A MEMÓRIA COMO COMPENSAÇÃO EM ENIGMAS
Por Cunha e Silva Filho Em: 03/01/2024, às 12H53
A MEMÓRIA COMO COMPENSAÇÃO EM ENIGMAS*
CUNHA E SILVA FILHO
Tenho às mãos o livro de ficção Enigmas, do autor piauiense José Ribamar Nunes. A classificação do autor considerando-o romance, não me parece adequada, pelas dimensões limitadas que imprimiu à narrativa, formada de 33 capítulos. Pelo fato de ter a possibilidade de abrir-se a muitas células dramáticas, e, por consequência, não havendo aquela visão mais abertas a uma sondagem no espírito humano, da totalidade da existência, e por não haver mais largueza e consistência dramático-narrativo-descritiva, eu o definiria como novela.
Seria, antes, mais o que um crítico inglês chamaria de novelette, não no sentido que pode ter de um romance “insignificante e fútil”(Ver GRAY, Martin. A dictionary of literary terms. Second edition; London: 1992, p. 200), mas num segunda acepção positiva e “neutra,” bem semelhante a novela (grifo do autor citado), como obra de ficção com pretensões mais modestas, porém maior do que um conto, e mais breve do que um romance.
A estrutura narrativa de um romance - reitero - acenaria para perspectivas da sondagem de um universo visto na sua verticalidade, na sua amplidão de sentidos e de visão panorâmica do mundo existencial, uma cosmovisão mais completa muitas vezes do que o leitor possa ter da realidade referencial, ou já se disse teoricamente que a ficção, notadamente o romance, completa a realidade comunicativa, ou seja, ela, a ficção é um gênero abrangente que também tem seu lado de transmitir mais conhecimento da alma humana, quer pelos diálogos, quer pela forma, quer sobretudo pela qualidade da linguagem, da “competência literária” (Vítor Manuel de Aguiar e Silva) como é estruturada, quer como leitura do pensamento no sentido de ideias, reflexões, de sondagens psicológicas numa espécie superior de competição com a realidade informativa, a qual, por sua vez, é limitada no seu conjunto.
Este sentido irrestrito de amplitude de cosmovisão jamais ocorreria numa novela, cujo epicentro da intriga (plot) estabelece pontos determinados que servem à curiosidade e expectativas do leitor fazendo com que este aguarde novos ações, novos conflitos, novos desdobramentos de células dramáticas, alongando as ações ou finalmente pondo um ponto final à estória ou, por outra forma, abre novas clareiras para mais ações espácio-temporais. Mas sem aprofundamentos abissais como num romance. Espécie de metáfora da vida, do mundo, do tempo e do espaço.
O romance, para se sustentar como tal, deve se realizar plenamente dentro dos núcleos narrativos, de diálogos e dos eventos que demandariam, em tese, maior rigor da parte do leitor. Não é uma questão de número de páginas, mas de desenvolvimento e profundidade de visão do mundo, da Natureza, do Cosmos.
Considerando-o, contudo, como novela, existem em Enigmas elementos ou componentes de técnica narrativa que suportariam, sim, essa classificação genológica. Os eventos, as ações a trama correm céleres, mas todos eles carecem de maior amplitude que faz de uma ficção um romance visto na sua verticalidade e não na sua horizontalidade, segundo já referido atrás.
Este é o segundo livro de ficção de José de Ribamar Nunes, autor, cuja estreia foi muito auspiciosa com o romance O morro do Querosene, publicado em 2019 e que foi bem aplaudido pelo público. Entre a primeira obra do autor e essa segunda há muitas diferenças, sobretudo de tratamento artístico da linguagem literária, de situações dramáticas e de composição de personagens, além de intenções de cunho social e histórico.
Uma diferença, porém, possui o segundo livro, é a do tipo de nível social dos personagens. No primeiro, os personagens mais instigantes vivem na periferia de Teresina, enquanto em Enigmas se pode afirmar que outro é o nível social, ou seja, aqui se trata de gente de classe média de uma Teresina já se modernizando com problemas de trânsito, porém já dando sinais evidentes de crescimento populacional e de seus agravamentos. Ou seja, uma Teresina que já aponta para um maior conforto e bem-estar de um estrato social privilegiado.
Seus problemas enfocados são mais de ordem íntima, pessoal, memorialística, sendo que, em nenhum dos dois livros publicados pelo autor, conforme assinalei na minha resenha do livro de estreia de Ribamar Nunes, nunca o narrador problematiza mais fundo a vida social, embora a descrição neorrealista do primeiro seja mais palatável e da leitura da qual sai o leitor contente com a verossimilhança da narrativa. Quer dizer, O Morro do Querosene é um romance praticamente sem falhas construtivas.
Em Enigmas o que salva a narrativa é o aspecto rememorativo e recorrente da parte das três personagens femininas, na ordem em que aparecem na fabulação: Helena, Laura e Heloísa. três antigas amigas dos tempos de colégio, cada qual com os seus traços físicos, psicológicos e com a sua atuação distinta na narrativa. Vale ressaltar que o narrador tem um tendência muito forte a um lirismo e a uma certa otimização ou glamourização dos seus personagens principais. Nela a diegese, por vezes, atinge o poético e se utiliza de metáforas bastantes inusitadas a um leitor de outras regiões do país. São imagens que só quem conhece o Piauí, ou melhor, a sua capital, Teresina, se mostram como redivivas lembranças para um leitor como eu também bem apegado ao rememorativo.
Por outro lado, poder-se-ia afirmar que o valor desta segunda obra é o seu irretorquível componente de humanismo, de um sentido de solidariedade que empresta aos relatos narrados, como a chamar a atenção do leitor para essa dimensão humana tão intrinseca ao relacionamento entre as pessoas, narrativa que mostra um painel social solidário de que hoje tanto se faz urgente nas ações do homem contemporâneo, valorizado pelo tipo de homo economicus, coisificado e de traços hedonísticos, não só no Brasil mas em qualquer parte da Terra. Talvez por essa razão haja elaborado personagens, cuja vida interior se revela como portadora de valores éticos, um tanto, reconheço, conservadores, de fundo religioso e católico, mas, acima de tudo, valores morais, ressaltando o preito que a narrativa rende à importância da amizade sólida e do comportamento pessoal e familiar entre sobretudo as três amigas.
Todavia, o que devo assinalar de palpável e positivo é o aspecto reiterativo das analepses do discurso ficcional partindo de um narrador por demais tentado a romantizar alguns personagens, ao retratar personagens (no sentido de characters na acepção que os críticos ingleses dão a personagens, quer protagonistas, quer secundários ou meros figurantes sem maior participação da trama e sem consistência maior de composição. Eles surgem por injunções da própria condição amorosa ou de casos amorosos das três figuras femininas protagonistas da novela.
Por outro lado, um aspecto preponderante define a trama e a segura até ao desfecho : um segredo familiar. Este é o leit-motif da história dessas três personagens, o fio de Ariadne que percorre a espinha da narrativa: a decifração da origem paterna de cada uma. Numa história que se desdobra entre o presente e o passado, com algo comum e vital para o que se poderia chamar de solução de um problema familiar, i.e., a busca da identidade do pai de Laura, e das oura amigas, motivo nuclear da novela Aliás, na composição de personagens, Ribamar Nunes é um ficcionista exemplar e, se não fosse sua habilidade de construção ficcional, o livro poderia se concluir numa página e, portanto, perderia sua finalidade narrativa de aguçar a curiosidade do leitor ou do crítico.
As três personagens crescem tornam-se adultas, vão viver sua vida, sua iniciação amorosa, cada qual com a suas peculiaridades e idiossincrasias. Formam-se em universidades. Entretanto, sobretudo ao longo de sua vida adulta, já com independência financeira nas suas respectivas profissionais, Helena, médica, Laura, psicóloga e Heloísa, funcionária pública, todas exercendo com competência e talento as suas funções normalmente, contudo, com traço em comum decisivo à trama, o mistério ao qual estão enredadas, a descoberta da paternidade de cada uma: uma nuvem negra a impedir que interiormente tenham um vida feliz,. Simbolicamente, as três amigas constituem um exemplo sagrado a ser seguido, que é a continuidade de uma amizade entre elas, a qual, ao que a narrativa até ao final aponta, será um amizade duradoura, mormente com a revelação do enigma que persegue as duas amigas de Helena.
Enigma, malgrado não ter atingido o nível de competência literária do livro de estreia, não tem pretensões de realizar uma incursão nas vida de cada uma dessas amigas, um deslindamento aprofundado segundo já frisei antes. É uma narrativa um tanto neorromântica dessas três amigas sinceras e de boa índole, embora na novela exista Celina, um boa personagem do ponto de vista de sua verossimilhança, quiçá amais bem composta dessa narrativa.
Por falar em boa índole, a novela – vale repetir - sofre de uma hipertrofia de idealismo na composição dos personagens principais no que tange a um viés, a que aludi no parágrafo anterior, neorromântico de idealizações das personalidade retratadas com muito otimismo, ou seja, a história de cada uma dessas amigas flui sem grandes conflitos, sem vilanias a não ser a circunstância desfavorável que as persegue como uma obsessão: descobrir, cada uma, a origem de seus pais. motivo fundante de suas preocupações existenciais.
De resto, na maioria das vezes, se transferimos esse problema, que é vivenciado por tantas pessoas no chamado “real empírico,” em oposição ao imaginário da ficção, em geral os filhos de pais não identificados quando têm consciência e sentimento de ausência de um elo familiar, o pai ou a mãe, se sentem atraídos a descobrirem quem são seus pais ainda que vivam uma situação já normalizada pela adoção de pais não biológicos mas que os aceitam de bom grado.
Por vezes, passam anos a fio à procura do pai consanguíneo e, quando os encontram, sentem uma alegria e um conforto íntimos pela descoberta da procura exaustiva. A descoberta da origem paterna chega a ser até uma espécie de alegria satisfeita, desvelamento de uma esfinge, cuja procura tinha sido um obsessão de cada uma das amigas.
A história dessas três amiga de adolescência se insere neste contexto social, psicológico e familiar de tal sorte que, na decifração do enigma, elas se sentem reequilibradas, aceitam a solução e tocam a vida para a frente.
Na armação do enredo, e este é fundamental em ficção de corte tradicional, penso que o autor poderia bem dramatizar mais essa questão vivida pelas três amigas. Recordo que o enredo é uma forma de distribuir as ações e ocorrências da história de tal maneira que possam despertar no leitor ou crítico maiores entraves de percepção do enigma, e um certo adiamento da solução da sua revelação em exame seria mais do que bem-vindo para a estrutura dessa narrativa e, portanto, para uma melhor realização ficcional de Enigmas
Não foi o que aconteceu. O esclarecimento, o turning point necessário à revelação do mistério da paternidade das três amigas finalmente se dá e o suspense não demora a ser superado. Desta forma, o leitor perspicaz é logo satisfeito por perceber quem seria provavelmente o pai de Laura e Heloísa. Um dado curioso da narrativa é que o narrador, em terceira pessoa, não é sempre onisciente. Entretanto, Augusto um militar irrepreensível no seu comportamento, dá o que pensar sobre ter sido vilão ou não. A novela não explora esse aspecto, ou melhor, deixa que o leitor tire as suas conclusões.
O que, por ouro lado, torna um pouco insustentável, no desenrolar da narrativa é que, do ponto de vista moral, tudo o que fez Augusto é recebido pelas três amiga após a revelação de quem era o pai delas. como uma atitude não repreensível. Ora, como um personagem como Augusto, que teve bom comportamento como filho, com os familiares e como pai de Helena, além de ter tido um boa formação militar e uma esposa exemplar que o admirava, a dona Eulália, poderia deixar de ser questionado e reprovado por Laura e Heloisa? Ou mesmo por Celina, mãe desta última?
Essa situação do enredo e do comportamento das três amigas torna um tanto inverossímil a dignidade ética de Augusto que não sofreu nenhuma contestação ou foi objeto de pontos divergentes por ter gerado filhas sem que as mães respectivas, se indignassem e - o que é pior do ponto de vista de verossimilhança do militar reprodutor - ele não sofre - reforço esse tópico -, nenhuma reprovação, seja por parte do narrador, seja por parte das três amigas.
O que, a meu ver, a novela do ponto de vista de valores morais de personagens de maior evidência ou de menor evidência, tratados na ficção com otimismo e virtudes sempre em traços otimistas e de caráter irretorquível, me parece ser o caráter reducionista nas questões conflitantes comuns aos seres humanos em convivência familiar. Ressalte-se que, na vida empírica, tanto quanto na imaginária, não é nunca um paraíso de bondades, uma narrativa panglossiana. Se assim o fosse, seria uma utopia, uma idealização.
Mais um vez, retomo a questão da hipertrofia de composição de personagens romantizados, quase perfeitos e sem máculas morais, como nos antigos romances do século XIX. Se levada em conta por esse ângulo, Enigma é uma novela de feitio antigo, sem pretensões de rupturas estilísticas, mas em flagrante contradição com uma melhor exploração problematizadora do espaço social de uma Teresina mais moderna, que mereceria mais aprofundamento e não apenas breves referências sobre questões de ordem social de uma visão crítica relativa à classe média, no caso de algumas personagens, abastadas, sendo donas de propriedades, a salvo de aperturas financeiras. explorada nesta novela quanto à vida trepidante e cheia de contradições de viés social, ao contrário do seu romance O Morro do Querose, no qual a cidade ocupa uma papel proeminente na narrativa bem construída tanto quanto no seu aspecto social, na profundidade da visão da vida simples dos personagens do ponto de vista do narrador. Por outro lado, talvez isso se explique pelo espaço quase nuclear que o narrador concede ao mundo interior dos personagens, mundo esse voltado ao aspecto rememorativo que se reitera quase como uma obsessão do narrador
A novela - devo reiterar - pelo índices ou “marcas históricas” como, por exemplo, a Queda do Mundo de Berlim (1989), sobrevive quase de recordações caras e recorrentes a alguns personagens, porquanto as implicações do desenvolvimento da trama implicam uma vaivém iterativo entre o presente e o passado das personagens. Poder-se-ia afirmar que temporalmente a estória se passaria numa Teresina dos anos de 1960, ou pouco antes, parte do período convulsivo da ditadura miliar ou pouco até mais adiante, mas não chega à era do computador em Teresina, no país, nem tampouco do uso do celular.
O que de relevante permanece nesta novela são os esboços de poucas personagens bem elaboradas, como Celina, já aqui aludido, a mãe de Heloísa, ou prestes a serem mais bem compostos como as três amigas não esquecendo os retratos de Maria Luísa, mãe de Laura, de Augusto.
Releva ainda mencionar um dado positivo da narrativa: as descrições e narrativas das memórias das três personagens irmãs relatando, no fluxo rememorativao, fatos dignos de permanecerem na retentiva de adultos.
O traço recorrente e mais auspicioso dos relatos de cada uma dessas três amigas é o realce propiciado pelo narrador traduzido em sentimentos rememorativos, momentos inesquecíveis, por sucessivas analepses já referidas, de recordação que eu chamaria compensadora do agitado presente da vida moderna, insossa e rasa do prisma existencial. Entretanto, aguardo que, em futuras obras, o ficcionista José Ribamar Nunes nos proporcione uma retomada, sobretudo no que tange ao bom nível da linguagem literária do romance anterior.
Na edição atual dessa obra o meu texto foi, pelo que eu vi, sintetizado pela Editora Nova Aliança 2023,176 p., em impressão impecável de capa eorelhas, enfim, de acabamento.