Senti que o carro andava bem, muito bem. Parecia que flutuava, pois nele não percebia as costumeiras freadas abusivas, dessas que, hoje em dia, maltratam sobretudo velhinhas e velhinhos ao entrarem  com dificuldades no ônibus.Mal  conseguem   equilíbrio na passagem  pela roleta. Por vezes, são arremessadas para todas as direções possíveis sem tempo de segurarem, com mãos trêmulas, as pontas dos encostos dos assentos ou mesmo se agarrarem a tempo às barras horizontais ou verticais do veículo. Quando não, muitas vezes se seguram a um passageiro mais forte ou mais jovem que por acaso esteja à sua frente. Passam a roleta e, em seguida, dirigem-se cambaleantes e aos tropeções, a um eventual assento vazio.    

                   Porém , aquele motorista ainda jovem não dirigia ônibus com o sistema infeliz de roleta apertada dividindo o coletivo em duas partes, uma do lado do motorista e com poucos lugares; outra, com passageiros depois da roleta. O daquele jovem motorista tinha a roleta pelos fundos do veículo, de modo que saíamos pela porta da frente, ao lado do motorista.
Ao volante, o motorista, firme na sua posição de piloto terrestre, sério na fisionomia, cumpria o dever de profissional talhado para o que estava fazendo há algum tempo. Deduzi da sua fisionomia ainda jovem.
                Os passageiros, a caminho do trabalho, pareciam ignorar que a máquina rolava célere em direção ao seu destino.Os passageiros, quem sabe, não notaram que, para o conforto e segurança deles, lá ia alguém que sabia do ofício, que o aprendera ainda adolescente e que sempre pensava em se tornar motorista de ônibus.
                O seu sonho não era o de ser simples motorista. O seu ideal ia muito mais além disso.Sabia que a sua tarefa não parava com o domínio da direção apenas. Tinha certeza de que, ao assumir sua ocupação, iria prestar um inestimável serviço ao próximo. São Jorge lhe servia de guia e protetor. Por detrás do seu assento, uma capa de pano estampava um bordado à mão com a conhecida figura de São Jorge matando o dragão Não iria desapontar a família, duas filhas menores e a mulher, uma criatura admirável, sua “segunda carreira”, segundo conceituou uma vez um pastor americano cujo nome agora me escapa da memória..
              A função de motorista tinha para ele um significado maior, incomum, quase inexistente nos dias atuais Para ele ser “piloto” não era alguém que unicamente transportava pessoas anônimas, de todos os tipos, de estratos sociais e culturais diversos. Por isso, estava consciente de que a sua missão era superior e ele a devia realizar colocando o seu talento e experiência ao serviço da sociedade, dos milhares de passageiros que andavam com ele diariamente desde as primeiras horas do dia no trajeto Rio de Janeiro -Duque de Caxias e vice-versa.
“            "Quero ser motorista, um profissional humano, prudente, responsável, amigo das pessoas. Vou fazer a minha parte, não importa o que isso vai significar para mim”.
               Quando eu ia saltar do veículo, depois de observar com atenção o seu notável trabalho ao volante, não pude conter a emoção e a minha admiração, e lhe disse com efusão fraterna: “Como você dirige bem!”
              Ele olhou para mim. Tinha um olhar simpático e sério, e simplesmente sorriu, mas seu sorriso não era deste mundo.

NOTA: Texto antigo e inédito, no qual fiz leves alterações