Cunha e Silva Filho
Estava numa das muitas filiais de uma grande farmácia na Praça Saens Peña, na Tijuca, velho e super-povoado bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Era domingo de sol a pino. O relógio digital da praça registrava 38 graus. Calor infernal. Até parecia que andava pela Av. Frei Serafim, em Teresina em pleno meio-dia de verão brabo.
Dentro da farmácia, com ar-condicionado, aquele calor insuportável. Desde criança, quando com mamãe ia ao Mercado Velho, na Teresina da primeira metade dos anos cinquenta do século passado, me queixava do “calor danado.”
“Que caiô danado”! - repetia quase virando um estribilho pra mamãe que nem estava ali para o meu desabafo de criança irritante. O verão carioca semelha, na temperatura, ao calor infernal de Teresina. Só de uma coisa gosto do calor: ele me permite tomar um banho de chuveiro demorado, gostoso, refrescante, animador e sem ter que ligar a água quente.
Enquanto Elza e Alexandre compravam remédios enfrentando duas filas, uma para ser atendido e outra para aguardar a chamada da vez no caixa, eu olhava tudo ao meu redor, pessoas, as prateleiras de remédios bem arrumados, As molduras fotografias em tamanho médio perspectivando instantâneos de diversas décadas do século passado mostrando como era a Praça Saens Peña. E como era diferente em tudo: nos prédios, hoje desaparecidos, no coreto que lá havia em décadas passadas, nas linhas de trilhos de bonde que cortavam ruas tão tijucanas como a Conde de Bonfim, a Barão de Mesquita, a Avenida Maracanã, os prédios onde se localizavam cinemas, os bondes cheios de gente de roupas de épocas atrás, algumas sentadas, outras, em pé nos estribos dos bondes, uma multidão de anônimos hoje talvez “dormindo profundamente” como no belo poema de Manuel Bandeira (1886-1968).
Com um olhar apurado, procurava divisar alguma pessoa em particular, a fim de poder tirar alguma impressão do olhar dele ou dela. Nas ruas daqueles tempos passados, viam-se outras pessoas como se delas quisesse eu também extrair alguma informação do que pensavam no momento em que foram fotografadas sem serem notadas, anônimos seres que jamais conhecemos, de quem nunca saberemos o que foram, o que fizeram, como viveram aquelas épocas, o que fizeram de bom ou errado, o que pensavam da vida e do futuro. Jamais saberemos.
Entretanto, sinto uma grande e misteriosa atração por esses anônimos de anos passados: 1910, 1915, 1927 (Papai, neste ano ainda estava no Rio de Janeiro), 1950, 1970. Casas, contornos das ruas, formas de vida, sociabilidades diversas, modas, estilos de vida, estilos diferentes de música, de dança, de teatros, de filmes. Tudo passou, ou melhor, quase tudo passou, pois ainda alguns traços de alguma coisa do passado teimam em sobreviver no presente.
Inopinadamente, meu pensamento suspendeu-se e comecei a olhar para uma moça pequena, clarinha, de cabelos em estilo dos anos 30 daquelas atrizes do cinema americano ( ao mesmo tempo, em imagens sobrepostas, aquela moça me lembrava alguma coisa, não exatamente pelo corte de cabelo, as atrizes da era do cinema mudo, dos primeiros filmes de Chaplin, 1889-1977), por sua vez, copiado pelas brasileiras da mesma época. É só olharmos para nossas avós, claro, da minha geração pelo menos.
Aquela moça mignon, parecida com uma francesinha da “Geração Perdida,” ali entrava na farmácia. Mas, entrava com um arzinho desconfiado, alheado de tudo e de todos. O mais curioso que nela observei foi que andava com os olhos grudados num livro pequeno e aberto pela metade. Caminhava, com passo leves, e não deixava de ler parágrafos do livro. Acredito que era um romance, ou um livro de contos. Pela disposição que mal avistei das páginas abertas, não era poesia não, nem tampouco poesia concreta,.Era um livro que segurava com muita atenção e com muito cuidado.
Seu vestido era fino, bem discreto, multicolorido e lhe caía bem no corpinho frágil. Ao reparar no seus olhos, vi que não era tão novinha e tinha olhos cansados e meio arregalados, o que lhe tirava um pouco de sua meiguice geral. O diabo era que ela não dava bola pra ninguém, mesmo quando eu tentei fixar meus olhos nos seus. Ela fingiu que não me viu, ou talvez não me viu mesmo. Não obstante, continuei seguindo-lhe os passos e ela prosseguia lendo o livro e andando por boa parte da farmácia, que, por sinal, é ampla e elegante. Passou pela filha de compra, pela de pagamento, mas sempre lendo o livro absorta, alheia a tudo. Parecia aquelas menininhas vidradas nos livros de Harry Porter que não o largam enquanto não terminam de ler a última página.
Tendo pago a conta com cartão, tendo digitado a senha, ainda pude ver que sua atenção maior era o livro e não os números do cartão que digitou mecanicamente. A moça do livro, então, encaminhou-se lendo avidamente, sofregamente, o livro até sair da farmácia e perder-se na multidão.