(Miguel Carqueija)

Falemos de um dos mais importantes livros do século XX: "1984", de George Orwell (artigo redigido em 2008, no 60° aniversário do romance)

Á SOMBRA DO GRANDE IRMÃO
                                                                    


     Há sessenta anos um homem tuberculoso lutava contra o tempo para completar a obra da sua vida: um romance definitivo, que marcaria época na literatura mundial e que, independentemente disto, representaria uma mensagem indelével para a consciência da humanidade. “Nineteen eighty-four” (“1984”), do ficcionista inglês George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair), é um grande exemplo de distopia, isto é, de utopia negativa, com previsões pessimistas sobre o futuro da sociedade.
     Nesta família literária encontram-se livros de Aldous Huxley, como “Brave new world” (“Admirável mundo novo”) e “Ape and essence” (“O macaco e a essência”), um notável romance russo intitulado “Nós”, de Evgeny Zamiatyn (obra escrita na época stalinista e que precisou ser contrabandeada para a França), “The space merchants” (“Os mercadores do espaço”), de Frederik Pohl e C.M. Kornbluth, “The rebellers” (“Os rebeldes”) de Jane Roberts e, no Brasil, “Três meses no século 81”, de Jeronymo Monteiro.  
     A distopia mostra uma distorção, um desvirtuamento da sociedade futura, geralmente através do totalitarismo nas diversas formas que pode adquirir. Todavia, dificilmente se pode deparar com uma obra tão bem escrita e tão convincente em sua tenebrosa mensagem, como “1984”! George Orwell era um perfeccionista, e tudo em seu magnífico romance se encaixa e flui com facilidade, configurando um esquema bem arquitetado daquilo que, na visão de 1948, poderia acontecer nos próximos anos.
     Conflitos atômicos ocorreram nos anos 50 e 60, destruindo as formas tradicionais de governos e organizações sociais. Revoluções de fundo bolchevista, porém derivando para algo mais extremado ainda, derrubaram os poderes então existentes e impuseram uma nova ordem, estabelecendo um equilíbrio perpétuo entre as três grandes potências emergentes: Oceania (abrangendo as Américas, a Grã-Bretanha, África do Sul, Austrália e algumas terras do Pacífico), Eurásia (Europa continental e grande parte da Ásia, com a Sibéria e diversos territórios) e Lestásia, com a China e alguns satélites como a Mongólia e países do sul do continente. Através da guerra contínua e sem perspectiva de um fim, e limitada aos territórios sob disputa (principalmente na África e Ásia) as três ditaduras conservam as massas submissas e patrióticas, objeto de intensa lavagem cerebral através das teletelas, televisões de mão dupla, que espionam as vidas dos indivíduos.
     Existem várias classes no mundo de “1984”: os membros do Partido Interno, ou seja, a aristocracia dominante, com seus privilégios e seu poder sobre os demais; o Partido Externo, cujos membros equivalem a uma sacrificada classe média; e os proles, isto é, os proletários, que moram nos bairros pobres e em geral nem possuem teletelas, vivendo uma vida miserável mas sem estar sujeitos ao controle imediato de seus gestos e pensamentos. Correndo por fora existe a temida Polícia do Pensamento, que parece configurar um poder à parte.
     A trama se desenrola através do ponto de vista de Winston Smith,  um obscuro funcionário do Ministério da Verdade, que passa a vida refazendo notícias do “Times”, obedecendo ordens superiores e cuja exata origem nunca é identificada. A história antiga ou recente é constantemente modificada para se adequar às diretrizes de um Partido que se julga infalível e que é chefiado pelo misterioso Grande Irmão, em torno do qual se impõe um culto de adoração mas que, pelo que se deduz, nem sequer existe. O Grande Irmão, o venerado líder de Oceania, é visto em grandes retratos espalhados por toda parte, mas nunca aparece em público e seus discursos são escritos por funcionários, até mesmo por Winston, que no fundo detesta aquele mundo decadente, onde se come mal, se bebe mal, se veste mal, se mora mal. Lembranças de um passado obscuro, de tempos melhores que se perderam, perseguem Winston. Sonhava às vezes com a mãe, que desaparecera no fragor da revolução.

     “Não podia lembrar-se do que sucedera, mas sabia no sonho que, de um modo ou de outro, a vida de sua mãe e de sua irmã tinham sido sacrificadas pela dele. Era um desses sonhos que, embora retenham o cenário onírico característico, são a continuação da vida intelectual do indivíduo, e no qual toma conhecimento de fatos e idéias que mesmo depois de acordar ainda parecem novos e valiosos. A coisa que agora impressionava Winston de repente era que a morte de sua mãe, quase trinta anos atrás, fora trágica e tristonha, de um modo que não seria mais possível. Ele percebia que a tragédia pertencia ao tempo antigo, em uma época em que havia ainda vida privada, amor e amizade, e em que os membros de uma família amparavam uns aos outros sem indagar razões. A lembrança de sua mãe magoava-lhe o coração porque ela morrera amando-o, numa época em que ele era criança e egoísta demais para corresponder-lhe e porque, de certo modo que ele não recordava, ela se sacrificara a uma concepção de lealdade particular e inalterável. Ele via que tais coisas não mais podiam acontecer. Hoje o que havia era medo, ódio, dor, porém nenhuma dignidade de emoção, nenhuma mágoa profunda ou complexa. Tudo isso lhe pareceu ver nos grandes olhos de sua mãe e sua irmã, olhando-os através da água verde em que afundavam centenas de braças abaixo de onde ele estava.”


     Tudo havia mudado, de fato, até a linguagem que aos poucos ia sendo desconstruída para um dia ser inteiramente substituída pela “Novilíngua” onde pensamentos contrários à ideologia do Partido não poderiam sequer ser expressos.
     Nesse mundo de pesadelo, Winston encontra Julia, uma jovem que, como ele, despreza o Partido e toda aquela opressão. Eles tentam vivenciar um amor clandestino em meio às trevas dominantes. Afora Winston, Julia e O’Brien, membro do Partido Interno, quase não há personagens importantes na trama: há os conhecidos (pois já não existiam verdadeiros amigos) de Winston, como Parsons, que vão aos poucos sendo “vaporizados” (eufemismo para sua eliminação) por conta de suas “crimidéias” (no jargão do Partido, equivale a delito de opinião) mesmo imaginárias. Parsons, por exemplo, fora denunciado pela própria filha de sete anos, que o escutara balbuciar dormindo qualquer coisa contra o Grande Irmão – e o testemunho da criança, condicionada a espionar os próprios pais,  ´
     Orwell construiu, enfim, um mundo fechado em si mesmo, estagnado social, cientifica, cultural e tecnologicamente, materialista e violento, com os dissidentes – ou assim considerados, pois bastava um nada para cair em desgraça – sendo tratados com a maior brutalidade e recondicionados. Na verdade, um lancinante apelo à consciência da Humanidade, para que não permita que aquele mundo se torne realidade. E, como seria de esperar, os donos de tal mundo pretendem que o seu sistema seja eterno.
     As novas gerações não devem deixar de ler este livro que não perdeu um átomo de sua atualidade e que é uma das mais importantes obras literárias do século XX.