NOTA: O TEXTO ABAIXO  FARÁ PARTE DO MEU LIVRO 

                                                                            Cunha e Silva Filho

Aproveito-me  de uma pequena  e arguta observação de Milan Kundera,  conhecido  ficcionista de A insustentável leveza do ser, extraída de uma releitura de um  precioso  livrinho de Samira Chalhub, A metalinguagem. Está no capítulo 7,  Col. Princípios, p. 64. Kundera  O que, me interessa por enquanto aqui é  o seguinte: (...) O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração  do que é a vida humana. (...)

Este trechinho, que usarei  como mote das minhas considerações,  de alguma maneira  pode atender a especulações  teóricas concernentes  ao autor empírico, aquele com registro civil em cartório,  o homem de carne  e osso, que elabora um romance ou um poema, ou uma crônica, ou uma peça teatral, enfim, uma obra de arte, de maior ou menor grau   na qualidade artística. Porém, o que me diz mais de perto nesta discussão é a questão  de se poder vincular o autor de um texto crítico à sua produção  O que me instiga como  especulação é saber se o autor crítico pode ser desvinculado de determinado texto de cunho  ensaístico, ainda que o último  seja permeado  do discurso  polêmico sério-irônico.

 A minha hipótese de trabalho dirige-se  particularmente para a questão de defesa  de perspectivas de um trabalho,  cuja autoria  se vê  objeto de uma  leitura   por parte de outro autor   que, pela natureza de seus comentários ou análises, poder-se-ia   classificá-lo como  crítico, não importando  o nível de  grandeza  ou não  das ideias.

A minha tese neste particular inclina-se a considerar o  componente  pessoal,  biográfico,  como aliado no jogo do debate sempre que seu autor julgue  estar sendo  injustiçado quanto às ideias e  tomadas  de posições  teóricas que lhe pareceram plausíveis no momento da escrita de um trabalho acadêmico. O caráter da polêmica se torna mais acirrado na medida em que o autor atacado julgue impertinentes  ou mal compreendidas as ponderações de um leitor  tomando-se em conta o contexto  e o tempo da escrita de  seu estudo.

Como separar autor e obra de conteúdo teórico no momento em que a pessoa física do autor se comporta  filosoficamente dentro de uma unidade de causa e efeito de um objeto provocado pelo mundo interior  do autor, do seu  universo intelectivo, afetivo, emocional, de sua  formação intelectual   e aprendizagem e até mesmo de suas implicações   geracionais?

 Uma obra não é um produto espontâneo, e principalmente um ensaio não é um artefato ficcional, no qual o expediente artificial da figura do narrador inventado pelo  escritor  sente-se livre   para dar asas à  imaginação. O autor empírico não é uma  “criatura-texto” (op. cit., p. 65). A estrutura do ensaio, assim como  o seu  derivado, a polêmica,  em absoluto pode sofrer a clivagem da pessoa do autor e  do seu pensamento especulativo, mesmo que este resvale para o campo  da emulação e do tom  sério-irônico.

Tudo vai depender da  gravidade  da situação  que se criou  à revelia do autor. Tudo depende do como fazer,  do como dizer, do tom  enunciativo, da semântica  empregada ao lidar  com  um texto de natureza  teórica, ainda que este  não atenda às expectativas de  determinado  leitor.  Resenhar  um texto exige certos protocolos de leitura. Um simples comentário feito  às pressas e  com pretensões por vezes   doutorais não passa de um  enunciado falho e injusto. É preciso saber generalizar, é preciso saber usar dos registros  linguísticos  adequados e  que não resultem em  ruídos na comunicação, sobretudo da parte de quem lê textos literários e mais ainda textos teóricos. 

Lembremo-nos daquele sermão de Vieira no qual o grande orador sacro  discorre sobre a relação de  contiguidade da parte e do todo, uma lição de filosofia e de argúcia de argumentação  barroca. Por conseguinte, o autor e a sua pessoa civilmente considerada, dentro de certas situações emocionais ligadas a constrangimentos  de fundo  desvalorativo e com implicações  graves de auto-imagem, e não sendo ele tampouco um monge budista ou um São Francisco de Assis,  só poderia  recorrer  ao recurso,  nem sempre bem-vindo,  da autodefesa que, no campo da história  literária, se convencionou chamar polêmica.