É o poema 'Pedra e água', de Murillo Mendes:
Toda vez que se lê este poema se tem dele outro sentido, diferente lógica.
O texto se abre para todos os lados, todos os cantos, e tudo, cada um leitor, pode ler-se ali, ver-se ali, retratar-se ali e ir
por ali para um ponto seu mesmo mas desconhecido.
Esta mulher sem fim e a noite sobre a noite
E esta fome de ti, meu Deus talvez de mim.
Quem sabe eu já morri, meu esqueleto eterno
Em pé nos séculos e nas ondas me reveste. O mar, a escuridão, esta fome de amor,
Esta noite sem fim e o X de Deus
Que em nós todos vive, morre e renasce
Espuma do mar eternamente e a pedra
O que é esta 'mulher sem fim'? Será a mulher sempre e infinitamente amada? Ou a mãe, natureza eternamente produtiva e úbere, de vida renovável,
abundante, cascatarante e oceânica, que em ondas nos inunda do infinito universo de seus múltiplos seres coloridos de flores
frutos sabores novos e eternamente renascidos, renovados sempre porque sempre morrendo, multiplicando-se no tempo e na temporalidade do espaço largo e amplo quanto o sem-fim do começo das estrelas, na escuridão luminosa do Universo? Ou é a mulher básica, buscada, retratada na memória, a mulher futura, possível, a que vive dentro de nós mesmos como
o Outro, no Obscuro e Insaciável, aquela que não existe no mundo, porque no externo não está mais do que no aquém do
objeto, do lado de cá, no amante e não no amado? Que mulher é essa, que é sem fim e, portanto, sem começo, que tudo o que termina começou um dia, e se não tem
término não nasceu, a não-nascida, a que não é ainda porque não está lá, nem ainda virá, se virá, a ser, a aparecer, a crescer? Oh amada infinita, quem és? Onde estás? Em que céu ou em que terra tu te encontras? Por quem és, responde,
acontece, mostra-nos o mapa e o rosto da tua rota e a via o link de acesso da tua realidade, oh infinita amada? Esta mulher sem fim não será aquela de uma única noite, mas a que sobreviverá a todas as noites, nas noites insaciadas
sobre outras noites, as noites sobre as noites, aquelas que se sobrepõem, sem o espaço intermediário de um dia, aquela
escuridão noturna que nunca amanhece, que nem termina, nem se esgota senão em si mesmo e se renova e se refaz e não se
retira nunca? Porque ela é a musa, o motivo poético, o amor em pessoa, a onda do mar, a fonte do ser, a oriunda matriz, o ventre da
fecundidade, o abrigo da maternidade nunca perdida, o leito da vida e da morte, o refrigério do cansaço e da proteção, a
criadora, a mãe e o socorro. 'Essa mulher sem fim, e a noite sobre a noite'. Só, em si mesma, é uma incógnita esclarecedora de todas as nossas vicissitudes e vivências, de todas as nossas lástimas e
alegrias, das sexuais às espirituais porque também são gozosas. Oh, Amada imortal! Oh, Pátria de meu espírito e de minha inspiração! Por isso me calo. Por isso apenas fico no primeiro verso. Porque ali mesmo esgoto a minha condição de possibilidade de ler. Porque dali não passo, que dali não posso. Sim, essa mulher é a fome de Deus, a fome de amor, a fome, o amor. Morrer é mergulhar no fundo do seu ser e no mar de sua absorção, na escuridão de sua benfazeja fosforescência e nas profundezas de suas instabilidades, nas suas carícias e nas suas idas, nas superfícies e sedas, nas redes máscaras e laços dos seus cabelos e tranças, seus sonhos e necessidades.
Somos todos descendentes dessa mulher sem fim, dessa maternidade original e nunca esquecida, dessa raiz funda que mora no coração de nossa matéria e de nossa sensibilidade, de nossa familiar solidão. Caminhamos a passos largos nesses rumos, navegamos nas vagas desse mar e nas rotas desse trafegar oceânico pelos
descaminhos de nossas aspirações, esquecimentos e mitos. Essa mãe é a natural beleza da nossa moldura, pátria e lar. Espuma do mar eternamente e a pedra.