(Miguel Carqueija)

 

Decididamente, a distopia está na moda. O que nos aguarda no futuro?

 

A HEROÍNA ADOLESCENTE HOJO KURIKO



    “Shangri-La” — seriado japonês de animação do Estúdio Gonzo, produzido em 2009, com 24 episódios dirigidos por Makoto Bessho e escritos por Hiroshi Ônogi. Com base em novela de ficção cientifica assinada por Eiichi Ikegami (2004). Existe também o mangá em dois volumes, escrito pelo mesmo Ikegami e ilustrado por Tasuku Karasuma (eu gostaria de citar quem assina a produção, mas é difícil encontrar esse dado).

    Série particularmente dinâmica, complexa e envolvente, com grande entrelaçamento de tramas e personagens e rara densidade. É uma história que trabalha com a noção de “mundo decadente”, como vem ocorrendo com freqüência na recente ficção cientifica, como se o porvir da humanidade real se afigurasse cada vez mais problemático — o que no fundo é verdade.
    Há em “Shangri-La” uma carga bem perceptível de exaltação de valores, como existem detalhes questionáveis de modo que o seriado merece elogios com ressalvas. De fato, pelo estilo do desenho, bastante suave, e por certas ingenuidades da trama, a obra parece visar o público adolescente; todavia imiscui-se em assuntos perigosos o que a torna pouco recomendável para essa faixa etária. Efetivamente, ao longo da saga deparamos com perversões diversas, cenas de horror, torturas, manipulação genética, atos de crueldade que chegam ao genocídio, “hakerização” global com lavagem de dinheiro e roubo virtual de valores monstruosos.
    Entretanto, a heroína juvenil Hojo Kuriko carrega e salva a série, com seu idealismo, sua bravura, seu desprendimento e o seu progresso ao longo dos episódios, de garota aparentemente delinqüente, depois uma rebelde e líder guerrilheira, para assumir nos últimos capítulos uma qualidade messiânica de salvadora do planeta.     
    Em síntese, Shangri-La passa-se num futuro indeterminado, onde a humanidade alcançou uma espécie de beco sem saída ecológico. As nações são taxadas pela emissão de carbono e em conseqüência o Japão está coberto por densa mata onde não falta uma planta altamente prolífica e venenosa. Tóquio foi destruída por um mega-terremoto e perdida para a cobertura vegetal; o governo construiu uma imensa cidade-fortaleza de muitos níveis, Atlas, controlada pela inteligência artificial Zeus. Nesta cidade mora uma população privilegiada enquanto em outros locais, como Duomo, o povo se vê sujeito à pobreza, à deficiência alimentar, às intempéries (caem violentíssimas chuvas de granizo). Também existe Akibahara, uma cidade de negócios, onde ocorrem acontecimentos importantes na trama.
    Enquanto a adolescente Hojo Kuriko lidera a organização “Era do Metal” contra o despotismo de Atlas e sua ditadora Narase Ryoko, Karin Ishida, de dez anos, isolada do mundo e apenas em contato com misteriosos amigos virtuais, controla o monstro digital “Medusa”, que penetra nos sistemas financeiros dos países e desestabiliza o mercado internacional de carbono. Note-se que a miséria deste mundo relaciona-se com a proibição de queimar combustíveis, aumentando a taxa de carbono.
    Na minha opinião, a melhor maneira de dar uma boas idéia da riqueza de conteúdo de “Shangri-La” é apresentar, um por um, o perfil de cada personagem importante.        

HIRUKO (Lord of Atlas) — figura angustiante, espécie de alma penada que vive na parte secreta de Atlas, num lago de sangue mantido por tecnomagia. Está ligado ao aspecto mais sombrio da série, aos tenebrosos anos do passado em que Tóquio foi destruída e Atlas construída, à custa do sacrifício de centenas de crianças. No lado verdadeiramente de horror da história, periodicamente uma nova vítima é lançada no lago de sangue, para ser incorporada ao espírito de Hiruko, que precisa do suporte de um corpo para expressar suas profecias, que se referem ao destino de Atlas e ao Sol e à Lua (Kuriko e Mikuri).
SAYOKO — Alta, magra, seca, com ares de enfermeira, Sayoko é uma sádica que gosta de torturar suas vítimas. É a protetora da pequena Mikuri, a “Digma 1” ou “Lua”, ou seja, uma das crianças geradas por manipulação e que, em teoria, devem herdar, uma ou outra, o domínio de Atlas (a Digma 2, ou Sol, é Kuriko). Sayoko dedica-se a Mikuri como se fosse uma filha, ou pupila, e não hesita em atacar violentamente quem possa se opor ao futuro da menina. É uma vilã que, pelo seu amor à criança, acaba se redimindo.
MEDUSA — o monstro virtual que põe em cheque os sistemas financeiros do mundo. Controlada por Karin, a Medusa é uma serpente que desestabiliza o mercado de carbono e por fim, descontrolada, ataca o sistema de mísseis atômicos norte-americanos, ameaçando provocar o inverno nuclear. Por trás de tudo estão Zeus e Narase Ryoko, que nas sombras manipulavam Karin sem que esta percebesse.
SHION IMAKI — escravo sexual de Ryoko, está constantemente sendo maltratado e humilhado pela lúbrica ditadora de Atlas.
TOMOKA YAMAZAKI — amiga de Kuriko, que esfaqueou um rapaz (este fugiu de Duomo). Para preservá-la da prisão Kuriko assumiu a culpa e passou dois anos no reformatório, sendi libertado no início do seriado. Tomoka ficou grata a Kuriko pelo resto da vida e demonstou sua gratidão de forma cabal.
MIIKO — é um gordo travesti que, no passado, trabalhou com Momoka em Tóquio e depois ficou em Duomo, sendo muito amigo de Hojo Kuriko. Sorteado para viver em Atlas, Miiko é posto como babá de Mikuri, que se afeiçoa a ele; mas um destino cruel o aguarda, quando é requisitado para se fundir com Haruko no lago de sangue.
TAKEHIKO — sujeito grande e abrutalhado, é um guerrilheiro da Era de Metal e grande amigo de Kuriko, agindo com ela em diversas ocasiões. No desenrolar da história, porém, Takehiko voltar-se-á contra a heroína adolescente e a confrontará numa cena altamente dramática.
KUNIHITO KUSANAGI — um jovem major das forças de Atlas. Há uma certa química entre ele e Kuriko, entretanto em princípio eles se encontram em campos opostos. Kusanagi considera Kuriko uma perigosa revolucionaria; a garota vê em Atlas um poder opressor, um mundo fechado, rico e auto-suficiente, que condenou o resto do Japão à penúria. O relacionamento entre os dois é difícil e chega a haver um confronto físico, no qual Kuriko, numa cena antológica, derruba o rapaz com um pontapé na cara. Posteriormente, porém, ao se conscientizar das iniqüidades praticadas pelo governo de Atlas, Kusanagi torna-se amigo e aliado de Kuriko.
HOJO NAGIKO — teoricamente é a avó de Kuriko, cuja verdadeira origem está envolta em mistério. Nagiko é uma espécie de líder em Duomo, mas quando Kuriko assume a chefia da Era do Metal e vem a descobrir o terrível passado da avó adotiva, o relacionamento entre elas sofre grave alteração. Nagiko participara da fundação de Atlas, e o computador Zeus, como verdadeiro Moloch, obtivera sua estabilidade e seu poder mediante o sacrifício de crianças inocentes. Ainda que com dor no coração, Kuriko expulsa Nagiko de Duomo. Mesmo assim, quando da invasão das plantas venenosas “daedalus”, que obriga Kuriko a uma vasta operação para queimar a floresta e a própria Duomo (única forma de conter os vegetais escapados de uma experiência em Atlas), Nagiko obtém que a menina vá negociar com Ryoko para que a sua comunidade possa se abrigar na cidade-fortaleza. Nagiko e Sergei Talsian (outro fundador de Atlas) apoiarão Kuriko na batalha final.         
ZEUS — a inteligência artificial que governa Atlas e que praticamente usurpou o poder dos humanos. Impossível medir a extensão do pecado dos personagens que criaram a aberração cibernética que por fim intentará destruir a vida fora da cidade-fortaleza de Atlas através da Medusa, dando início à batalha final.
MOMOKA — é o outro travesti da série, que, alto e magro, contrasta com Miiko que é gordo como um lutador de sumô. Momoka é uma espécie de mentor de Kuriko, por quem tem grande carinho; é um tipo engraçado e que sabe lutar muito bem com um chicote. Kuriko, por sua vez, luta com um bumerangue especial, articulado. Ao longo da saga, em várias ocasiões Momoka e Kuriko lutam ombro a ombro com os inimigos a serviço do governo. A propósito, Momoka não tenta influenciar Kuriko com seu travestismo, antes até incentiva um possível namoro dela com Kusanagi. Nos capítulos finais Momoka toma parte ativa nas lutas decisivas contra Zeus, Ryoko e a cultura da morte.
MIKURI — uma garota com aproximadamente seis anos de idade, dotada de perigosos poderes e criada com mordomias dentro de Atlas, cuidada especialmente por Sayoko e, durante algum tempo, também por Miiko. Mikuri é uma das “crianças sagradas”, a Digma 1 ou Lua, sendo capaz de crueldades como algumas crianças o são; e ignora ser joguete dos planos maquiavélicos de Zeus e sua interface de aparência humana, Narase Ryoko. Mikuri é uma das opções da ditadora Ryoko para obter o poder supremo pela posse de uma espada sagrada no local secreto conhecido como a Floresta Infinita.      
KARIN ISHIDA — a majestosa menina de dez anos responsável pela Ishida Finance — da qual é tida com o presidente — e que controla a serpente virtual Medusa, penetrando nos sistemas financeiros do mundo e desestabilizando as taxas de carbono, perturbando países inteiros.
    Enfrenta videoconferências disfarçada com a imagem de seu ursinho de pelúcia “Pudding”; lidera os “Neo Guilds”(membros da Ishida Finance); impõe condições a chefes de estado e, por fim, seu refúgio próximo a Akibahara é atacado por uma força-tarefa das Nações Unidas. Karin age obcecada em se tornar rica para poder encontrar seus pais desaparecidos. É uma gênia em computação e uma personagem fascinante e envolvente. Interage com misteriosos amigos virtuais (Klaris e Zhang) e ignora que as ações da Medusa são do conhecimento de Ryoko, que pretende utilizar a serpente para seus próprios fins. É extremamente belo e comovente o capítulo 12 onde Karin, lembrando por acaso uma canção que ouvira no passado, acaba saindo do pavilhão onde passou a sua vida, sem contato com o mundo exterior.
    O destino acabará reunindo Karin e Kuriko, numa situação de grande risco para a humanidade. Quando Karin, contrariada porque surgiram fortes oposições à Medusa, retira as travas de controle do monstro, este invade o sistema balístico norte-americano, ameaçando o mundo com o inverno nuclear apocalíptico. Confrontada com as conseqüências da sua ação Karin procura se refugiar em sua própria infância mas Kuriko, indignada, apostrofa: “Não voltes a ser criança quando te é conveniente! Todos têm de assumir as suas culpas, sejam adultos ou crianças!” E assim a pequena “haker” se conscientiza do seu dever e, na emocionante batalha final do encerramento da série, empenha-se em hakear e dominar a desembestada Medusa, enquanto Kuriko luta para quebrar o poder de Atlas.          
NARASE RYOKO — a grande vilã de Shangri-La. Alta, corpulenta, sensual, lasciva, lúbrica, debochada, Ryoko a rigor não é um ser humano. Misteriosamente ela é uma interface da ominosa inteligência artificial Zeus.
    Ryoko, no início da série, ainda não é a autoridade maior da Atlas Corporation. Antes do meio do seriado, porém, ela assume a chefia do governo no lugar do então primeiro-ministro. Assistida por vários auxiliares como Soichiro, Shogo, Reon e Shion, a nenhum deles revela a maior profundidade dos seus planos. Hábil manipuladora, monitora as crianças predestinadas, Kuriko e Mikuri, já que espera obter o poderio supremo através de uma delas.
    Ryoko, porém, inclina-se para Mikuri que já vive dentro de Atlas (no chamado “Palácio da Lua”, como um anexo da cidade-fortaleza); quando Kuriko vai se revelando a líder da rebelião em Duomo, é capturada a mando de Ryoko, levada para o reformatório, submetida a torturas e, por fim, condenada a morte sem julgamento, escapando no último momento com um truque audacioso, fugindo de balão com a amiga Tomoka.
    Apesar disso, quando se torna necessário negociar para obter as transferência da comunidade destruída de Duomo para Atlas, Kuriko vai falar com Ryoko. Quando esta — que mandara chacinar as meninas do reformatório após a fuga de Kuriko — admite terem as plantas venenosas “daedalus” sido manipuladas geneticamente — a menina heroína, num assomo de iluminação, lhe atira à cara: “Você está se fazendo de Deus?”, a resposta da vilã é abjeta e reveladora do seu desprezo para com a vida, inclusive a humana: “Para que serve a vida, se não se pode brincar com ela?”
    O alcance completo da perversidade de Ryoko só se revelará de todo nos últimos episódios. Os espectadores já sabem que ela é uma dominatrix que mantém Shion sob terror, que condenou crianças e por fim, Miiko, a um destino terrível no lago de sangue. Afinal, obtendo o controle da Medusa, ela intenta provocar o lançamento dos mísseis nucleares americanos no mundo inteiro, destruindo a vida no planeta para que só reste a hermética Atlas — tudo isso, por ser mais fácil controlar um pequeno estado.
    O precipitar dos acontecimentos concentra os principais personagens em Atlas e, mesmo ajudada por Karin, pelos três velhos malucos (Army, Camera e Loli), por Momoka e Kusanagi, Kuriko terá de enfrentar sozinha a terrível Ryoko, no emocionante acerto de contas final.   
HOJO KURIKO — a virginal heroína adolescente que domina Shangri-La do princípio ao fim da série. Vista inicialmente como uma menina que se sacrifica pelos outros — a ponto de assumir um crime que não cometeu para que uma amiga não seja presa — Kuriko evolui para a líder guerrilheira do grupo Era do Metal e, por força das circunstâncias, acaba sendo uma espécie de messias empenhada em salvar o próprio planeta da destruição. Curiosamente, quase não se vêem animais de estimação nesse futuro distópico, a não ser o gato preto que aparece a Karin no décimo-segundo capítulo. Kuriko basicamente luta pela humanidade, mas toda a vida terrestre se verá ameaçada pelo sinistro desígnio da I.A. Zeus e Ryoko.
    Apesar de vestir uma saia curta, Kuriko é assaz inocente. Ela não conhece seus pais, sua própria origem; não sabe ser a “Digma 1” que poderá manipular a excalibur do santuário de Atlas. Tem Nagiko como avó e em parte foi criada por Momoka. Ela e Momoka cultivam grande afeição mútua, lutam juntos contra os inimigos, mas Kuriko não é influenciada pelo travestismo dele; antes o comportamento da guria é assexuado embora ela já esteja na puberdade. Momoka na verdade incentiva uma aproximação entre Kuriko e o Major Kusanagi; e embora acabem grandes amigos, o namoro Kuriko-Kusanagi não se concretiza até o fim da história, embora fique implícita a possibilidade de surgir depois.
    O fato é que, em seus quinze anos, Kuriko está tão ocupada em proteger sua comunidade e, depois, a humanidade inteira, que parece não ter tempo para pensar no amor. Ela é altruísta, despojada, destemida, determinada, possuidora de incríveis habilidades físicas, como uma pequena ninja. No fim, representará com Ryoko o arquétipo Davi X Golias.
    A pontuação dramática de “Shangri-La” segue num crescendo emocionante, com a complexidade da trama se adensando, segredos sendo revelados, personagens se definindo, até armar-se o cenário para a grandiosa batalha final já no interior de Atlas. A pró-vida Hojo Kuriko terá de enfrentar a culturista da morte, Narase Ryoko, num confronto emblemático. Ryoko tem por trás de si o genocídio, a matança, a tortura e o despotismo; Kuriko quer o bem de todos e, no limiar da batalha, pronuncia um discurso lapidar:
    “Tenho coisas a proteger: pessoas, lugares e o futuro! Tu zombas desses sentimentos. Mas vou derrotar-te... em nome de todas as pessoas a quem eu amo!”        

(Rio de Janeiro, 1º de junho a 21 de julho de 2013)