ELMAR CARVALHO

 

 

Conforme já consta em registro neste Diário Incontínuo, alguns meses atrás adquiri um barco inflável, cujo nome de fábrica é Cheyenne. Comprei-o através da internet na loja virtual Submarino. Após duas curtas utilizações, no rio Parnaíba, sem nenhum acidente ou uso indevido, o barco descolou na parte que liga o seu fundo à borda, o que o tornou imprestável. Por meio de telefone, reclamei para a empresa vendedora, mas a Submarino limitou-se a dizer que como o problema ocorrera após sete dias do recebimento do produto não seria mais responsável em resolver o defeito surgido; que eu deveria dirigir a reclamação ao fabricante.

 

Achando pouco o teor de sua lacônica e inócua resposta, o atendente acrescentou que não estava autorizado a fornecer o nome e o endereço da fábrica. Como eu tivesse levado o barco para o Sítio Filomena, em Buriti dos Lopes, a trezentos quilômetros de Teresina, não pude verificar o nome e o endereço do fabricante de imediato (e nem obtive êxito em consulta internética).

 

Vários dias depois, quando pude examinar a nota fiscal e o manual de uso, constatei que o fabricante fica sediado em país estrangeiro e o telefone é internacional. Não encontrei o endereço eletrônico. Como não desejo aborrecimento, resolvi não ingressar com ação judicial contra as empresas fabricante e vendedora. O leitor poderá achar que sou acomodado ou resignado; não, eu sou apenas um cliente que não mais voltará a comprar na Submarino.

 

Em vez de pendenga judicial, tomei a decisão de comprar um barco de alumínio usado, que o meu pequeno motor de popa pudesse suportar. Com a ajuda de Natim Freitas, que intermediou o negócio, adquiri-o, inclusive com o reboque. Eu havia “batizado” o barco inflável como Tremembé, em homenagem aos índios que certamente perlongaram a Várzea do Simão na época de Mandu Ladino, que bem merecia ter seu nome estampado na pequena embarcação. O Natim sugeriu que o novo casco se chamasse Novo Tremembé, o que ensejaria se contasse a história do barco prematuramente avariado por defeito de fabricação.

 

Contudo, recordando a legendária falange persa de 10.000 homens, em que tão logo morria um guerreiro este era substituído por outro, de modo que o número se mantivesse incólume, de sorte que os componentes dessa infantaria de elite ganharam fama de imortais, resolvi manter pura e simplesmente o nome Tremembé, como se mantivesse sempre o mesmo barco, qual também na história em quadrinhos do Fantasma, que parecia imortal, pois o seu indumento e saga eram continuados por um filho, quando o herói atingia a velhice. Assim, poderemos afirmar que o Tremembé, como a mítica Fênix, renasceu, e há de permanecer em sua intrepidez e valentia com a continuação de seu emblemático nome em novo casco, desta feita mais resistente, já que metálico.

 

No dia 28 de dezembro, fizemos um passeio experimental, utilizando o casco de alumínio, que tinha o nome original e sugestivo de Encrenka. Segundo informações não confirmadas, esse designativo se devia ao fato de que um dos antigos donos era um tanto boêmio, e usava as pescarias como desculpas para driblar a marcação cerrada da esposa. Quando ela desconfiava de alguma coisa, era encrenca na certa, de forma que o nome era muito bem posto. Oportunamente o mestre Zico, flamenguista ferrenho e inveterado, pintará o seu atual e glorioso nome: TREMEMBÉ, que fará tremer eventuais adversários, piratas e corsários.

 

Fizemos a inauguração “oficial” no primeiro dia do ano em curso. O capitão de longo curso e larga cabotagem Natim Freitas pilotou a pequena nau com muita perícia, uma vez que na região dos tabuleiros litorâneos o Velho Monge se encontra muito largo e muito raso, o que sempre requer algum cuidado, apesar de o barco ser de pequeno calado. Graças à boa hidrodinâmica do casco, o pequeno e bravo motor deu conta da missão. Além do comandante Natim, fizemos parte da aventura eu, Francié e Chico Ribeiro, casado com a Graça, irmã da Fátima. Não obstante setentão, o Chico tem muita vitalidade, e subiu e desceu do barco com firmeza invejável.

 

Fizemos uma parada na margem que dá para a fazenda do general Antônio Lisboa de Freitas Diniz, uma vez que o Natim desejava conhecer a capela que fica perto da casa-grande. Em virtude de a ermida se manter quase sem uso, inevitavelmente se encontrava povoada por esvoaçantes morcegos. Ficamos à sombra de imensa árvore, a conversar com o caseiro.

 

Tive notícia de que o general Freitas Diniz, apesar de estar perto de completar cem anos, encontra-se lúcido e ativo. Foi amigo de meu sogro João Simão. É irmão do engenheiro civil Domingos de Freitas Diniz Neto, que exerceu o mandato de deputado federal em três vezes, tendo sido ainda secretário de estado do Maranhão. Teve Domingos papel importante no processo de redemocratização do país. Em minha juventude, conquanto à distância, admirei esse político maranhense, natural do município de Araioses.

 

Prosseguimos até a ponte do Jandira, de onde retornamos até a Toca do Velho Monge. No percurso da volta, atracamos o Tremembé numa das coroas de areia, onde tomamos um revigorante, demorado e gostoso banho. Lamentei a falta na tripulação do amigo José Pedro Araújo, escritor e historiador, que bem poderia ser o escrivão e cronista de nossa lúcida nave louca. Ele tem se proposto a ser apenas grumete, mas eu teria prazer em lhe passar o timão e o comando de nossa pequenina embarcação, que bem poderia também se chamar “cavalo do cão”, embora arrenegue tantas rimas em ão.