A TELEVISÃO DESRESPEITA O MAGISTÉRIO

Miguel Carqueija

 

            Há muito eu pretendia falar sobre isso. As “escolinhas” dos humorísticos do rádio e da televisão.

            Nos meus primeiros anos não havia televisão em casa, aliás pouca gente tinha, era uma novidade. Mas ouvíamos rádio e de forma constante, à noite, os programas de humor da Rádio nacional e da Rádio Mairynk Veiga. Recordo o “Balança mas não cai”, o “Vai da valsa”, “Tancredo e Trancado” e um pouco mais tarde, “Alarico Mala Sorte” e por fim a “Maré mansa”.

            Já naquele tempo, década de 50, existiam as “escolinhas”. Já por aí se nota a irreverência, a forma pejorativa de se referirem à escola. Havia por exemplo o Burraldo, um quadro de um dos programas. Era um aluno burro como o nome dizia, mas também debochado, e a professora vivia às turras com ele. Era uma docente mal-humorada, e parece que só interagia com ele e uma aluna. Tudo por conta de ser apenas um quadro dentro de um programa de tempo limitado. O que aumentava a inverossimilhança. A professora, além de zangada, limitava-se, que eu me lembre, a fazer perguntas. E sempre perdia a paciência com o Burraldo.

            Também naquela época já havia, no rádio, a Escolinha do Professor Raimundo, com o Chico Anysio. Tinha pelo menos uma coisa engraçada: a queixa do velho mestre: “Vai comendo, Raimundo. Quem mandou tu vir lá do Norte?” Aí pelo menos havia um sentido social, uma referência às más condições do magistério em nosso país. Futuramente, na televisão, o escracho desse quadro agora transformado em programa longo, seria total.

            O Burraldo acabou virando Burroso no programa que veio depois, o da Impecável Maré Mansa (uma loja patrocinadora).

            Diversas dessas “escolinhas” existiram portanto, no rádio e na televisão, e sempre depreciando os mestres. Até o cantor Sidney Magal virou “professor” numa escolinha de televisão.

            Mas o pior de tudo foi a decadência de um grande comediante e humorista (pois escrevia os textos), Chico Anysio. Eu lembro ainda com saudade do “Chico Anysio Show” que minha família assistia, creio que durava uma hora e mostrava um enredo de ligação por onde apareciam diversos personagens todos interpretados pelo próprio comediante, às vezes interagindo por trucagem com ele mesmo. Isto foi na década de 60 e era engraçadíssimo.

            Quando décadas depois virou coqueluche, na Globo, a “Escolinha do Professor Raimundo”, não pude deixar de pensar: ele agora é apenas isso? O programa tinha como atração a presença de comediantes famosos e veteranos, como Walter Dávila, Orlando Drummond e Brandão Filho. O personagem da velha “Praça da Alegria” de manoel da Nóbrega, o Zé Bonitinho, aparecia com seu criador, Jorge Loredo, já bem idoso.

            A decadência, porém, era total. Os alunos não respeitavam o professor, eram debochados, por vezes espalhafatosos, falavam asneira atrás de asneira, e o mestre não dava aula, limitava-se a fazer perguntas aleatórias, sem seguir nenhum programa. Não ia ao quadro, embora ele estivesse visível na parede. Dava frequentes notas zero para respostas idiotas, mas não se dá nota para perguntas e sim para provas escritas ou orais, o que não se verificava. E pior ainda, as piadinhas eram geralmente de sexo sujo. E com palavrões mal disfarçados. Por exemplo, o aluno “Seu Peru” (sic), interpretado pelo veterano Orlando Drummond, com frequência dizia que estava “porraqui” com isso ou aquilo. E parafraseando uma frase popular naquele tempo, tinha alguém que falava “beijinho beijinho, pau pau”.

            Com tudo isso, a “aula” era balbúrdia e zombaria do princípio ao fim, partindo da premissa de que professor não dá aula e aluno não estuda. Mas a própria estrutura da “escolinha” era absurda. Não se sabe o que aquela turma estudava, pois todo mundo era adulto, burros velhos como se costuma dizer. Não havendo programa escolar nem aula, mas apenas sabatinas aleatórias, aquela gente estava lá para que? Que espécie de diploma poderia haver?

            Alguém pode objetar que eu estou levando muito a sério, era apenas um humorístico, e não haveria outro meio de fazer humor, se houvesse aula propriamente, daí apenas as perguntas. Ora, isso não dá para engolir. Vejam bem: sempre foi possível colocar humor em histórias passadas em ambiente estudantil, mas elas não podem se passar apenas na sala de aula. Um exemplo é a obra-prima de Walt Disney, “O professor distraído”, de 1961, com Fred Mac Murray. Outro exemplo é o desenho de longa-metragem “O diário da Barbie”.

 

            Chico Anysio se foi, como quase todos aqueles comediantes, mas a Globo ressuscitou a apelação com um ator mais jovem no papel do Professor Raimundo, outro como o Zé Bonitinho, e não sei o que mais aparece. Nem sei os nomes dos atuais artistas (?), mas sei que o esquema continua o mesmo: imoralidades, deboches, ausência de enredo inteligente. Só deboche.

            Eu não entendo porque razão não se vê, da parte de representantes do magistério, protestos contra esses insultos à categoria. O achincalhe é notório e inegável. Os professores já sofrem demais com o sistema, não merecem esse tratamento por parte da televisão.

 

 

Rio de Janeiro, 27 de outubro e 11 de novembro de 2020.