A rua Arlindo Nogueira

[Cunha e Silva Filho]

Uma vez, na tentativa de fazer poesia, a chamei de “rua da adolescência”. O curioso é que essa rua tinha a sua entrada principal pela Rua São Pedro. Entrada com murinho. A porta, uma espécie de hall a céu aberto. Não se ornava de um belo jardim, desses que os ingleses tanto prezam e deles cuidam com alma e corpo, provavelmente seguindo monarquicamente os princípios de desvelo, de amor e proteção manifestados no provérbio ”My home is my castle.” 


No entanto, aquela entrada, na prática, desviava-se de sua função, que seria o lugar de atender às pessoas ou visitantes que por ali surgissem.


Não, a verdadeira ”entrada” dava-se pela Rua Arlindo Nogueira, rua simpática não tão estreita, porém longa que, do lado da zona sul, se estendia por muitas esquinas até se perder do meu alcance.


Para o lado em direção à zona norte, ela se prolongava até praticamente a Praça do Mercado Novo, local em que havia residências, a Faculdade de Direito, o Colégio Demóstenes Avelino, do professor Felismino Freitas Weser e, nessa direção, até chegar àquela praça ou largo, eu passava pela lado lateral do Colégio das Irmãs, onde minha mãe, estudou na infância ou adolescência. Algumas vezes, de manhã, me dirigindo ao Mercado Novo, me deparava com o jornalista e o escritor Carlos Said. Batíamos um papo até ao Mercado. Não sei se ele lembra deste pormenor: 


A entrada pela Arlindo Nogueira tinha uma porta que dava de imediato para uma ampla varanda, onde mamãe dispunha os móveis de sala. O piso não era de taco, mas de tijolinhos. Me recordo de que taco só havia na casa de meus amigos endinheirados, os chamados meninos de primeira, assim como geladeira, telefone e outras utilidades do conforto da época.


Um fato de vulto é que, naquele tempo, meados dos anos 1950, a porta principal da casa permanecia aberta durante o dia, a não ser quando não se deixava ninguém em casa.


A casa era ampla, compreendia quatro quartos e ainda tinha um quarto de tamanho razoável que dava para duas ruas, a São Pedro e a Arlindo Nogueira. Sobre a importância desse cômodo para os meus estudos, fiz referência em páginas anteriores. A casa era alugada de um conhecido de papai, gente de Amarante.


O que havia de melhor da casa eram os dois quintais, separados um do outro por um muro com uma entrada. Daí que, vendo os dois quintais do lado da Arlindo Nogueira, concluía-se que a casa exibia um muro bastante comprido.


A construção para a época era sólida, bem pintada por fora e por dentro. Se podia afirmar que era uma casa bonita e acolhedora. Me ia esquecendo de que havia, no primeiro quintal, um pé de árvore, não sei se de goiaba, não me lembro mais. 


Tudo está tão longe na memória! No segundo quintal, me lembro de que o terreno era bom para se plantar, por exemplo, milho. E, uma vez, plantou-se milho que cresceu bem.


Nesse segundo quintal, mamãe colocava algumas galinhas, que se escondiam pelo mato pequeno em torno. Havia, ali, um dado que me serviu de balizamento entre a infância e o desenvolvimento da adolescência. O muro, que dividia os quintais, usava muitas vezes para saber o quanto tinha crescido. Ficava feliz quando minha cabeça, encostada ao muro, me indicava que estava mais alto do que o muro, mas não tanto. Era um gesto simbólico que me dava prazer de me sentir já rapazinho crescido, ultrapassando o muro.


Era isso o sinal da passagem do tempo e das mudanças físicas e intelectivas. Me sentia radiante constatando que minha altura excedia a do muro. “Meu Deus, estou crescendo, vou deixar de usar calça curta. Os hormônios fervilhavam com toda a força da idade e dos sentidos da carne. 


O que mais me marcou durante o tempo em que morei naquela casa era uma janela de um dos dois quartos que davam para a Arlindo Nogueira. Essa janela se confunde com a minha passagem da infância para a adolescência. Ela, com o tempo que ali passei, se me tornara uma forma de ver, quase todo dia, depois de voltar da escola, a rua.


Na Rua Arlindo Nogueira, por algum tempo, exatamente na parte da extensão da minha casa, costumavam os meninos de minha idade jogar peladas. Às vezes, me convidavam para participar do jogo. 


Eu era um desastre como jogador a ponto de mamãe, muitos anos depois, comentar que, por qualquer pancada que levasse numa das canelas, eu saía quase gritando de dor, desistindo da partida e entrando correndo para casa. Estava com uns doze ou treze anos no máximo. Não gostava de que minha mãe me recordasse tal comentário, sobretudo na minha presença, na presença de irmãos e de outras pessoas.

 
Nada me agradava mais do que ficar olhando para a rua e ver a passagem das pessoas no vaivém dos transeuntes, dos carros, carroças, vendedores de rua, sobretudo das cuscuzeiras. Ó famosas cuscuzeiras de Teresina! 


Anunciavam, na rua, de manhã, o inimitável cuscuz, feito com aquele sabor delicioso, cujo segredo do preparo guardavam a quatro chaves. Ainda que gostasse do cuscuz de mamãe, é lícito confessar que ninguém o podia fazer da forma como faziam aquelas mulheres, vestidas com muito asseio, nos seus trajes brancos. Quanto me fascinava o cuscuz daquelas vendedoras de rua, assim como a papai, a mamãe e a todos os meus irmãos! 


Quando aquelas mulheres traziam, equilibrando o tabuleiro nas rodilhas das cabeças, o gostoso cuscuz teresinense, sentia que tudo virava alegria, sentia o sorriso da vida desabrochando do meu ser púbere e cheio de energias: “Olha o cuscuz! Olha o cuscuz! – gritavam elas certas de que a vizinhança iria comprá-lo em talhadas branquinhas como neve, quentinhas, saborosas. Mas, não se confunda esse cuscuz teresinense com o baiano.


Ele é feito de massa de arroz ou de milho, temperado com água, sal e comido especialmente no café, servido com manteiga. Esse cuscuz é irresistível. Não contém coco e tapioca, como o da Bahia, que não chega aos pés do de Teresina. “Mamãe, por que a senhora não faz o cuscuz do jeito das cuscuzeiras da rua?” - indagava o rapazinho. “Meu filho, elas têm uma segredo que não passam a ninguém”.


Esse segredo - é claro – não poderiam revelar, pois dele dependia o gosto maravilhoso da textura, da aparência, da forma de preparo, da quantidade de sal necessária ao sabor especial. Não sei mais se ainda em Teresina se veem essas mulheres do cuscuz, verdadeiras fadas que preparavam o mais gostoso cuscuz do mundo.


Da janela da Arlindo Nogueira aprendi a ver as meninas mais lindas de Teresina e não me intimidava lançar-lhes um olhar mais ousado. As meninas que passavam pela Arlindo Nogueira hoje são senhoras sessentonas, bem ou mal casadas, avós e talvez agora mais cuidando de netos. Como era bom trocar olhares com algumas delas que me correspondiam ao sorriso ou até a algumas palavras de galanteios! Por isso, ao ir para a “minha” janela, me esmerava na aparência.


A janela funcionava também como uma forma de eu observar uma variedade de pessoas que pela rua transitavam, geralmente de volta do trabalho para as suas casas Gente de todas as idades. Alguns rostos já se me tornavam conhecidos. Algumas me cumprimentavam, outras, não. Eu, porém, as conhecia.


Sempre fui uma pessoa que mais observava os outros do que os outros provavelmente me notassem, pelo menos no meu entender. Gosto de olhar como as pessoas são, no físico ou no que me transmitem espiritualmente. Muitas vezes, ao olharmos para alguém, somos mal interpretados.


Pessoas há que até criam situação embaraçosa: “Por que está olhando pra mim?” Um vez, dentro de um elevador no centro do Rio, fui vítima de um constrangimento desse tipo. E era num dia em que me encontrava bem feliz com o mundo. Essa energia positiva quiçá possa ter incomodado alguém de mal com a vida ou mesmo posso ter me defrontado com um psicopata.

NOTA:

(1) Tradução: “O meu lar é o meu castelo.”

(DO MEU LIVRO "APENAS MEMÓRIAS")