A TEMÁTICA HISTÓRICA DO CICLO DA BORRACHA

A TEMÁTICA HISTÓRICA DO CICLO DA BORRACHA

Foto de R Samuel



 

A TEMÁTICA HISTÓRICA DO CICLO DA BORRACHA


LUCILENE GOMES LIMA

Os índios trocavam, com os missionários portugueses, bolas, seringas ou borrachas por bugigangas. Os missionários haviam descoberto que a goma era útil para proteger seus pés da umidade excessiva e cobriam os sapatos com ela. Posteriormente, passaram a confeccionar os próprios sapatos da goma. Já em 1755, os calçados de borracha eram utilizados no Pará e em Lisboa. Aproveitou-se também a capacidade impermeável da borracha para confeccionar mochilas para os soldados portugueses. Após Charles Marie de La Condamine enviar para a França a primeira amostra da goma elástica, em 1735, iniciou-se o emprego industrial da goma na Europa. As exportações de sapatos e seringas pelo Pará datam de 1850. Além de objetos manufaturados, exportava-se também a borracha bruta.

Para que a goma pudesse oferecer o máximo de rentabilidade à indústria, foi necessário descobrir uma forma de torná-la resistente ao calor e ao frio e manter sua elasticidade inalterada. Através do processo de vulcanização, desenvolvido simultaneamente pelo inglês Thomas Hancook e pelo americano Charles Goodyear em 1844[1], isso se tornou possível. A partir daí, a borracha deixa de representar um pequeno comércio de manufatura, existente desde os tempos da colônia, e passa a ser uma matéria-prima requisitada pelo comércio mundial:


 

A procura intensiva que os mercados consumidores da Europa e da América passaram a fazer da borracha silvestre, ante a utilização cada vez maior por que ela se apresentava aos industriais, animando as solicitações pela alta dos preços que pagavam , deu um alento fora do comum à atividade coletora. Onde existia árvore produtora de látex, registrou-se a aventura. Nas Américas e na África. Ora, de todas as áreas onde se operava a exploração da floresta com aquele objetivo, a Amazônia era a que oferecia mais seguras e amplas possibilidades pela quantidade de seringueiras que parecia fabulosa pela riqueza que as árvores apresentavam em látex. A busca às seringueiras pareceu, em conseqüência, sem fim e negócio de possibilidades ilimitadas [...][2].


 

Os preços em alta da borracha no mercado internacional atraíram uma corrida à extração do “ouro negro”. As terras agrárias foram sendo abandonadas[3] em função da extração do leite das seringueiras nas regiões do Marajó, Xingu, Jary, Guamá, Acará, Moju, Madeira, Solimões, Purus. A extração do látex também se deu em terras da Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e Venezuela.

A falta de estabilidade na terra, o espírito aventureiro e arrivista que caracterizaram as relações econômicas no “ciclo da borracha” são, muitas vezes, apontados como falhas que levaram esse sistema extrativista da prosperidade econômica à derrocada. As bases que fundamentavam a lógica desse sistema, entretanto, não se apoiavam numa economia fixa e sim de transplante. A própria estrutura física dos seringais demonstrava que o negócio da borracha exigia apenas uma infra-estrutura primária que possibilitasse ao patrão ou seringalista dirigir o processo de extração do látex baseado numa contabilidade que atava o seringueiro ao trabalho. As condições de moradia do seringalista e do seringueiro eram improvisadas de modo que cumprissem seu papel no sistema extrativista. O tapiri do seringueiro não era exatamente uma moradia, mas o local de trabalho onde ele transformava, num processo rudimentar, o látex extraído das seringueiras em pélas de borracha. O fato de que o sistema não promoveu uma fixação à terra está na razão de seu funcionamento[4], pois se tivesse promovido essa fixação não teria se realizado da forma que se realizou e os próprios elementos que o integravam não teriam tido na pirâmide do sistema extrativo a posição que tiveram. Passaremos a explicitar essas posições a seguir.






[1] CF. Leandro TOCANTINS, Amazônia: natureza, homem e tempo, p. 98.


[2] Arthur C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 104-5.


[3] Sobre esse aspecto, Arthur Reis comenta: “[...] Todas as energias se deslocaram das tarefas agropecuárias para a extração do látex das héveas, num regresso vertiginoso à etapa por que se iniciara o processo econômico da região [...]” (Ibid., p. 41). Samuel Benchimol ressalta que, em virtude da febre do enriquecimento fácil, o ciclo da borracha não poderia promover estabilidade na terra: “[...] Homens à procura de fortuna, não à procura de terra. Daí a instabilidade, nervosismo, palpitação. É a borracha na sua função atrativa, fazendo ‘foco de apelos’ ou antes, dando ‘apetite de seringa’, na gíria do imigrante [...] (Romanceiro da batalha da borracha, p. 38).


[4] “As condições de acumulação e crescimento do capital na economia da borracha não foram potencializadas de modo a permitir um avanço da divisão social e técnica da produção. Esta, limitada pela concentração de interesses na monoprodução e pelo sistema de aviamento, apresentava-se num quadro insignificante e incapaz de transformar qualitativamente o padrão econômico [...]” (Eloína M. dos SANTOS, A rebelião de 1924 em Manaus, p. 31)