A poesia pungente de "Céu ausente"
Por Décio Torres Cruz Em: 28/11/2024, às 17H08
A poesia pungente de Céu ausente
Décio Torres Cruz*
Céu ausente (2023) é o título do primoroso livro do escritor baiano Gustavo Rios. Composto de 13 contos (e dois “epílogos”) escritos com bastante esmero, esta coletânea revela um escritor seguro que domina a arte narrativa com muita firmeza e elegância. Rios constrói histórias emocionantes e surpreendentes que cativam o leitor do início ao final da leitura.
Publicado pela prestigiosa editora pernambucana Cepe, os contos “revelam uma intensidade narrativa que chega a ser perturbadora”, como descreve o painel “Leia + livros” da UOL. Com um estilo bastante inovador, considerado pela Revista Algomais como “cortante, limpo, direto, de uma concisão perversa e ambígua”, o autor atrela seus personagens, demasiadamente humanos e sofridos, à pequenez de uma vida mesquinha, num cenário social bastante seco para, daí, extrair o âmago e a beleza de seu interior.
Em entrevista a Jussara Azevedo em Diversos Afins, Rios revela que o título do livro que foi dado a um dos contos surgiu de um poema dele próprio cujos versos ao final dizem: “(…) a beleza passa longe / desse céu ausente / de gaivotas.” E, reforçando a interpretação dada ao título pela entrevistadora, reconhece que "Céu ausente significa, sim, que em alguns momentos nada poderá nos salvar. Que estamos à mercê e que andamos imunes a quaisquer transcendências ou redenções", mas este não é exatamente o mote do livro que possui temas e estilos diversos.
Os temas variam bastante: amor encontrado num parque, mulheres que amam, lembranças, memórias, infância, casamentos fracassados, chuva, divórcio, encontros, medo, solidão, um breve romance, sexo, tédio, tempo, o filho pródigo, a tentativa de James Brown de decifrar um pesadelo, uma pessoa se descobrindo numa noite de chuva e o reencontro de um casal no Japão. E tudo isso é apresentado ao leitor com muita verdade e poesia, como nesse trecho de “Mais ao sul” que abre a coletânea e estabelece o mote da repetição da vida:
“Ainda hoje lembro o medo, a voz de nosso pai ao despertar: éramos três a machucar a terra antes do Sol. Como não desejar outra vida? Logo eu que sempre fui o avesso, a agonia que brotava na insônia, o casulo. Repetíamos o dia anterior no seguinte. O pouco para nos manter em pé, levantar da cama, lavar o rosto e seguir…”
Destaca-se, ainda, a potência de sua linguagem poética que sobressai em sua narrativa, gerando um grande prazer estético em nossa leitura, como podemos perceber nestes dois trechos:
"O esquecimento repentino: era isso. Até mesmo o medo que vinha do outro, oponente ou não, aceitaria como seu. Tudo para não perder o rastro dos dias, a imagem, o rosto da mãe com olhos aflitos na porta de casa toda vez que ele retornava sem lembrar como. Uma criança perguntando o que teria acontecido com a manhã agora dissolvida num clarão sem fim." ("O encontro")
"Pareciam fluir, mesmo com os abismos dentro de ambos -- a cordilheira onde se perdem as certezas e se adquire a coragem para seguir. Ser o sonho do outro, de si mesmo." ("Japão")
O lirismo também se apresenta de modo sucinto em sua linguagem direta, quase telegráfica, estilo Hemingway, em frases curtas que descrevem o ambiente como numa cena de uma peça teatral onde os participantes da tragicomédia humana descobrem os sons do silêncio perdidos na inutilidade da fala:
"Ambos percebem a inutilidade das falas. Não reconhecem as próprias vozes. Como se estivessem esquecido o texto e a marcação do tablado (os espectadores resfestelados em suas poltronas: velhos que bocejam, senhoras que cruzam as pernas numa inquietação pavorosa; as respirações intrigadas). Seguem calados e aflitos. O mundo agora equívoco e fatalidade." ("Céu ausente")
A excelência do texto de Rios é comprovada pela repercussão que sua escrita tem alcançado. O livro já possui várias resenhas que se encontram online e destacam a originalidade e a poesia de sua linguagem. Além das já mencionadas, encontramos a de Maurício Melo Júnior para a “Revista Rascunho”, que soube traduzir de modo magistral a pujança da linguagem do autor. Seu texto, bastante detalhado, ressalta a estética inovadora, encantatória e envolvente e a elegância com que o autor conta as histórias de forma muito bem contadas. Ele descreve o livro como “Tragédias cotidianas” compostas “por personagens degradadas, homens e mulheres que perderam, há muito, qualquer esperança”. Relaciona a poética de Gustavo Rios àquela de Dalton Trevisan no que se refere à degradação do ambiente que apresenta personagens desesperançados. Segundo Melo Junior, Rios renova e revisa este universo atravessado por uma estética moderna, já que “as dores são as mesmas, mas o olhar e as provocações são novos” assim como novo também é o ambiente. Melo Junior também realça a decadência da classe média urbana, comparando a temática de Rios àquela de Lúcio Cardoso e Hermilo Borba Filho e menciona o desespero ante a impossibilidade de resistência da eterna repetição da vida como dias que se sucedem ininterruptamente. E em sua coluna do Tag Nerd, Amanda Carolina descreve o livro como uma “narrativa intrigante” com “uma verdade crua, bem descrita, com doses homeopáticas de identificação”.
O que acrescentar? Após a contundente dissecação do universo de Céu ausente por esses autores resenhistas e após sermos encantados pela magia da poesia em prosa de Rios, resta-nos, apenas, a tarefa de recomendar sua leitura urgentemente. É um dos livros mais belos e bem escritos que tive o prazer de ler ultimamente e que merece ser lido, estudado em escolas, reconhecido e premiado. A coletânea encontra-se disponível no site da Editora Cepe em versão impressa e em e-book. Mãos à obra, literalmente!
Gustavo Rios - Foto: Solange Valladão (Fonte: Diversos Afins)
Sobre o autor
Nascido em Salvador (BA), Gustavo Rios é autor dos livros de contos O amor é uma coisa feia (7Letras, 2007) e Allen mora no térreo (Mariposa Cartonera, 2015). Também escreveu o livro de poesia Rapsódia bruta: poemas e outras brutalidades (Mariposa Cartonera, 2016) e participou das seguintes coletâneas: Tempo Bom (Iluminuras), As Baianas (Casarão do Verbo), além da Revista Confraria (Confraria dos Ventos). Entre os anos de 2008 e 2009, Rios participou do coletivo C.O.R.T.E. com outros escritores baianos, realizando diversos “rockcitais” (alguns disponíveis no YouTube) com a Pastel de Miolos, banda punk e hardcore de Salvador.
* Escritor membro da Academia de Letras da Bahia e da Academia de Letras de São Paulo. Autor, dentre outros, de A poesia da matemática (2024) e Histórias roubadas (2022).