Ilustração: O Lago, do pintor russo Isaak Levitan.
Ilustração: O Lago, do pintor russo Isaak Levitan.

[Cláudio Trasferetti]

Acabo de ler “O Delfim” de José Cardoso Pires, um grande escritor português muito pouco conhecido por aqui atualmente. Trata-se de um livro de múltiplas temáticas fantasiado de romance policial. Em breve resumo, a história é narrada por um escritor que, em dois anos consecutivos, foi caçar numa localidade fictícia do interior de Portugal chamada Gafeira. Em sua primeira estadia, conheceu e conviveu brevemente com um nobre local, o engenheiro Tomás, e com sua esposa Maria das Mercês. Quando retorna a Gafeira no ano seguinte, toma conhecimento das mortes, em circunstâncias trágicas e obscuras, de Maria das Mercês e de um serviçal do casal chamado Domingos e do sumiço do engenheiro. O cenário da tragédia é a lagoa que fica na propriedade do engenheiro e onde ocorrem as concorridas caçadas de Gafeira.

Encerrei a leitura com uma sensação parecida com a que tenho toda vez que leio o conto “Dentro do Bosque”, de Ryonosuke Akutagawa, uma das fontes do roteiro do filme “Rashomon” de Akira Kurosawa. No bosque de Akutagawa, as interações entre um samurai, sua esposa e um ladrão resultam na morte desse primeiro. Os envolvidos apresentam relatos antagônicos sobre os acontecimentos. Ao contrário dos romances policiais tradicionais, Akutagawa não apresenta a chave para a solução do enigma e deixa ao leitor a reflexão sobre o que, de fato, teria ficticiamente acontecido. O perspicaz narrador de “O Delfim” também faz uso do chamado “final em aberto” ao misturar informações provenientes de autos oficiais, notícias de jornal, fofocas e seus próprios devaneios e recordações, conferindo ao leitor um certo protagonismo na elaboração dos fatos.

Acontece que o fabuloso romance de Pires Cardoso vai muito além do suposto crime. Ele trata das relações de poder nessa pequena comunidade, das relações, cristalizadas através da História, entre a nobreza, representada pelo engenheiro, e a classe trabalhadora e sugere um levante popular em curso. Tudo isso permeado por reflexões interessantes sobre o Tempo e a História e por animais, muitos animais: lagartixa, cães, enguias, patos e mergulhões.

Sei que já há um filme português baseado em “O Delfim”, ao qual não assisti, mas imaginei a Maria das Mercês sendo interpretada pela atriz Kristin Scott Thomas e, nessa viagem, me lembrei de dois filmes nos quais ela atuou que, grosso modo, dialogam com o livro do Cardoso Pires: “Assassinato em Gosford Park”, de Robert Altman, e “Anjos e Insetos”, de Philip Haas.