscariote,
Como um negro que vê a ponta dum chicote,
Tremia. Finalmente o vulto respondeu:
«Judas, podes guardar esse dinheiro; é teu.
O oiro da traição pertence-lhe, ao traidor,
Como o riso à inocência e como o aroma à flor.
Esse oiro é para ti o eterno pesadelo.
Oh! guarda, guarda-o bem, que eu quero derretê-lo,
E lançar-to depois cáustico, vivo, ardente,
Lançar-to, gota a gota, inexoravelmente,
Em cima da consciência, a pútrida, a execrável!
Com ele hei-de fundir a algema inquebrantável,
A grilheta que a tua esquálida memória
Trará, arrastará pelas galés da História,
Durante a eternidade ilimitada e calma.
Essa bolsa que aí tens é o cancro da tua alma:
Já se agarrou a ti, ligou-se ao criminoso,
Como a lepra nojenta ao peito do leproso,
Como o íman ao ferro e o verme à podridão.
Não poderás jamais largá-la da tua mão!
És traidor, assassino, hipócrita, perjuro;
A tua alma lançada em cima dum monturo
Faria nódoa. E tudo o que há de mais vil,
Desde o ventre do sapo à baba do reptil.
Sai da existência! dize à sombra que te acoite.
Monstro, procura a paz! verme, procura a noite!
Que o Sal não veja mais um único momento
O teu olhar obliquo e o teu perfil nojento.
Esse crime, bandido, é um crime que profana
Todas as grandes leis da consciência humana,
Todas as grandes leis da vida universal.
Esconde-te na morte, assim como um chacal
No seu covil. Adeus, causas-me nojo e asco.
Deixo dentro de ti, Judas, o teu carrasco!
És livre; adeus. Já brilha o astro matutino,
E eu, caçador feroz, cumprindo o meu destino,
Continuarei caçando os javalis nos matos."
E dito isto partiu a procurar Pilatos.
Vinha rompendo ao longe a fresca madrugada.
Judas, ficando só, meteu-se pela estrada,
Caminhando ligeiro, impávido, terrível,
Como um homem que leva um fim imprescritível,
Uma ideia qualquer, heróica e sobranceira;
De repente estacou. Havia uma figueira
Projectando na estrada a larga sombra escura;
Judas, desenrolando a corda da cintura,
Subiu acima, atou-a a um ramo vigoroso,
Dando um laço à garganta. O seu olhar odioso
Tinha nesse momento um brilho diamantino,
Recto como um juiz, forte como um destino.
Nisto ecoou através do negro Céu profundo
A voz celestial de Jesus moribundo,
Que lhe disse:
– «Traidor, concedo-te o perdão.
Além de meu carrasco és inda o meu irmão.
Pregaste-me na cruz; é o mesmo, fica em paz.
Eu costumo esquecer o mal que alguém me faz.
Eu tenho até prazer, bem vês, no sacrifício.
Não te cause remorso o meu atroz suplício,
Estes golpes cruéis, estas horríveis dores.
As chagas para mim são outras tantas flores! »
Judas fitou ao longe os cerros do calvário,
E erguendo-se viril, soberbo, extraordinário,
Exclamou:
– «Não aceito a tua compaixão.
A justiça dos bons consiste no perdão.
Um justo não perdoa. A justiça é implacável,
A minha acção é infame, hedionda, miserável;
Preguei-te nessa cruz, vendi-te aos Fariseus.
Pois bem, sendo eu um monstro e sendo tu um Deus,
Vais ver como esse monstro, ó pobre Cristo nu,
E maior do que Deus, mais justo do que tu:
A tua caridade humanitária e doce,
Eu prefiro o dever terrível!» E enforcou-se.
(VENDO PASSAR SEMINARISTAS)
Olhai, vede-os passar em legiões escuras,
Intonsos, apesar de todas as tonsuras,
Com um ar imbecil, caliginoso, estranho,
Marcados a tesoira assim como um rebanho,
E envoltos em cruéis balandraus de entremez,
– As lobas, sob as quais há lobos muita vez!...
Ó galuchos da Fé, recrutas do Divino,
Que um chocalho de bronze hiperbólico – um sino –
Faz erguer, faz dormir, faz deitar, faz andar,
Eu não sinto por vós, marionnettes do altar,
Nem ódio nem rancor. Sois vítimas. Loiola
Dobra-vos a cerviz com a canga da estola,
E jungindo-vos, bois nocturnos, ao arado,
Rasga convosco o negro e fúnebre valado
Aonde o vosso Deus semeia para a infância
A flor da estupidez e o trigo da ignorância.
A Igreja, a cortesã sensual de ventre obeso,
Ontem mulher de Cristo e hoje mulher de Creso,
Para a rapina odiosa e vil de que se nutre,
Mochos, deu-vos a calva ortodoxa do abutre!
Matilha de Leão XIII, a vossa presa é o mundo.
Tartufo, bode obsceno e teólogo profundo,
Ensina-vos, conforme o ritual mais perfeito,
A cruzar, como S. Francisco, as mãos no peito,
Sob a sotaina arqueando a gravidez das panças,
A impor jejuns, benzer caixões, salgar crianças,
A grunhir, a ladrar sermões, missas cantadas,
E a escriturar o Céu por partidas dobradas.
Não vos odeio, não, pálidos salafrários;
Vós sois unicamente os comparsas mortuários
Do papa, esse Barnum que assombra a multidão,
Com o Espírito Santo a vir comer-lhe à mão,
Satanás a frigir (sarrabulhada trágica!)
Heresiarcas de estopa em caldeirões de mágica,
E Jeová, um urso estúpido e cruel,
A lamber-lhe a sandália, a babujar-lhe o anel,
E a ameaçar furibundo este mundo precito
A rufos de trovões no tambor do infinito.
A Igreja é uma serpente escura, bicho imundo,
Gigantesco reptil que dá a volta ao mundo,
E em cujas espirais, ébrias de raiva insana,
Um Lacoonte imortal – a consciência humana,
Há séculos se estorce em convulsão atroz.
Os elos desse monstro implacável sois vós,
Sacristas. A cabeça é o papa.
Ora as serpentes
Têm a força na cauda e o veneno nos dentes.
I
Vala comum – tasca nojenta,
Mesa redonda sepulcral,
Aonde a toalha crapulenta
É um lençol roto do hospital,
E aonde as larvas proletárias
Devoram – lúgubres festins! –
Crânios de heróis, ventres de párias,
Carcaças podres de arlequins.
Ao contemplar-te, ó libertina,
Um nojo imenso me acomete:
Tens a avidez de Messalina
Na boca negra de Macbeth!
Na treva aziaga o crime e os vícios,
Para o menu do teu jantar,
Dão-te as crianças dos hospícios
E as barregãs do lupanar.
Em teu estômago de hiena
Vão-se abismar, monstro cruel,
Rios de sangue com gangrena
E ondas de lágrimas com fel.
Cloaca pútrida e funérea,
Feira da ladra hedionda e vil,
És o saguão onde a miséria
Despeja à noite o seu barril.
Trituras, lôbrega sarjeta,
Sem que o horror te engasgue e abafe,
Os seios virgens de Julieta
E a pança obscena de Falstaff.
Cinismo atroz que a alma oprime,
Fétida e fúnebre impudência!
A boca esquálida do crime
Posta na boca da inocência!
O abutre e a pomba, o cardo e a anémona,
Na mesma leiva apodrecida:
Tropman chegando-se a Desdémona,
E Papavoine a Margarida!
Virtude, amor, crime, deboche
Promiscuamente a fermentar!
Mimi Pinson e Rigolboche!
Caim e Abel! estrume e luar!
Oh, bulímia tenebrosa!
Monstruosidade apocalíptica!
Tudo te serve: ou cancro ou rosa,
Ou flor doirada ou flor sif'lítica.
Anjos que vêm do paraíso,
Candura etérea e perfumada,
Feitos dum beijo e dum sorriso,
Nalgum jardim, de madrugada,
Vão confundir-se nessa goela,
Nessa pestífera anarquia
Com quantas lepras uma viela
Possa escarrar numa enxovia!
As guilhotinas homicidas,
Pelo carrasco, o fiel criado,
Mandam-te o lunch às escondidas
No seu panier ensanguentado.
E o cadafalso, um salteador,
Na noite lívida estrangula
Feras, que arroja no estertor
Aos antros podres da tua gula.
Nada que te encha ou te sufoque.
Monstro, absorver é o teu destino.
Depois da ceia de Moloch,
Ruges co'a fome de Hugolino!
Sempre a comer, monstro insensato,
E a boca sempre escancarada!
O esquife, harpia, eis o teu prato!
E o teu talher – a pá e a enxada!
Vala comum, despenhadeiro
De lírios brancos e de sapos,
Furna onde o Nada, esse trapeiro,
Faz o armazém dos seus farrapos.
Quantos heróis – ó raiva, ó ódio! –
Teu lodo amargo apodreceu
Desde Aristógiton e Harmódio
Até Camões e Galileu!
Deus que te fez sempre esfaimada,
Deu-te também, pança gigante,
Por cozinheiro Torquemada,
E Bonaparte por marchante.
Átila e Nero – o tigre e o lobo,
Noventa e três, Saint-Barth'lemy,
Eis hecatombes para o globo
Que são banquetes para ti.
Quando famélica te nutres
Dum Waterloo, grandiosa presa,
Sustentas todos os abutres
Só co'as migalhas da tua mesa!
Para o teu último festim,
Gargântua sórdido e voraz,
Foi aos açougues de Berlim
A Morte a encher o seu cabaz.
És magro e fúnebre molosso
Há milhões d'anos sempre a uivar:
Ó Guerra, traz-me o meu almoço!
Ó Peste, traz-me o meu jantar!
Servo, Felah, Moujik, Escravo,
Plebe sem pão, mendigos nus,
Bocas que têm ainda o travo
Do fel da esponja de Jesus;
Mártires, vitimas, proscritos,
Legião de heróis resplandecentes,
Que ensanguentados e malditos
Revoluteiam febrilmente,
Raios no olhar, grilhões nos pulsos,
No céu em brasa a fronte erguida,
Nos sete círculos convulsos
Do inferno trágico da Vida;
Todo esse exército ululante
Que em rouco e pávido tropel
Vem pela história humana adiante,
Desde Caim até Rossel;
Tudo que estoira de miséria,
Tudo o que ruge na opressão,
Desde a grilheta da Sibéria
Até ao pária do Indostão;
Todo esse bárbaro massacre
Da guerra, enorme Leviathan,
Zama, Farsália, S. João d'Acre,
Iena, Austerlitz, Sedan;
Todo esse vómito de horrores
E de catástrofes sombrias,
Profundo atlântico de dores,
Negro Himalaia de agonias,
Todo esse lodo Deus impele-o
Ao teu estômago sem dó:
És a barriga de Vitélio,
Cheia das pústulas de Job!
II
E entre esses tábidos fermentos,
Entre esse horror de coisas más,
Fossa, à procura de alimentos,
Um porco imundo – Satanás.
Essa latrina de Pandora,
Pensando bem, é afinal
A escarradeira onde expectora
Jeová a bílis imortal.
Como ele é velho, com o frio
Tosse; e Prudhomme diz-lhe então:
– Deus, aqui tens este bacio...
Não vás cuspir no meu salão.
E às vezes do alto do infinito,
Talvez depois dum mau jantar,
O Padre Eterno faz cabrito,
E enche o bacio a trasbordar.
E o pote enorme onde cuspinha
O truculento Manitu,
Sem ninguém ver, logo à noitinha,
Vai despejá-lo Belzebu.
Vai despejá-lo, ó crueldade!,
Lá nessas tórridas galés,
Onde Deus assa a humanidade
No fogo – a que ele aquece os pés 1
Porque, ó eternos deserdados
Da raça impura de Caim,
Morrendo sois encaixotados
Sem água benta e sem latim.
Se algum vos dão é já com ranço,
É já latim para hospitais,
Feito com cisco de ripanço
E as varreduras dos missais.
A Igreja dá, barata feira!,
Ao vosso último estertor
Óleos de azeite de purgueira
E hóstias de trapos com bolor.
Por isso, a vala é um alçapão
De donde rui a todo o instante
Um tremedal de podridão
Num mar de enxofre flamejante.
Castigo bárbaro e nefando!
Em monstruosos caldeirões
Ondas de pez tonitroando,
Roucas, uivando, aos borbotões,
E dentro vós, pobres cativos,
Em sangue, em chagas, todos nus,
A morrer sempre e sempre vivos,
Sempre a cozer e sempre crus!
Em lagos rútilos de estanho,
Bramindo pragas em latim,
Milhões de hereges tomam banho...
Olhai que espiga um banho assim!...
Estes frigidos em sertãs,
Dentro do azeite que extravasa.
Outros perneando, como rãs,
Na empalação dum raio em brasa!
Uns são torrados sobre grelhas.
E os diabos vêm, continuamente
Naquelas nádegas vermelhas
Cravar com fúria o seu tridente!
Muitos estoira-lhes a pança,
Entre os coléricos anéis
De vinte cilhas, que lembrança!,
Feitas de cobras cascavéis!
E em torno aos fúlgidos braseiros
Onde um bom Deus, piedoso e justo
Rebenta as almas aos milheiros,
Como as castanhas num magusto,
Pincham selváticos fandangos
Satãs frenéticos e maus,
Rabudos como orangotangos,
Cornudos como Menelaus!
E é por não dar uns seis ou sete
Tostões ao odre de um abade,
Que a Providência vos derrete,
Impios, por toda a eternidade!
Côngrua e folar – palha e bolota
Ao teu abade, ímpio, não dás?
Pois bem, Deus põe-te de compota
Num molho ardente de aguarrás.
Ah, tu rebelde, ah, tu faminto,
Nunca a chorar foste depor
Três mil remorsos com um pinto
Nas mãos dum padre confessor?
Ah, tu mandaste a Igreja à fava?
Nunca compraste uma cartilha?
Coze-te em pez, torra-te em lava,
Anda, meu besta, meu pandilha!
E, enquanto Deus te frita os untos
E o coração numa panela,
Que vida airada os bons defuntos
Passam no Céu!... que vida aquela!
Pois cá por baixo aos maganões
Nunca também lhes faltou nada;
Tiveram crenças e milhões...
Deus gosta assim de gente honrada.
Comeram óptimos jantares,
Perfeitamente digeridos;
Foram cristãos e titulares,
Bons pais, bons filhos, bons maridos.
Aos seus palácios luculianos
(O que é virtude e pundonor!)
Durante quase oitenta anos
Não bateu nunca um só credor!
Amaram todos os pecados,
Que são mortais, mas são gentis,
Com todo o encanto fabricados
Para os banqueiros, em Paris.
Dormiram sempre num bom leito
Co'as mais formosas cortesãs.
E o ventre sempre satisfeito,
E livre... todas as manhãs.
Gozaram sim, mas na verdade
Foram à missa muitas vezes,
Com toda a pompa e majestade
Dentro dos seus landaus ingleses.
Se algum remorso impertinente
As almas castas lhes mordia,
Catava-o logo com um pente
Um bispo numa sacristia.
Crendo nos dogmas mais profundos,
E achando a vida um bom lameiro,
Tiveram sempre o Autor dos Mundos
Por um perfeito cavalheiro.
Deram de graça a vários santos,
A Jesus Cristo e à mãe das Dores
C'roas, chinós, túnicas, mantos,
Borzeguins d'oiro e resplendores.
Por isso, o tal Autor, que acabo
De vos citar, os tratou bem;
Deus é levado do diabo
Só para os pulhas sem vintém.
E quando, ao cabo da função,
– Velhos sem dentes, já na espinha, –
A Morte, de chapéu na mão,
Lhes foi tocar à campainha,
Para espicharem dignamente,
Agasalhados na sua cama,
O papa enviou-lhes de presente
A bênção neste telegrama:
«Remeto bênção Divindade.
Legado Pedro quinze contos.
Escrevi Céu, Hotel Trindade,
Tenham chegada quartos prontos.»
E após um grande funeral,
A que assistiu o high-life inteiro,
Desde o arcebispo ao general
E desde o príncipe ao banqueiro,
Seus corpos, onde não remexe
O verme vil que trinca os párias,
Embalsamados de escabeche
Em grandes latas funerárias,
No palacete duma campa
Foram guardados, qual tesoiro,
Dentro dum cofre, em cuja tampa
Há versos maus em letras d'oiro.
E as almas, prontas para a festa
Do seu olímpico noivado,
Com uma auréola na testa
E as asas soberbas no costado,
Partiram leves, sub-reptícias,
Entre o esplendor de cem auroras,
Lá para o Reino de Delícias,
Onde estarão a estas horas,
Feitas bebés, comendo um queque,
Tocando frauta ou tamboril,
Ou arrastando a asa em leque
Ingenuamente... às onze mil.
Ah miserável, ah precito,
Que lá dos báratros cristãos
Ergues ao Tigre do infinito
Os dois archotes das tuas mãos,
Vê tu como é conveniente,
E justo em todos os sentidos,
Herdar um homem dum parente
Seiscentos contos garantidos,
Cruzar, sem medo à vida eterna,
Toda essa bela patuscada,
Desde a luxúria mais moderna
A gula mais civilizada,
E ao terminar tão bom fadário
Morrer, ouvindo alguns latins,
Com treze quilos de calcário,
– Onze na alma, e dois nos rins;
E, na mais íntima harmonia
Com Satanás e com Jesus,
Ir para a cova à luz do dia,
De farda rica e de grã-cruz,
E entre tocheiros deslumbrantes
Ser bem comido e bem jantado
Por alguns vermes elegantes
Num gabinete reservado!...
I
Existiu noutro tempo uma vinha piedosa
Doirada pelo Sol da alma de Jesus,
Uma vinha que dava uns frutos cor-de-rosa,
Vermelhos como o sangue e puros como a luz.
Inundavam-na d'água os olhos de Maria,
E os virgens corações dos mártires, dos crentes,
Eram a terra funda aonde se embebia
A mística raiz dos pâmpanos virentes.
Produzia um licor balsâmico, divino,
Que aos cegos dava luz, aos tristes dava esp'rança,
E que fazia ver, na areia do destino,
A miragem feliz da bem-aventurança.
Aos mortos restituía o movimento e a fala,
Escravizava a carne, as tentações, a dor,
E transformou em santa a impura de Magdala,
Como transformou Abril um verme numa flor.
Bebê-lo era beber uma virtuosa essência
Que ungia o coração de perfumes ideais,
Pondo no lábio um riso ingénuo de inocência,
Como o d'água a correr, virgem, dos mananciais.
Dava um tal esplendor às almas, tal pureza,
Que nos circos de Roma até se viu baixar,
Diante da nudez das virgens sem defesa,
Ao magro leão da Núbia o coruscante olhar.
II
Mas passado algum tempo a humanidade inteira
De tal modo gostou desse licor sublime,
Que o êxtase cristão tornou-se em bebedeira,
E o sonho em pesadelo, e o pesadelo em crime.
Nas solidões do claustro as virgens inflamadas
Co'as fortes atracções da mística ambrosia
Torciam-se, febris, convulsas, desvairadas,
Meretrizes de Deus numa piedosa orgia.
É, que no vinho antigo ia à noite o demónio
Lançar co'a garra adunca uma infernal mistura
De mandrágora e ópio e heléboro e estramónio
Verde-negro e viscoso estrato de loucura.
Quando uivava de noite o vento nas campinas,
Via-se pela sombra, oblíquo, Satanás,
Colhendo aos pés da forca ou buscando entre as ruínas
Ervas, vegetações, prenhes de essências más.
Era o filtro subtil dessas plantas de morte
Que fazia da alma um dervixe incoerente,
Uma bússola doida à procura do norte,
Uma cega a tactear no vácuo, ansiosamente!...
E a taça do veneno estonteador e amargo
No fúnebre banquete ia de mão em mão,
Produzindo o delírio, a síncope, o letargo,
E em cada olhar sinistro uma cruel visão.
Uns viam a espectral sarabanda frenética
De esqueletos a rir e a dançar com furor
Em torno à Morte podre, impudente, epiléptica,
Com dois ossos em cruz rufando num tambor.
Outros viam chegado o pavoroso instante
Em que um monstro de fogo, um dragão aerolito,
Dava na terra um nó co'a cauda flamejante,
Arrebatando-a, a arder, através do infinito.
E então para fugir ao desespero e ao pânico
Bebiam com mais ânsia o filtro singular,
Até à epilepsia, ao turbilhão tetânico
Do Sabá desgrenhado e erótico, a espumar!
E à força de beber o trágico veneno
Tombou por terra exausta a humanidade enfim,
Como em Londres, de noite, ao pé dum antro obsceno
Cai sobre a lama inerte um bêbado de gim.
III
Mas nisto despontou a esplêndida manhã
Dum mundo juvenil, robusto, afrodisíaco:
A Renascença foi para a embriaguez cristã
A excitação vital dum frasco de amoníaco.
E na vinha de Deus ainda florescente
Começou a nascer por essa ocasião
Um bicho que enterrava escandalosamente
Nos pâmpanos da crença as unhas da razão.
Propagou-se o flagelo; o mal recrudesceu;
A colheita ficou em duas terças partes:
Chega o oídio Lutero, o verme Galileu,
E cai-lhe o temporal de Newton e Descartes.
Embalde Carlos nove, Inácio e Torquemada,
Catando esses pulgões das bíblicas videiras,
Os entregam à roda, ao cadafalso, à espada,
Ou os queimam por junto aos centos nas fogueiras.
O estrago cada vez era maior, mais forte;
Apesar da realeza, o trono e a sacristia
Andarem sacudindo o enxofrador da morte
No formigueiro vil das pragas da heresia.
Por último, Voltaire-filoxera invade
Essa encosta plantada outrora por Jesus,
E das cepas ideais da escura meia-idade
Ficaram simplesmente uns velhos troncos nus.
IV
Mas como havia ainda alguns consumidores
Desse vinho que o Sol deixou de fecundar,
Uns velhos cardeais, hábeis exploradores,
Reuniram-se em concílio a fim de o imitar.
E é assim que Antonelli, o verdadeiro papa,
O químico da fé, um grande industrial,
Fabrica para o mundo ingénuo uma zurrapa
Que ele assevera que é o antigo vinho ideal.
Para isso combina os vários elementos
Que compõem esta droga: o nome de Maria,
Anjos e querubins, infernos e tormentos,
Bastante estupidez e imensa hipocrisia.
Põe tudo isto a ferver, liga, combina, mexe,
E, filtrando através duns textos de latim,
Eis preparado o vinho, ou antes o campeche,
Que a saúde da alma há-de arruinar por fim.
Mas como o paladar de muitos europeus
Quase prefere já (horrível impiedade!)
A falsificação do vinho do bom Deus,
O vinho genuíno e puro da verdade;
E como já por isso, (assim como era dantes)
A Igreja nos não queime e o rei nos não enforque,
A cúria procurou mercados mais distantes,
O Japão, o Peru, a Austrália e Nova Iorque.
Os comis-voyageurs de Roma - os Lazaristas
Com as carregações vão através do oceano,
Por toda a parte abrindo os armazéns papistas,
A fim de dar consumo ao vinho ultramontano.
Em cada igreja existe uma taberna franca
Para impingir a tal mixórdia, o tal horror,
Ou seca ou doce, ou velha ou nova, ou tinta ou branca,
Segundo as condições e a fé do bebedor.
Para Espanha vão muito uns vinhos infernais,
Um veneno explosivo e forte que produz
Um delírio tremente – o General Narvais,
E um vómito de sangue – o Cura Santa Cruz.
Portugal quer vinagre. A Itália quer falerno.
Veuillot quer aguarrás que ponha a língua em brasa.
E John Bull, por exemplo, um pouco mais moderno,
Manda ao diabo a botica, e faz a droga em casa.
Ao povo, esse animal que o Padre Eterno monta,
Como é pobre, coitado, então a Santa Sé
Fabrica-lhe uma borra incrível, muito em conta,
Um pouco de melaço e um pouco d'aguapé.
A fina flor cristã, a flor altiva e nobre,
O rico sangue azul do bairro S. Germano,
Para quem o bom Deus é um gentil-homem pobre
A quem se dá de esmola alguns milhões por ano,
Essa, como detesta os vinhos maus, baratos,
Como é de raça ilustre e débil compleição,
Mandam-lhe um elixir que serve para os flatos,
Ou para pôr no lenço ou ir à comunhão.
De resto há quem, bebendo essa tisana impura,
Sinta a impressão que outrora o néctar produzia.
São milagres da fé. Ditosa a criatura
Que no ruibarbo encontra o sabor da ambrosia.
E eu não vos vou magoar, ó almas cor-de-rosa
Que inda achais neste vinho o esquecimento e a paz!
Não insulto quem bebe a droga venenosa;
Acuso simplesmente o charlatão que a faz.
Uma loba emprenhou um dia de Tartufo,
E Antonelli nasceu deste consórcio bufo.
O seu lábio despreza; o seu olhar dardeja.
Cassagnac de Deus, guarda-costas da Igreja.
Redige as pastorais brutais de que se nutre
Co'um tinteiro de treva e uma pena de abutre.
Bossuet-Ferrabrás e Falstaff-Isaías.
Bebe petróleo negro e gim nas sacristias.
Não há pomba mais tigre ou Santo mais demónio:
Fera, – como Caim! rato, – como Polónio!
Naquele olhar nocturno, inquisidor, que assusta,
Há Nero a murmurar nas sombras com Locusta.
O cabeção que traz na batina de lila
Erriçam-no punhais: era dum cão de fila.
O tigre deu-lhe o amor e o bode a castidade,
Para um dia expulsar do mundo a Liberdade.
Fez um látego atroz, que corta e que esfarrapa,
Atando uma serpente ao báculo de um papa.
Quando observo esse monstro, essa alimária brava,
Hércules que talhou dum hissope uma clava,
Ao ver-lhe os rins de bronze, e ao ver-lhe a erecta fronte,
Creio estar contemplando ao longe, no horizonte,
Entre o rubro esplendor duma manhã sonora,
Um búfalo de treva às cornadas na aurora!
No meio duma feira, uns poucos de palhaços
Andavam a mostrar, em cima dum jumento
Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,
Aborto que lhes dava um grande rendimento.
Os magros histriões, hipócritas, devassos,
Exploravam assim a flor do sentimento,
E o monstro arregalava os grandes olhos baços,
Uns olhos sem calor e sem entendimento.
E toda a gente deu esmola aos tais ciganos:
Deram esmola até mendigos quase nus.
E eu, ao ver este quadro, apóstolos romanos,
Eu lembrei-me de vós, funâmbulos da Cruz,
Que andais pelo universo há mil e tantos anos,
Exibindo, explorando o corpo de Jesus.
As crianças têm medo à noite, às horas mortas,
Do papão que as espera, hediondo, atrás das portas,
Para as levar no bolso ou no capuz dum frade.
Não te rias da infância, ó velha humanidade,
Que tu também tens medo ao bárbaro papão,
Que ruge pela boca enorme do trovão,
Que abençoa os punhais sangrentos dos tiranos,
Um papão que não faz a barba há seis mil anos,
E que mora, segundo os bonzos têm escrito,
Lá em cima, detrás da porta do infinito!
O DINHEIRO DE S. PEDRO
De tal modo imitou o Papa a singeleza
Do mártir do Calvário,
Que à força de gastar os bens com a pobreza
Tornou-se milionário.
Tu hoje podes ver, ó filho de Maria,
O teu vigário humilde
Conversando na Bolsa em fundos da Turquia
Com o Barão Rothschild.
A cruz da redenção, que deu ao mundo a vida
Por te haver dado a morte,
Tem-na no seu bureau o padre-santo erguida
Sobre uma caixa forte.
E toda essa riqueza imensa, acumulada
Por tantos financeiros,
O que é a economia, ó Deus! foi começada
Só com trinta dinheiros!
Jeová, por alcunha antiga – o Padre Eterno,
Deus muitíssimo padre e muito pouco eterno,
Teve uma ideia suja, uma ideia infeliz:
Pôs-se a esgaravatar co'o dedo no nariz,
Tirou desse nariz o que um nariz encerra,
Deitou isso depois cá baixo, e fez-se a Terra.
Em seguida tirou da cabeça o chapéu,
Pô-lo em cima da Terra, e zás, formou o céu.
Mas o chapéu azul do Padre-Omnipotente
Era um velho penante, um penante indecente,
Já muito carcomido e muito esburacado,
E eis aí porque o Céu ficou todo estrelado.
Depois o Criador (honra lhe seja feita!)
Achou a sua obra uma obra imperfeita,
Mundo sarrafaçal, globo de fancaria,
Que nem um aprendiz de Deus assinaria,
E furioso escarrou no mundo sublunar,
E a saliva ao cair na Terra fez o mar.
Depois, para que a Igreja arranjasse entre os povos
Com bulas da cruzada, alguns cruzados novos,
E Tartufo pudesse inda dessa maneira
Jejuar, sem comer de carne à sexta-feira,
Jeová fez então para a crença devota
A enguia, o bacalhau e a pescada-marmota.
Em seguida meteu a mão pelo sovaco,
Mais profundo e maior que a caverna de Caco,
E arrancando de lá parasitas estranhos,
De toda a qualidade e todos os tamanhos,
Lançou-os sobre a Terra, e deste modo insonte
Fez ele o megatério e fez o mastodonte.
Depois, para provar em suma quanto pode
Um Criador, tirou dois pêlos do bigode,
Cortou-os em milhões e milhões de bocados,
(Obra em que ele estragou quatrocentos machados)
Dispersou-os no globo, e foi desta maneira
Que nasceu o carvalho, o plátano e a palmeira.
Por fim com barro vil, assombro da olaria!,
O que é que imaginais que o Criador faria?
Um pote? não; um bicho, um bípede com rabo,
A que uns chamam Adão e outros Simão. Ao cabo
O pobre Criador sentindo-se já fraco,
(Coitado, tinha feito o universo e um macaco
Em seis dias!) pensou: – Deixemo-nos de asneiras.
Trago já uma dor horrível nas cadeiras,
Fastio... Isto dá cabo até duma pessoa...
Nada, toca a dormir uma sonata boa!
Descalçou-se, tirou os óc'los e o chinó,
Pitadeou com delícia alguns trovões em pó,
Abriu, para cair num sono repentino,
O alfarrábio chamado o Livro do Destino,
E enflanelando bem a carcaça caduca,
Com o barrete azul-celeste até à nuca,
Fez ortodoxamente o seu sinal da cruz
Como qualquer de nós, tossiu, soprou à luz,
E de pança pró ar, num repoiso bendito,
Espojou-se, estirou-se ao longo do infinito
Num imenso enxergão de névoa e luz doirada.
E até hoje, que eu saiba, inda não fez mais nada.
De tal modo imitou o Papa a singeleza
Do mártir do Calvário,
Que à força de gastar os bens com a pobreza
Tornou-se milionário.
Tu hoje podes ver, ó filho de Maria,
O teu vigário humilde
Conversando na Bolsa em fundos da Turquia
Com o Barão Rothschild.
A cruz da redenção, que deu ao mundo a vida
Por te haver dado a morte,
Tem-na no seu bureau o padre-santo erguida
Sobre uma caixa forte.
E toda essa riqueza imensa, acumulada
Por tantos financeiros,
O que é a economia, ó Deus! foi começada
Só com trinta dinheiros!
Exeat de vobis spiritus malignus.
RITUAL
Baptizais: arrancais dum anjo um satanás.
Desinfectais Ariel banhando-o em aguarrás
De igreja e no latim que um malandro expectora.
Dizeis à noite: – limpa a túnica da aurora,
E ao rouxinol dizeis: – pede a bênção da c'ruja.
Dais os lírios em flor ao rol da roupa suja,
Representais a farsa estúpida e sombria
Dum cónego a lavar um astro numa pia,
Finalmente extrais da inocência o pecado,
Que é o mesmo que extrair duma rosa um cevado,
E tudo isto porquê?
– Porque na bíblia um mono
Devora uma maçã sem licença do dono!
Ai, há quantos anos que eu parti chorando
Deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?... há trinta?... Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
Canta-me cantigas para me eu lembrar!...
Dei a volta ao mundo, dei a volta à Vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh! a ingénua alma tão desiludida! ...
Minha velha ama, com a voz dorida,
Canta-me cantigas de me adormentar!...
Trago d'amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu safra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama que me deste o peito,
Canta-me cantigas para me embalar!...
Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
Pedrarias d'astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!
Como antigamente, no regaço amado,
(Venho morto, morto!...) deixa-me deitar!
Ai, o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...
Canta-me cantigas, manso, muito manso...
Tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
Que a minh'alma durma, tenha paz, descanso,
Quando a Morte, em breve, ma vier buscar!...
I
A caminho
(Abril, ao raiar d'alva. Por uma encosta de sementeiras, pastos, olivedos e amendoais em flor vai um loiro peregrino adolescente, d'olhos ingénuos e extasiados no alvor da estrela da manhã.)
UM LAVRADOR
(de noventa anos, em mangas de camisa a lavrar uma terra)
Ó Senhor tão novo, d'olhos cor de esp'rança,
Ides de caminho para algum lugar?
O PEREGRINO
Vou dar volta ao mundo...
O LAVRADOR
Sem arnês ou lança?!
Ó Senhor tão novo, d'olhos cor d'esp'rança,
Penas e misérias é o que ireis achar!...
UMA VELHINHA
(mais adiante)
Ó Senhor tão novo, d'olhos inocentes,
Ides com cuidados para um tal andar!
O PEREGRINO
Vou a prender monstros, combater serpentes...
A VELHINHA
Ó Senhor tão novo, d'olhos inocentes.
Os dragões ferozes vão-no espostejar!...
UMA JOVEM CAMPONESA
(mais adiante)
Ó Senhor tão novo, d'olhos encantados,
Ides pela fresca para algum pomar?
O PEREGRINO
Vou-me a ler Destinos, descobrir os Fados...
A CAMPONESA
Ó Senhor tão novo, d'olhos encantados,
Feiticeiros negros vão-no enfeitiçar!...
UMA PASTORINHA
(mais adiante)
Ó Senhor tão novo, d'olhos tão brilhantes,
Vossos olhos dizem que ides p'ra casar...
O PEREGRINO
Vou fazer tesoiros, fabricar diamantes...
A PASTORINHA
Ó Senhor tão novo, d'olhos tão brilhantes,
Há ladrões nos bosques, vão-no assassinar!...
UM MENDIGO
(mais adiante)
Ó Senhor tão novo, d'olhos cor de chama,
Vossos olhos ardem como a luz solar!...
O PEREGRINO
Vou descobrir mundos, quero glória e fama!...
O MENDIGO
Ó Senhor tão novo, d'olhos cor de chama,
Sobe o pó mais alto que os trovões do mar!...
A ESTRELA D'ALVA
Ó criança, d'olhos cor da flor dos linhos,
Por infernos deixas tua paz, teu lar!
O PEREGRINO
(desaparecendo ao longe)
Florirei as pedras pelos maus caminhos! Levo a luz dos astros e as canções dos ninhos A sorrir nos beijos e a tremer no olhar! II De volta (Crepúsculo. Novembro. Pela encosta fria e desnudada vai andando, esfarrapado e exangue, um pobrezinho triste, arrimado ao bordão.) UM LAVRADOR (de cem anos, ainda robusto, à porta do casebre) Mendigo d'olhos sem esp'rança, Vais-te perder na escuridão... Entra em meu lar; dorme, descansa... O POBREZINHO (andando sempre) Quem dera a paz divina e mansa, Velho, que tens no coração!... UMA VELHINHA (a rezar à porta do moinho) Mendigo d'olhos sem ventura, Dentro da azenha há um enxergão; Terás lençóis, terás fartura... O POBREZINHO (andando sempre) Eu só quisera essa candura, Irmã da Graça e da Ilusão!... UMA CAMPONESA (que vem da vindima) Mendigo d'olhos d'enjeitado, Na nossa casa há vinho e pão; E há leite fresco; e há mel doirado... O POBREZINHO (andando sempre) Tua alegria sem cuidado, Eis o que eu busco... em vão! em vão!... UMA PASTORINHA Mendigo d'olhos de coveiro, Trago a merenda no surrão; O queijo é bom, mas é grosseiro... O POBREZINHO (andando sempre) Dá-me o teu riso feiticeiro, Lírio do monte inda em botão! UM PEDINTE Mendigo d'olhos na agonia, Dou-te o meu manto e o meu bordão; Nada mais levo... a noite é fria... O POBREZINHO (andando sempre) Apenas ai! desejaria Tua cristã resignação!... A ESTRELA VÉSPER Ó sonhador louco d'outrora, Teus sonhos lindos onde estão?! Ébrio de luz, rico d'aurora, Vi-te partir... e vejo agora Um morto erguido dum caixão! Teus olhos fulvos namorei-os De dia e noite, da amplidão Vi-os sorrir entre gorjeios, Vi-os cantar e vi-os cheios De pranto e febre e indignação! Regressa enfim, é teu destino, À paz obscura, à submissão... E outra vez meigo e pequenino Deixa dormir, como um menino, Teu velho e exausto coração!... O POBREZINHO (chorando) Só tu, estrela, me conheces Em minha dor, minha aflição! Só tu não dormes, não esqueces... Só tu ouviste as minhas preces... Bendito, estrela, o teu clarão! Setembro – 91.
Pela estrada plana, toque, toque, toque, Guia o jumentinho uma velhinha errante. Como vão ligeiros, ambos a reboque, Antes que anoiteça, toque, toque, toque, A velhinha atrás, o jumentito adiante!... Toque, toque, a velha vai para o moinho, Tem oitenta anos, bem bonito rol!... E contudo alegre como um passarinho, Toque, toque, e fresca como o branco linho, De manhã nas relvas a corar ao sol. Vai sem cabeçada, em liberdade franca, O jerico ruço duma linda cor; Nunca foi ferrado, nunca usou retranca, Tange-o, toque, toque, a moleirinha branca Com o galho verde duma giesta em flor. Vendo esta velhita, encarquilhada e benta, Toque, toque, toque, que recordação! Minha avó ceguinha se me representa... Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta, Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!... Toque, toque, toque, lindo burriquito, Para as minhas filhas quem mo dera a mim! Nada mais gracioso, nada mais bonito! Quando a virgem pura foi para o Egipto, Com certeza ia num burrico assim. Toque, toque, é tarde, moleirinha santa! Nascem as estrelas, vivas, em cardume... Toque, toque, toque, e quando o galo canta, Logo a moleirinha, toque, se levanta, P'ra vestir os netos, p'ra acender o lume... Toque, toque, toque, como se espaneja, Lindo o jumentinho pela estrada chã! Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja, Dá-me até vontade de o levar à igreja, Baptizar-lhe a alma, p'ra a fazer cristã! Toque, toque, toque, e a moleirinha antiga, Toda, toda branca, vai numa frescata... Foi enfarinhada, sorridente amiga, Pela mó da azenha com farinha triga, Pelos anjos loiros com luar de prata!... Toque, toque, como o burriquito avança! Que prazer d'outrora para os olhos meus! Minha avó contou-me quando fui criança, Que era assim tal qual a jumentinha mansa Que adorou nas palhas o menino Deus... Toque, toque, é noite... ouvem-se ao longe os sinos, Moleirinha branca, branca de luar!... Toque, toque, e os astros abrem diamantinos, Como estremunhados querubins divinos, Os olhitos meigos para a ver passar... Toque, toque, e vendo sideral tesoiro, Entre os milhões d'astros o luar sem véu, O burrico pensa: Quanto milho loiro! Quem será que mói estas farinhas d'oiro Com a mó de jaspe que anda além no Céu! Novembro de 1888. I Préstito fúnebre Que alegrias virgens, campesinas, fremem Neste imaculado, límpido arrebol! Como os galos cantam!... como as noras gemem!... Nos olmeiros brancos, cujas folhas tremem, Refulgente e novo passarinha o sol!... Pela estrada, que entre cerejais ondeia, Uma pequerrucha, – tró-la-ró-la-rá – Vai cantando e guiando o carro para a aldeia... São os bois enormes, e a carrada cheia Com um castanheiro apodrecido já. Oh, que donairosa, linda boieirinha! Grandes olhos garços, sorrisinho arisco... D'aguilhada em punho lépida caminha, Com a graça aérea d'ave ribeirinha, Verdilhão, arvéola, toutinegra ou pisco. Loira, mas do loiro fulvo das abelhas; Fresca como os cravos pelo amanhecer; Brincos de cerejas presos nas orelhas, Na boquita rósea três canções vermelhas, Na aguilhada, ao alto, uma estrelinha a arder! Descalcinha e pobre, mas sem ar mendigo, Nada mais esvelto, mais encantador! Veste-a d'oiro a glória do bom sol amigo... O chapéu é palha que inda há um mês deu trigo, A saíta é linho inda há bem pouco em flor!... E os dois bois enormes, colossais, fleumáticos, Na aleluia imensa, triunfal, da aurora, Vão como bondosos monstros enigmáticos, Almas por ventura d'ermitões extáticos, Ruminando bíblias pelos campos fora!... Ao arado e ao carro presos noite e dia, Como dois grilhetas, quer de Inverno ou V'rão! E, submissos, uma pequerrucha os guia! E nos sulcos que abrem canta a cotovia, As boninas riem-se e amadura o pão!... Levam as serenas frontes majestosas Enramalhetadas como dois altares Madressilvas, loiros, pâmpanos, mimosas, Abelhões ardentes desflorando rosas, Borboletas claras em noivado, aos pares... E eis no carro morto o castanheiro, enquanto Melros assobiam nos trigais além... Heras amortalham-no em seu verde manto... Deu-lhe a terra o leite, dá-lhe a aurora o pranto... Que feliz cadáver, que até cheira bem!... Musgos, liquens, fetos – química incessante! – Fazem montões d'almas dessa podridão... Já nesse esqueleto seco de gigante, Sob a luz vermelha, num festim radiante, Mil milhões de vidas pululando estão!... Sempre à fortaleza casa-se a doçura Como o leão da Bíblia morto num vergel, Do seu tronco ainda na caverna escura Um enxame d'oiro rútilo murmura, Construindo um favo cândido de mel!... Oh, os bois enormes, mansos como arminhos, Meditando estranhas, incubas visões!... Pousam-lhes nas hastes, vede, os passarinhos, E por sobre os longos, tórridos caminhos Dos seus olhos caem bênçãos e perdões... Chorarão o velho castanheiro ingente, Sob o qual dormiram sestas estivais? Almas do arvoredo, o seu olhar plangente Saberá acaso misteriosamente Traduzir as línguas em que vós falais?!... Castanheiro morto! que é da vida estranha Que no ovário exíguo duma flor nasceu, E criou raízes, e se fez tamanha, Que trezentos anos sobre uma montanha Seus trezentos braços de colosso ergueu?!... Onde a alma, origem dessas formas belas? Em tão várias formas que sonhou dizer? Qual a ideia, ó alma, convertida nelas? E desfeito o encanto, que nos não revelas, Que aparências novas tomará teu ser?... Noite escura!... enigmas!... Ai, do que eu preciso, Boieirinha linda, linda d'encantar, É dessa inocência, desse paraíso, Da alegria d'oiro que há no teu sorriso, Da candura d'alva que há no teu olhar!... Grandes bois que adoro, p'ra fortuna minha, Quem me dera a vossa mansidão cristã! Arrotear os campos, fecundar a vinha, E nos olhos garços duma boieirinha, Ter duas estrelas virgens da manhã!... E também quisera, mortos castanheiros, Como vós erguer-me para o Sol a flux, Dar trezentos anos sombra aos pegureiros, E num lar de choça, em festivais braseiros, A aquecer velhinhos, desfazer-me em luz!... 1889.
Aguarde...