A MEMÓRIA COMO  COMPENSAÇÃO EM ENIGMAS* 

CUNHA E SILVA FILHO

           Tenho às mãos o livro de ficção  Enigmas, do autor   piauiense José Ribamar Nunes. A classificação  do autor  considerando-o  romance, não me parece  adequada,  pelas dimensões  limitadas  que imprimiu   à  narrativa, formada de  33 capítulos. Pelo  fato de ter a possibilidade de    abrir-se a muitas  células dramáticas, e,  por consequência,  não havendo  aquela   visão  mais abertas  a uma sondagem no espírito  humano,  da totalidade  da existência, e por não haver mais  largueza    e consistência  dramático-narrativo-descritiva, eu  o definiria como  novela. 

           Seria, antes,  mais o que  um crítico  inglês  chamaria  de novelette, não  no sentido  que  pode ter de um  romance  “insignificante e  fútil”(Ver GRAY, Martin. A dictionary of  literary terms. Second  edition; London:  1992, p. 200), mas num segunda acepção   positiva  e “neutra,”  bem  semelhante a novela (grifo do autor   citado),  como obra de ficção com pretensões mais  modestas, porém  maior do que  um  conto,   e mais  breve do que  um romance.

           A estrutura narrativa de um romance -  reitero -   acenaria  para  perspectivas da sondagem de um  universo visto na sua  verticalidade, na sua amplidão  de sentidos  e de visão   panorâmica  do  mundo  existencial, uma cosmovisão  mais  completa   muitas vezes do que   o leitor  possa  ter  da realidade  referencial, ou já se disse teoricamente  que  a ficção,  notadamente  o romance,   completa a realidade  comunicativa, ou seja,  ela, a ficção é um gênero  abrangente  que também  tem seu  lado  de transmitir  mais  conhecimento da alma  humana, quer pelos diálogos, quer  pela  forma, quer sobretudo  pela qualidade  da linguagem,   da “competência  literária”  (Vítor Manuel de Aguiar e Silva)   como  é  estruturada, quer  como  leitura  do  pensamento   no sentido  de ideias,  reflexões, de sondagens  psicológicas numa espécie superior  de competição  com a realidade informativa, a qual,  por sua vez,  é limitada  no seu conjunto.

 Este  sentido  irrestrito de amplitude  de cosmovisão jamais   ocorreria  numa  novela, cujo epicentro da intriga (plot)    estabelece  pontos  determinados  que servem  à curiosidade   e    expectativas   do leitor fazendo com que este  aguarde  novos  ações,  novos  conflitos, novos desdobramentos   de células dramáticas, alongando  as ações ou  finalmente    pondo  um  ponto  final  à  estória ou,  por  outra forma,  abre  novas clareiras   para mais  ações  espácio-temporais.  Mas sem aprofundamentos   abissais  como  num romance. Espécie de metáfora da vida, do mundo, do tempo e do espaço.  

  O romance, para se sustentar como tal,   deve se realizar  plenamente  dentro   dos núcleos narrativos, de diálogos   e dos eventos que demandariam,  em tese, maior   rigor da parte  do  leitor. Não  é uma questão de número de páginas, mas  de   desenvolvimento e profundidade  de visão  do mundo,   da Natureza, do Cosmos.

         Considerando-o, contudo, como novela, existem em Enigmas  elementos  ou componentes  de técnica narrativa   que  suportariam, sim,    essa classificação   genológica. Os eventos,   as  ações   a trama  correm céleres,  mas todos eles  carecem   de  maior amplitude  que faz de uma ficção  um   romance visto na sua verticalidade  e não na sua horizontalidade, segundo  já referido atrás.

       Este  é o segundo livro de ficção de José de  Ribamar Nunes, autor,  cuja estreia   foi muito auspiciosa  com  o  romance  O morro do  Querosene, publicado em 2019 e que  foi bem  aplaudido   pelo público. Entre a primeira  obra do autor e essa segunda   há muitas diferenças, sobretudo de tratamento artístico da   linguagem literária, de situações dramáticas e de composição de personagens, além de intenções   de cunho  social  e histórico.

       Uma  diferença,   porém,  possui  o segundo livro,  é a do tipo de  nível  social   dos personagens. No primeiro,   os personagens mais   instigantes  vivem  na periferia de Teresina, enquanto  em  Enigmas se pode  afirmar que  outro  é o nível social, ou seja, aqui  se trata  de gente de classe média de uma Teresina  já  se modernizando    com  problemas   de trânsito, porém  já dando sinais evidentes  de  crescimento  populacional e de seus agravamentos. Ou seja,  uma Teresina que já aponta   para um  maior  conforto  e bem-estar de um  estrato social  privilegiado.

      Seus problemas  enfocados são mais de ordem  íntima,  pessoal, memorialística,  sendo que, em  nenhum  dos  dois livros  publicados  pelo autor,     conforme  assinalei  na  minha  resenha  do livro de estreia  de Ribamar Nunes,  nunca  o narrador   problematiza  mais fundo  a vida social, embora  a descrição  neorrealista   do  primeiro   seja mais   palatável  e  da leitura   da qual   sai  o leitor   contente  com a  verossimilhança  da narrativa.  Quer dizer,  O Morro do Querosene é um romance praticamente sem falhas construtivas.

     Em Enigmas  o que  salva a narrativa é o aspecto   rememorativo  e recorrente da parte das três personagens  femininas, na ordem em que aparecem  na fabulação: Helena, Laura e Heloísa. três antigas amigas  dos tempos de colégio, cada qual com os seus traços  físicos,  psicológicos e com   a sua  atuação distinta   na narrativa.  Vale  ressaltar que   o  narrador  tem  um tendência  muito forte a um lirismo e a uma certa otimização ou glamourização  dos seus  personagens  principais.  Nela a diegese,   por  vezes, atinge  o  poético e se utiliza de  metáforas  bastantes   inusitadas a um    leitor    de outras  regiões do país.  São imagens  que só  quem  conhece  o Piauí,  ou melhor, a sua capital, Teresina,  se mostram  como  redivivas   lembranças   para um  leitor  como eu    também  bem apegado  ao rememorativo.

Por  outro lado,  poder-se-ia afirmar  que o valor  desta segunda obra  é o seu  irretorquível   componente de humanismo, de  um sentido de  solidariedade  que empresta aos  relatos   narrados,  como a  chamar a atenção do leitor   para essa dimensão   humana tão intrinseca  ao relacionamento  entre  as pessoas, narrativa   que mostra um  painel social  solidário  de que  hoje tanto   se  faz urgente  nas ações  do  homem  contemporâneo, valorizado  pelo  tipo de homo  economicus, coisificado e de traços  hedonísticos, não só   no Brasil mas em qualquer  parte  da Terra.  Talvez  por essa razão  haja elaborado  personagens,  cuja vida interior  se revela  como portadora  de valores   éticos,  um tanto,  reconheço,  conservadores,  de fundo  religioso e católico, mas, acima de tudo,  valores morais, ressaltando   o  preito  que  a narrativa  rende à importância da  amizade sólida  e do comportamento   pessoal  e familiar entre  sobretudo  as três  amigas.        

    Todavia,  o que devo assinalar de palpável  e positivo  é o aspecto   reiterativo das analepses do discurso ficcional  partindo de um narrador  por demais  tentado a romantizar  alguns   personagens, ao retratar  personagens (no sentido de characters na acepção que os críticos  ingleses  dão   a personagens, quer protagonistas, quer  secundários ou meros    figurantes  sem  maior  participação  da trama   e sem consistência maior   de composição.    Eles surgem  por injunções da própria condição  amorosa  ou de casos amorosos  das três  figuras  femininas protagonistas  da novela.

     Por outro lado,   um aspecto  preponderante  define a trama  e a segura até ao desfecho : um segredo  familiar. Este é o leit-motif da  história dessas três personagens, o fio de Ariadne  que percorre  a espinha  da narrativa: a decifração  da origem  paterna de cada  uma. Numa  história  que se desdobra entre o presente  e o passado, com  algo    comum  e vital  para  o que se poderia   chamar de   solução  de um problema  familiar,   i.e.,   a busca da identidade  do pai de Laura,  e das oura amigas, motivo   nuclear da novela Aliás,  na composição de personagens,  Ribamar  Nunes  é um ficcionista  exemplar e,  se não fosse sua habilidade de construção  ficcional, o livro  poderia  se concluir  numa página e,  portanto,   perderia   sua finalidade narrativa  de aguçar a curiosidade do leitor  ou do crítico.  

   As três personagens  crescem  tornam-se adultas,  vão viver  sua vida, sua  iniciação amorosa, cada qual com a suas peculiaridades  e idiossincrasias.  Formam-se em universidades. Entretanto, sobretudo ao  longo de sua vida adulta, já com independência  financeira nas suas respectivas   profissionais, Helena,  médica,  Laura,  psicóloga e Heloísa,  funcionária  pública, todas exercendo com  competência  e talento  as suas funções normalmente, contudo,  com traço  em comum decisivo  à trama, o mistério ao qual estão enredadas,   a descoberta da paternidade de cada uma:      uma nuvem  negra a  impedir  que  interiormente  tenham  um vida  feliz,.   Simbolicamente,  as três amigas  constituem um exemplo sagrado  a ser seguido, que é a    continuidade de uma amizade entre elas, a qual,   ao que a   narrativa  até ao final   aponta,  será um  amizade   duradoura,  mormente     com a revelação  do enigma   que persegue as duas amigas de Helena.

  Enigma, malgrado não ter atingido  o  nível   de competência  literária  do livro de estreia,   não tem  pretensões  de  realizar  uma incursão  nas vida de cada uma dessas  amigas, um  deslindamento   aprofundado  segundo  já  frisei antes. É uma narrativa  um  tanto  neorromântica  dessas três amigas  sinceras  e de boa índole, embora   na novela exista  Celina,  um   boa personagem do  ponto de vista de sua verossimilhança, quiçá amais  bem  composta dessa narrativa. 

    Por falar em  boa índole,  a novela – vale  repetir -   sofre  de uma hipertrofia   de idealismo   na  composição dos personagens principais no que tange a um viés, a que aludi  no parágrafo anterior,   neorromântico  de  idealizações   das personalidade retratadas   com muito   otimismo,   ou seja,   a história  de cada  uma  dessas  amigas   flui  sem  grandes  conflitos,  sem vilanias  a não ser  a circunstância desfavorável  que as persegue  como  uma obsessão:  descobrir,  cada uma,   a origem de seus pais. motivo  fundante  de suas  preocupações existenciais.

    De resto,  na maioria  das vezes, se transferimos   esse  problema,  que   é vivenciado  por  tantas  pessoas  no  chamado  “real empírico,”  em  oposição ao  imaginário  da ficção, em geral os  filhos de pais  não identificados   quando têm  consciência e  sentimento   de ausência  de um  elo  familiar,  o pai ou a mãe,  se sentem atraídos  a descobrirem  quem são seus  pais ainda que   vivam  uma situação  já normalizada  pela adoção de  pais  não biológicos mas que os aceitam  de bom grado.

     Por vezes,  passam anos a fio  à procura do pai  consanguíneo e, quando os encontram,    sentem  uma  alegria  e um conforto   íntimos pela descoberta  da procura   exaustiva. A descoberta da origem   paterna  chega a ser até    uma  espécie de  alegria   satisfeita, desvelamento  de uma  esfinge, cuja  procura  tinha sido  um  obsessão  de cada uma das amigas.

    A história dessas  três amiga de adolescência  se insere neste contexto  social,  psicológico e familiar  de tal sorte que,  na decifração  do enigma,   elas se sentem reequilibradas,  aceitam  a solução  e tocam a vida  para a frente. 

    Na armação do enredo, e este é fundamental  em  ficção  de corte tradicional, penso que  o autor  poderia  bem  dramatizar   mais  essa questão   vivida  pelas  três amigas. Recordo que o enredo  é uma forma  de  distribuir  as ações e  ocorrências da história  de tal  maneira  que    possam   despertar  no leitor  ou crítico   maiores  entraves de percepção do enigma,  e um certo  adiamento  da solução da sua revelação em exame seria mais do que bem-vindo para a estrutura  dessa  narrativa e,  portanto,  para uma melhor  realização  ficcional de Enigmas 

   Não foi  o que  aconteceu.  O esclarecimento, o turning  point  necessário  à  revelação  do mistério  da paternidade das três amigas  finalmente  se dá e o   suspense  não demora a ser superado. Desta  forma,    o leitor  perspicaz é logo  satisfeito  por perceber   quem  seria  provavelmente o pai  de Laura e  Heloísa. Um dado curioso da narrativa   é que  o narrador,  em terceira pessoa, não é  sempre onisciente. Entretanto, Augusto um militar  irrepreensível no  seu  comportamento,    dá o que pensar  sobre  ter sido  vilão  ou  não. A novela não  explora  esse aspecto, ou  melhor,  deixa que  o  leitor  tire as suas conclusões.

      O que, por ouro lado,  torna  um  pouco insustentável,  no desenrolar  da  narrativa é que,  do ponto de vista moral,   tudo o que  fez Augusto é recebido  pelas três  amiga  após a revelação de quem era  o pai delas.  como  uma atitude  não repreensível.  Ora,  como  um   personagem  como Augusto,   que teve  bom  comportamento  como filho, com os familiares e como   pai   de  Helena, além de  ter tido um boa formação  militar e  uma esposa  exemplar que  o admirava, a   dona  Eulália, poderia  deixar de ser  questionado e  reprovado  por Laura e Heloisa? Ou mesmo por Celina, mãe desta  última?

       Essa situação  do enredo  e do comportamento  das  três amigas torna  um tanto  inverossímil   a dignidade  ética  de Augusto  que  não sofreu  nenhuma  contestação  ou  foi  objeto  de  pontos divergentes    por  ter  gerado  filhas   sem  que as mães  respectivas,   se  indignassem e  - o que é pior do  ponto de vista  de verossimilhança  do  militar   reprodutor  - ele não sofre  -  reforço esse tópico -,  nenhuma   reprovação,  seja  por parte do narrador, seja  por parte das  três  amigas.  

       O que,    a meu ver,   a novela  do  ponto de vista de valores    morais   de personagens  de maior evidência ou de menor  evidência, tratados  na ficção  com  otimismo  e  virtudes  sempre em  traços otimistas  e de caráter  irretorquível,  me parece ser  o caráter reducionista  nas questões   conflitantes comuns aos seres humanos  em convivência  familiar.  Ressalte-se que, na vida empírica,   tanto quanto na  imaginária,  não é nunca  um  paraíso  de  bondades, uma narrativa panglossiana. Se assim o fosse,  seria  uma  utopia,  uma   idealização.          

    Mais um vez,  retomo a questão  da hipertrofia  de  composição  de personagens   romantizados,   quase perfeitos e sem máculas morais,   como  nos  antigos  romances  do século  XIX.  Se levada em conta  por  esse  ângulo,  Enigma  é uma novela  de feitio  antigo, sem  pretensões  de rupturas   estilísticas, mas em  flagrante  contradição  com  uma melhor   exploração   problematizadora   do   espaço social  de uma Teresina mais   moderna,  que  mereceria mais  aprofundamento e  não apenas   breves referências sobre  questões   de ordem  social   de uma visão   crítica   relativa à classe  média, no caso de algumas  personagens, abastadas,  sendo donas de propriedades, a salvo de aperturas   financeiras.    explorada  nesta novela   quanto  à   vida trepidante e cheia de contradições de viés   social,   ao contrário do seu romance  O Morro do Querose,    no qual   a cidade  ocupa  uma  papel  proeminente  na  narrativa bem construída tanto   quanto no  seu aspecto social, na profundidade   da visão  da vida  simples dos personagens  do   ponto de vista  do narrador. Por  outro lado,  talvez  isso  se explique  pelo   espaço  quase  nuclear que  o narrador   concede  ao mundo  interior dos personagens, mundo esse   voltado  ao   aspecto  rememorativo   que se  reitera  quase como uma  obsessão  do narrador

A novela -   devo    reiterar -  pelo  índices  ou “marcas  históricas”   como,  por exemplo,  a Queda do Mundo  de Berlim (1989),   sobrevive  quase de recordações  caras e recorrentes  a alguns personagens, porquanto as implicações do  desenvolvimento  da trama   implicam  uma vaivém  iterativo  entre  o presente e  o passado das personagens. Poder-se-ia  afirmar que   temporalmente   a  estória  se passaria  numa  Teresina  dos anos  de 1960, ou pouco antes,  parte do  período  convulsivo da ditadura miliar ou  pouco  até mais adiante,  mas  não chega  à era do computador   em Teresina,  no país,   nem tampouco   do  uso  do celular.

      O que de relevante  permanece  nesta novela   são os  esboços    de  poucas  personagens  bem   elaboradas, como Celina, já  aqui aludido,  a mãe de Heloísa, ou prestes a serem  mais  bem compostos  como as três amigas não esquecendo  os retratos  de Maria Luísa, mãe de Laura,  de Augusto. 

      Releva ainda  mencionar um dado  positivo  da narrativa: as descrições e narrativas  das  memórias das três  personagens  irmãs relatando,  no fluxo rememorativao,  fatos  dignos de  permanecerem   na retentiva de adultos.

       O traço   recorrente  e mais auspicioso dos relatos   de cada  uma dessas três amigas   é o realce propiciado pelo  narrador  traduzido em  sentimentos   rememorativos,  momentos inesquecíveis, por  sucessivas analepses já referidas,   de recordação  que eu chamaria   compensadora do  agitado  presente  da vida  moderna, insossa  e rasa do prisma  existencial. Entretanto, aguardo   que,  em futuras  obras,  o  ficcionista  José Ribamar Nunes   nos proporcione   uma retomada, sobretudo  no que tange ao  bom nível  da linguagem  literária  do romance  anterior.  

 Na edição  atual dessa obra  o  meu  texto  foi, pelo que eu  vi, sintetizado pela Editora Nova Aliança 2023,176 p., em  impressão  impecável de capa  eorelhas, enfim,  de acabamento.