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A escrita se constitui no atrito com o instante, na luta às vezes árdua para povoar o vazio.
João Gilberto Noll
Escrever, como qualquer ato humano, deveria ser, antes de tudo, um ato de amor. Um processo no qual se traz para o concreto – uma folha de papel ou a tela do computador – o que antes só existia no plano mental. Trata-se, portanto, de um mundo rico em possibilidades, pois permite que se viva várias e diferentes vidas, com a certeza de que sempre poderemos voltar ao nosso verdadeiro eu. Como a fantasia faz parte desse universo, ela se transforma no combustível necessário para que novas descobertas e experiências possam ser compartilhadas.
No entanto, o mundo das palavras é árido, pois exige daqueles que nele ingressam humildade, paciência e acima de tudo disposição para o assassinato. No mundo das palavras não se pode ter medo de matar.
Matar a palavra mal escolhida. Trucidar a frase mal escrita. Eliminar, riscar, excluir, são ações que não devem ser a causa de qualquer temor. Quem escreve torna-se um assassino de si mesmo. Além disso, o sagrado não existe quando o assunto é a escrita. Ao contrário. Tudo o que é sagrado torna-se intocável, e a palavra deve ser sempre sinônimo de mudança e transformação. Portanto, é preciso dessacralizar para que a palavra tenha o espaço necessário e suficiente para nascer.
Por outro lado, no mundo das ideias, infelizmente, toda a palavra parece ser bem nascida. Todavia, basta ela se deparar com a folha de papel e a leitura atenta para sabermos se ela, na realidade, conquistou o direito de continuar vivendo. A palavra mal nascida não se sustenta. Assim, será preciso criá-la e recriá-la, cem, mil, um milhão de vezes até que ela prove a sua capacidade de existir sem subterfúgios ou artifícios.
Fernando Sabino dizia que o ato de escrever era muito difícil e penoso. Havia sempre a necessidade de corrigir e reescrever várias vezes, a ponto de serem aproveitadas pouco mais de 300 páginas em 1100 escritas. Logo, teimar em manter viva a palavra mal nascida é um crime, não só contra quem a vai ler, mas também contra quem a criou. Se todos aqueles que dizem respeitar a palavra usassem o rascunho com maior frequência, talvez não nos deparássemos com tantas frases – e até textos inteiros – prontas para o suicídio. E aqui não estou me referindo apenas a estruturas ou regras linguisticas, mas também a conteúdo.
Não há delito maior do que o uso e abuso de clichês. Não há maior tragédia do que um texto vazio de ideias, no qual o autor navega em águas rasas, sem nem mesmo conseguir provocar uma pequena marola na mente do leitor. Escrever deveria seguir o mesmo caminho de um experimento científico; só ser trazido a público quando a sua validade fosse comprovada repetidas vezes. No entanto, quem escreve ou quem aspira a escrever, muitas vezes, pouco pensa na qualidade de suas ideias ou da sua escrita. Daí a necessidade do “assassinato” mesmo que seja apenas metafórico.
Escrever deve ser um compromisso com a correção, com a certeza de se estar produzindo algo com um significado, que não é apenas um amontoado de palavras sem sentido. A escrita, portanto, não é o melhor lugar para covardes e vaidosos. O covarde temerá a possibilidade de eliminar a palavra mal nascida, acreditando que haverá sempre um futuro para ela. O vaidoso sequer colocará em dúvida a qualidade daquilo que escreveu. Para ele, as suas ideias sempre estarão revestidas de uma importância que poucos – muitos poucos – serão capazes de perceber. O destino de ambos, infelizmente, será o mesmo, o esquecimento. Afinal, ninguém consegue lembrar daquilo que não teve importância em sua vida. Portanto, cuidado. Escrever é um ato de amor, mas como já deveríamos ter aprendido, nem sempre o amor é suficiente.