[Maria do Rosário Pedreira]

Diz-se frequentemente que toda a literatura é autobiográfica, mas até onde podem ir os que se dedicam a ela quando inscrevem nos seus livros factos, personagens e circunstâncias reais, sobretudo contemplando aqueles que lhes são próximos? Bastará mudar os nomes das pessoas para que as personagens não possam ser identificadas com amigos, inimigos e parentes do escritor? Na Noruega, um ficcionista resolveu compor um romance épico de centenas de páginas sobre a sua vida e a da sua família que, como todas, possuía os seus podres, entre o pai sádico e a avó alcoólica ou a primeira mulher constantemente em depressão. Enquanto o escrevia, mostrou algumas partes à mãe, que o aconselhou a parar por ali ou, pelo menos, a esconder os nomes verdadeiros. Mas Karl Ove Knausgaard não aceitou a sugestão e, quando por fim foi dado à estampa Min Kamp (uma paródia ao título da obra de Hitler), o romance vendeu 450 000 exemplares por causa da polémica que o rodeou – mas, claro, a família nunca mais lhe dirigiu a palavra e até a segunda mulher declarou não poder continuar a viver com um homem capaz de contar todos aqueles horrores sobre os próprios parentes. O autor aceitou, dizendo que de facto ele fora recompensado, mas era sobre os outros que recaíra o achincalhamento. Também em França, a romancista Christine Angot, conhecida como a rainha da ficção-choque, usou uma ex-namorada do parceiro como personagem de um dos seus livros (Les petits) e, apesar de lhe ter dado outro nome, a visada sentiu-se de tal modo identificada e afectada que lhe pôs um processo em tribunal, alegando que o romance lhe estragou a vida e que tentou inclusivamente matar-se por causa dele. E o juiz acabou por lhe dar razão e obrigar a escritora a indemnizá-la. Poderá toda a escrita ser assim tão autobiográfica?