A  tristeza de  meu pai (16)                    

 

                                                                                                       Cunha e Silva Filho       

 

           Fala-se que o brasileiro é um povo  alegre,  brincalhão,  solidário e  possuidor de outras  qualidades  que o tornam  acolhedor aos  olhos dos estrangeiros. Talvez,  seja isso uma verdade  se considerada  no seu  sentido  absoluto,  geral,  coletivo.

           Entretanto, no  plano  pessoal,  íntimo,  acredito que  existam  muitíssimas exceções. Conheço pelo  menos  duas, a do  poeta   piauiense  Da Costa  e Silva (1885-1950), cuja  tristeza é comparada à tristeza do  próprio  rio Parnaíba, tristeza que, aliás,  se associa  ao sentimento da saudade,  se revela   muito forte  na sua  poesia: “Eu sou tal qual o Parnaíba: existe/Dentro em meu ser uma tristeza inata,/Igual, talvez, à que no rio assiste/Ao  refletir as árvores, na mata...” (Pandora,  seção “Sob  outros  céus”,  soneto IV, p.  242,   in: SILVA, Da Costa e. Poesia s completas. 2. ed., revista e anotada por Alberto da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Editora Cátedra/ INL/MEC/MEC, 1976).

         Segundo  Ronald de Carvalho (1893-1935), poeta, ensaísta primoroso e historiador literário,  falecido   precocemente em acidente   de automóvel,  “A alma brasileira nasceu de três melancolias”: da saudade  portuguesa, da “inquietação do terror do índio e da “queixa imensa  da sua humilhação..” (CARVALHO,  Ronald. Estudos brasileiros (Rio de Janeiro: Editora  Nova Aguilar S.A/INL?MEC., p. 75, 1976).  Ora,   se a saudade se manifesta  como  uma  feição da melancolia,  a saudade será um traço  romântico muito denso, muito  próprio a esse estado  de desejo ardente de alguma coisa, de se voltar  o sentimento  para a perda,  a ausência,  a falta,  a carência.  

          Típico do  sentimento   romântico  a tristeza  inunda  a alma  do  poeta  do século  19, sobretudo, mas invade  também  os séculos  posteriores ou  anteriores  ao  grande  movimento  que tem  seu foco  central e seu argumento  máximo  no dedilhar   de estados  d’alma, como  o spleen,  o  “mal do século,”  e principalmente,  como  costumava   afirmar, com voz e gestos  carismáticos, que  encantavam  seus alunos,   o meu  professor  de literatura luso-brasileira  no Liceu Piauiense, o  A. Tito Filho (1924-1992) a  “exaltação da subjetividade.”

        A segunda exceção desse sentimento de tristeza  me foi  manifestado  por meu  pai, Cunha e Silva (1905-1990) mais de uma vez, nos momentos em que,  ele e eu conversávamos  sobre  o mundo dos sentimentos  no ser humano. Lá me vem   ele  com esta confissão: “Sinto  meu filho,  às vezes o aguilhão de uma tristeza enorme que  me toma o corpo e o espírito a um só tempo”.  

       O pior é que não sei  explicá-lo  com palavras,  localizá-lo em alguma  ponto  da vida,  saber  o motivo  de sua   origem,  conseguir uma resposta   que me satisfaça  a fim de amenizá-la  um pouco”. Não lhe dava eu  nenhuma resposta  a essas indagações. Deixava que ele desabafasse.  Entretanto,  é possível  arriscar algumas  hipóteses tanto  para o caso  de  Da Costa e Silva quanto  para o de meu  pai.  

       Num e noutro vejo  uma das   explicações  por um lado  basicamente  de  viés  autobiográfico.  Por mais que  eu queira resistir a  não aceitá-la como  premissa,  na poesia dacostiana,  a saudade  tem não só um fundo   romântico, já referido no meu ensaio Da Costa e Silva: uma leitura da saudade.(Teresina: Academia Piauiense de Letras/Universidade Federal do Piauí, 1996)  -  contingente   derivado  tanto  da assimilação  de  sua expressão lírica,  quanto dos   elementos  individualistas  que poderiam conduzir a um extravasamento inócuo  do seu  estro.  

       O poeta da saudade soube conter-se  artisticamente   pelo distanciamento equilibrado    da sua  arquitetura formal, i.e.,  dos seus meios  retóricos   e estratégias de construção  estilística  a fim de  não cair  no  vezo  superado de poesia  “dor de cotovelo”  tão execrada  pelo  poeta  Carlos Drummond de Andrade (1912-1987) e outros   poetas  ditos  líricos mas  não contaminados  do puro  pieguismo comum  aos poetas  de menor  estatura   estética, recordando-se, para tanto,  que  Da Costa e Silva  poetava numa fase de transição  da poesia   brasileira    que  se  aproveitou  do  romantismo,   parnasianismo e simbolismo, sem mesmo   descartar   direções mais   progressistas ou   a formas  mais livres   de fatura   poética,  segundo  demonstrei  no meu  ensaio, talvez  pouco  conhecido dos meus leitores,  “Da Costa e Silva: do cânone ao Modernismo,”    in Geografias  literárias – confrontos : o local e o nacional.(org. Francisco  Venceslau dos Santos, com a colaboração  de Raimunda Celestina Mendes da Silva). Rio de Janeiro:  Editora Caetés, p.103-122, 2003.

       Outra hipótese  surpreenderia no fato de que  geralmente  poetas  e escritores  que  deixam a sua  terra natal e  conhecem outras regiões ou mesmo  países, voltando  ou  não  às  origens   locais,    não deixam de  experimentar  o sentimento  provocado  pela distância,   entendida  esta  como  espaço físico, sobretudo   representado  pela Natureza  que lhes era cara ao  temperamento  artístico,  às condições   mesológicas do seu rincão natal,   aos laços afetivos muito  sólidos, ao meio  cultural, à perda do convívio materno, relações  familiares,  ou de amizades perdidas no tempo. Isso se deu  com  Da Costa e Silva Junqueira Freire (1832-1855),  Gonçalves Dias (1823-1864),  Casimiro de Abreu(1839-1860).

       O primeiro, por  razões de  atividades   profissionais,   residiu em várias cidades  brasileiras e terminou  fixando-se em ,  Rio de Janeiro; os três últimos também  tiveram o seu tempo de “exílio” em longes  terras por motivos   diversos e, finalmente,  meu  pai, que também   teve seu  momento   de  poeta,  adolescente deixou  Amarante e foi estudar  em Niterói, no Colégio Salesiano, depois, no interior de São Paulo,  Lavrinhas,  Seminário  Maior  da  respeitada Ordem de religiosos   educadores, a  Salesiana.

      Era  destinado  pela família  a ser  padre, o que não  aconteceu. Mas,  ele,  da mesma forma,  sentiu  a dor do afastamento familiar, do desenraizamento   como  os  demais  citados.         Esse afastamento  lhe foi    doloroso, mas lhe trouxe  também alegrias. Ficou   dividido entre  o amor que sentia  pelo  Rio de Janeiro e o amor da  terra natal, Amarante. Terminou  estabelecendo-se  em Teresina, para onde foi  dar  continuidade à sua vida  de professor e jornalista, iniciada  em Amarante com muito sucesso  na carreira  de professor e jornalista.         

      Em todos  esses exemplos, em síntese houve  as consequências do   deslocamento,   no tempo e no espaço. Em todos eles,  seguramente   o componente  saudosista   se lhes  fincou  profundamente   na alma.  Aqui  entra a Arte,  expressa em  modalidades  diversas, sobretudo  na  poesia. No exemplo de meu pai,  começou a escrever  poemas,   na maioria. sonetos,  a partir dos  sessenta anos,  atitude  artística    que, segundo ele,   se deveu  “as amarguras da vida”.      

       É certo que em todas estas personalidades  literárias  há um traço  comum   que os une  : o sentimento da  tristeza, daquela  melancolia  inerente  à alma  humana que, por um motivo ou outro, foi  despojada de um  bem subjetivo tão necessário  à inteireza  e ao equilíbrio   do comportamento  do  indivíduo. Vou me demorar mais no meu  pai e  procurar   levantar  outras razões  para  explicar  a sua  tristeza  profunda   quando  no isolamento  talvez  do  seu lar,  ou , quem  sabe,  até  em meio  às alegrias  efêmeras do contato  social.      

      O espírito  humano  nunca  se  nos aparece  na sua   completude  moral,   social, afetiva,  religiosa ou de outra ordem natural ou metafísica.  No entanto,   é possível  desentranhar dele  alguns  pontos  de subjetividade   oculta, os quais,  estariam, a meu ver,  situados na sua formação    cultural,  na sua  atividade  profissional,  nos  diversos   acontecimentos  históricos  que   se foram somando  paulatinamente  no decorrer de sua existência.

        Por outro lado,  há um  ponto crucial  que  muito  pode  afirmar  sobre a origem de  sua  tristeza: é no plano  dos valores  estéticos e de sua visão filosófica,   do seu pensamento   sobre  a vida  social,  os homens,  a  política,   a aceitação   na sociedade,   o descontentamento  com   o comportamento  do ser  social.         Estes fatores   apontam  para uma  direção  que, para mim,   se inscreve  no  descontentamento  entre  o idealismo  da  subjetividade em luta contra   a injustiça social,  ou melhor ainda, contra a hipocrisia  que caracteriza  a vida  em sociedade.    

        Quando meu  pai   declara  em tom de amargura   que “não  troca a sua   dignidade  humilde pelos brasões  de  enfatuados  da nossa sociedade”, aí está  assumindo   uma   postura  geradora  da insatisfação,  do sentimento  de rebeldia  contra   outras  individualidades  que lhe foram  prejudiciais e   indignas  do seu   valor  e do seu merecimento.       Na realidade,  há uma somatório de  fatores determinantes da  eclosão  tão dolorosa  à alma  de uma  personalidade  forte  como foi a dele.

        A tristeza não é dialética, tem mais  a ver com   a interioridade  ferida e "malferida"  pelo outro, que não soube  compreendê-la ou  por ela  sentia   indiferença,  ou  inveja,  ou  ressentimento, ou  qualquer   espécie de  sentimento subalterno. A Arte,  seja em nível  elevado  ou  em menor  escala de valores,   é um ersatz  à tristeza, não uma solução,  não  uma    compensação, não uma maneira  de   recuperar  o  equilíbrio   da  alma  alegre, pura,  e  inocente  tão   própria  às fases da  nossa  infância, da juventude e da  mocidade.    

      Outras   hipóteses  poderia  ainda  levantar  para  o deslinde  desse sentimento   que,  de quando  em quando,  assaltava  a alma,  o coração  e o corpo de meu  pai, Cunha e Silva. Quem sabe,  algum dia  possa retomar  este  tema com  mais amplitude   e complexidade.