ELMAR CARVALHO

 

 

Quase toda semana, quando faço minha caminhada diária na Raul Lopes, encontro o bom amigo Dr. Paulo de Tarso Ribeiro Gonçalves Filho, que por várias vezes me tem instigado, quase diria fustigado, a escrever uma crônica sobre o histórico Riacho Mocha. A última foi ontem, quando parei para cumprimentá-lo, no momento em que ele sorvia um coco gelado, após haver feito o seu exercício físico. Cumpro, agora, a minha palavra.

 

Vários poetas e escritores oeirenses já escreveram sobre o velho curso d’água. Entre esses, posso citar Antonio Reinaldo Soares Filho, Rogério Newton, Dagoberto Carvalho Jr., O. G. Rêgo de Carvalho, João Carvalho, o próprio Paulo de Tarso Filho e este cronista. E, sem dúvida, Possidônio Queiroz, Ferrer Freitas, Carlos Rubem, Gutemberg Rocha e José Expedito Rêgo, embora eu não tenha feito pesquisa para produzir este texto. O poeta Rogério Newton também realizou um belo documentário (audiovisual) em defesa do Mocha, que Paulo de Tarso considera o maior patrimônio natural de Oeiras.

 

No livro “Dr. Tarso – sua história, estórias e legados”, em que conta a vida de seu pai, sobretudo um médico do adusto sertão piauiense, cuja saga remonta à segunda metade da década de 1920, e que se estendeu por mais de meio século, Tarso Filho lamenta a decadência do velho riacho, em que ele e seu pai nadaram tantas vezes. Rememora-lhe os poços e os seus poéticos, telúricos ou pitorescos nomes.

 

Esses poços minguaram ou desapareceram completamente. Em 2013, em companhia do amigo Pedro Amador, tentou, qual novo Proust, encontrar o poço encantado de sua meninice. Em busca dele, enfrentou ervas daninhas, juremas e afiadas unhas de gato, urtigas e cansanção, para constatar que o ditoso balneário havia se transformado numa minúscula e rasa cacimba. E Paulo de Tarso chorou, como se fora Jeremias, sobre a sua Jerusalém de tantos sonhos...

 

Na página 45 da referida obra lemos o seguinte: “A natação era praticada no Riacho Mocha, nos poços formados ao longo de seu leito. Na época de meu pai, e ainda no meu tempo de menino, com os irmão Beto e Luís e os amigos de infância Dirceu Freitas, João Carlos Siqueira, Toinho de Ferrer, Mundinho Cassiano, Afonso Rêgo, Guilherme de dona Joia, Raimundo de Batatinha (Corró), Pedro Amador, Luiz Evangelista de Sousa (...) e tantos outros, vivíamos despreocupados de tudo, pois passado e futuro ainda não existiam para nós – apenas o presente que fez daquele tempo o melhor de nossas vidas.”

 

Logo a seguir nomina esses gostosos pontos de banho e diversão: “Aprendemos a nadar nos poços da Bica, dos Cavalos, da Laranjeira, do Silva – este à esquerda da ponte Zacarias de Góis –, do Lavradim de seu Raimundo Portela e do Barateiro, que ficava na Santa Rita, do tio João Ribeiro de Carvalho; hoje, propriedade do B. Sá.”

 

Igualmente Antonio Reinaldo Soares Filho (Soarinho), em excelente crônica, repassada de emoção e saudade, recorda o nome dos poços encantados de sua infância e dos garotos que frequentavam esses balneários naturais. Esses locais, sobretudo no semi-árido, eram pontos de convivências, sociabilidades e lazer, e muitas amizades certamente ali nasceram.

 

O documentário do Rogério Newton é uma quase elegia de lamentação pelo estado deplorável em que se encontra o velho Mocha. Muitos depoimentos atribuem como a principal causa de sua quase morte à construção do açude Soisão. Alguns entendidos e ambientalistas também endossam essa opinião. É que essa obra e os trabalhos para sua concretização terminaram por sufocar os olhos- d’água, que eram na verdade as nascentes desse córrego.

 

Perguntei a um respeitado técnico se o Soisão não poderia ser utilizado para a perenização do Mocha, tendo ele me respondido, sem titubeios e sem meias palavras, que seriam necessários 100 (cem) açudes desse porte para que isso fosse possível. Além desse reservatório, é fora de dúvida que os desmatamentos e queimadas, construção de esgotos, galerias, aterramentos, etc. também contribuíram para a degradação desse curso d’água, que outrora foi perene, como me asseverou o Dr. Paulo de Tarso, médico como seu pai e digno professor do IFPI. Aliás, quando eu conversava com ele, passou o Eneas, que foi seu aluno no Instituto Federal e frequentou o seu consultório, na qualidade de representante de laboratórios farmacêuticos.   

 

Sobre os riachos Mocha e Pouca Vergonha já me referi em alguns de meus textos, sobretudo nos discursos com que tomei posse de meus cargos de sócio correspondente do Instituto Histórico de Oeiras (em cuja ocasião também fui agraciado com a Medalha do Mérito Visconde da Parnaíba) e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro.

 

Quando recebi a segunda honraria disse: “Abençoada pela Senhora da Vitória, com o seu cetro fulgurante, do alto do Leme, acariciada pelas águas históricas do Mocha e pelas águas mitológicas do Pouca Vergonha, que hoje só tem vergonha da pouca água que tem, adormece e trabalha a velha urbe, emoldurada pelas colinas, que lhe realçam a beleza do perfil.” Hoje, diria que o Pouca Vergonha só tem vergonha da água que não tem, e por cuja mazela nenhuma culpa lhe cabe.

 

O velho bardo Manuel Bandeira, certamente temendo as vicissitudes do “progresso”, protestou em versos: “Vão demolir esta casa / mas meu quarto vai ficar / (...) intacto, suspenso no ar!”. O poeta Raimundo Correia foi mais pessimista em seu poema Saudade; após falar em trons festivais, arcos de flores, fachos purpurinos, bandeiras desfraldadas e outros triunfos do passado, melancolicamente disse que “tudo passou”.

 

Embora ferido de morte, embora moribundo, embora nos momentos finais de sua agonia, na verdade uma morte anunciada, que já se arrasta por muitos anos, espero que nem tudo tenha passado para o velho Mocha, e que a sua saúde e vitalidade ainda lhe possam ser restituídas pelo Poder Público, em suas três esferas de governo – municipal, estadual e federal.

 

Não deixem, não deixemos que o Mocha morra, que o Mocha naufrague na morte de suas águas.